terça-feira, julho 18, 2023

Os apoios na Madeira existem para não deixar as pessoas resvalar para a pobreza extrema

A Madeira lidera a taxa de risco de pobreza. Os apoios de várias entidades chegam às famílias numa perspectiva de prevenção. No Funchal, há entre 100 e 130 pessoas em situação de sem-abrigo. Já passou por muito na sua vida o antigo pescador de atum no Panamá que quando regressou ao Funchal, depois de mais de 30 anos fora, se sentiu como um estranho na sua própria terra. Tem orgulho no caminho que continua a trilhar; porém, nesta fase, prefere não revelar o verdadeiro nome, ficando aqui como João Miguel. “Eu estava no Panamá e pelo tema da pandemia estive muito tempo sem trabalho”, diz instalado no confortável cadeirão de uma habitação, a Casa Solidária, na zona central do Funchal, que partilha com outros três homens, também a precisar de casa mas por outros motivos. “Graças a Deus nunca cheguei a viver na rua.” Assim que se tornou evidente que para sobreviver no país da América Latina tinha que vender, um a um, os seus pertences e a mobília da casa, pediu ajuda à embaixada e ao consulado para voltar para Portugal. “Foi difícil, demorou uns meses, mas vim. Não tinha nada. Não tinha ninguém.”

Associações parceiras

A mulher de quem se separou há muitos anos e os filhos estão todos emigrados, em Inglaterra. Ao pedir o retorno voluntário, João Miguel ficou automaticamente sinalizado junto da Segurança Social que o encaminhou para a Associação Protectora dos Pobres (APP), uma das três que trabalham em parceria com a Câmara Municipal do Funchal, além do Centro de Apoio aos Sem Abrigo (CASA) e da AMI – Porta Amiga.

No centro de acolhimento da APP, uma instituição com um século e meio de existência, há quem viva na rua e só aí se dirija para as refeições e o banho. Sendo um centro nocturno, há também quem lá possa dormir, desde que disposto a cumprir regras rigorosas, como aconteceu com João Miguel ao longo de um ano, antes de se mudar para a Casa Solidária, destinada a pessoas em situação de sem abrigo. De acordo com as estimativas cruzadas das várias associações, haverá no Funchal entre 100 a 130 pessoas nessa condição.

Uma segunda habitação solidária poderá abrir em 2024, que será, como na primeira, destinada a quem esteja numa fase em que já possa organizar-se para ter trabalho e reconquistar, aos poucos, a sua autonomia, como aconteceu com João Miguel. “No primeiro dia no Funchal, eu não sabia por onde andar, na minha própria terra. Quando cheguei, nos primeiros dias, eu me arrependi.”

Turismo em níveis recorde

Levou tempo a adaptar-se porque tudo aparecia aos seus olhos como uma novidade avassaladora: desde a rede muito desenvolvida de estradas, viadutos e túneis que se abrem para permitir a quem vai de um lado ao outro dentro do Funchal ou da ilha, e que se abrem por montanhas e vales, à quantidade de carros que circulam, às novas construções de empreendimentos e hotéis, restaurantes e aos milhares de turistas que visitam a ilha e, cujo número, muito recentemente atingiu novo recorde, como noticiavam há dias o Diário de Notícias da Madeira e o Jornal da Madeira.

Tudo, ou quase tudo, mudou desde o dia em que deixou a Madeira. Quando chegou ao Funchal e à APP, através da linha de emergência, activada pela Segurança Social que foi quem o foi receber ao avião, não tinha casa.

Começou por trabalhar num programa ocupacional de emprego, da câmara, dirigido a quem precisa de ser enquadrado para sair de uma situação em que fica sem nada. Concorreu e foi admitido num trabalho de remoção do lixo, do departamento do ambiente, passando a fazer parte dos quadros do município. Falta agora ter casa própria, com apoio ao arrendamento.

Esses e outros programas de apoio existem tanto no município como no governo regional e estão a ser alargados a mais pessoas, desde que os aumentos dos preços e dos juros, da prestação das casas, dos carros, atingem a classe média num fenómeno transversal em todo o país.

​O apoio revisto ao arrendamento chega agora a casais que, juntos, levam para casa todos os meses 2700 euros líquidos quando antes esse valor era de 1000 euros mensais. Além disso, e também desde Dezembro de 2022, todas as rendas até 850 euros mensais são elegíveis quando antes esse valor era de 600 euros. Entre outros, existe também o apoio à natalidade, que ajuda a pagar a mensalidade da creche, ou o de comparticipação de medicamentos para doentes crónicos com mais de 55 anos ou pessoas idosas vulneráveis. Este último representa uma ajuda entre os 120 euros e os 360 euros por ano.

São exemplos de uma lista que, de tão grande e para que o cidadão não se perdesse, foi objecto de um vídeo promocional na televisão regional e de folhetos informativos distribuídos pelas 10 juntas de freguesia do município.

"Trabalhamos em parceria e em complementaridade com as entidades que são instituições particulares de solidariedade social (IPSS) ou do governo regional", explica a vereadora quando confrontada com as reservas de quem vê um risco de uma duplicação de apoios quando estes são criados nos vários níveis de governação (local, regional, nacional).

Como se mede a pobreza?

A secretária regional de Inclusão Social e Cidadania, Rita Andrade, explica, por seu lado, que está a ser desenvolvida uma plataforma que cruze todos os apoios sociais. "O que queremos é que haja equidade, que haja justiça", diz.

Os indicadores do Instituto Nacional de Estatística relativos a 2021, mas apenas divulgados em Janeiro deste ano, colocavam a Madeira como a região com a mais alta taxa de risco de pobreza de todo o país, lugar que, de resto, cabe sempre ou à Madeira ou aos Açores. A esse propósito Rita Andrade lembra que "a questão geográfica, e da forma como este indicador é medido, é impactante nos números que lemos".

​"Não é por acaso que é sempre a Madeira e os Açores. Isto não é uma mera coincidência. Começa desde logo porque somos uma região insular, e porque somos ultraperiferia. Sem desvalorizar jamais [este problema], não é por acaso que temos um estatuto próprio como região ultraperiférica que, de certo modo, justifica uma série de condicionantes que não são tidas em conta quando calculado esse indicador do INE. Temos os sobrecustos, com os maiores preços das matérias-primas [devido à localização], vivemos muito do turismo, e não somos produtivos. Tudo isto tem impacto."

Por isso, para efeitos de comparação com as demais regiões, numa perspectiva global, recomenda que a análise seja a partir da taxa de risco de pobreza, com base na linha de pobreza regional, e não com base na linha de pobreza nacional, como acontece.

17,6%

A linha de pobreza regional estimada em função do rendimento da região é de 476 euros por pessoa enquanto a linha da pobreza nacional são 551 euros por pessoa por mês. Ao fazer-se essa comparação, a percentagem da população em risco de pobreza após transferências sociais, na Madeira, baixa de 25,9% para 17,6% o, que está em linha com a média nacional de 16,4%.

Mas mesmo com os 17,6%, a Madeira continua, a par dos Açores, a registar a percentagem mais elevada entre todas as regiões, mas em linha com aquilo que resulta da mesma análise no resto do país. “Hoje é a região com a taxa mais elevada de risco de pobreza, mas teve uma evolução negativa ou positiva?", questiona Rita Andrade.

É a própria representante do governo regional que responde, recorrendo a outros indicadores do INE. Estes mostram, que, quando se compara 2022 com os primeiros meses de 2023, a taxa de risco de pobreza e exclusão social, a Madeira é a região onde esse indicador menos aumentou (0,6%) enquanto a média nacional aponta para um crescimento de 0,7% tendo, por exemplo, o Algarve crescido em 1,2%, e a área metropolitana de Lisboa e o Alentejo aumentado em 0,9%.

E aqui a Estratégia Regional para a Inclusão Social e Combate à Pobreza, um documento a 10 anos para 2021-2030, com três planos de acção, aprovado em Dezembro de 2021, pode já estar a surtir efeitos. De acordo com os dados oficiais, havia 4364 pessoas a receber o Rendimento Social de Inserção no fim de 2022, menos de cerca de mil pessoas do que no ano anterior, quando eram 5327 beneficiários.

Quando uma pessoa se candidata a um subsídio da câmara ou do governo da região, declara todos os rendimentos, nos quais se incluem os subsídios como o Rendimento Social de Inserção ou o de desemprego, entre outros. A estas entidades, juntam-se as iniciativas das juntas de freguesia, as Instituições Particulares de Solidariedade Social, as misericórdias, as Casas do Povo, com um forte simbolismo e implantação na Madeira. O objectivo é não deixar as pessoas resvalar para uma situação de pobreza extrema. São apoios previstos para uma fase temporária, para “criar uma espécie de trampolim para que a pessoa possa elevar-se do ponto de vista social, numa altura em que está mais vulnerável", expõe Helena Leal. "O objectivo é criar um suporte para que as pessoas consigam atingir [ou voltar a] um patamar de igualdade de oportunidades com as outras pessoas.”

"Têm trabalho, têm casa, têm filhos na creche"

À Associação Protectora dos Pobres chegam indivíduos que “já estão numa situação de último recurso ou que já estão a perspectivar ficar sem recursos”, nas palavras de Filipe Xavier, psicólogo da APP e um dos gestores da Casa Solidária, necessários para enquadrarem os moradores que por lá passam.

E quem passa da rua ou do centro de acolhimento nocturno, para uma situação de estabilidade com a perspectiva de ter casa própria, também pode concorrer à habitação social da câmara ou do governo regional cuja acção se estende aos 11 concelhos (incluindo Porto Santo).

Tudo a seu tempo, no caso de João Miguel. Precisa de um espaço seu. Aos 59 anos, acredita finalmente que o vai ter. Mesmo com as rendas das casas a chegar aos níveis das rendas em Lisboa, como dirá Sílvia Ferreira, a coordenadora regional do Centro de Apoio aos Sem Abrigo (CASA) e se confirma nos anúncios para arrendamento na Internet.

O trabalho do CASA, desde 2008 na Madeira, foi sendo moldado por crises. “Começámos a trabalhar só com pessoas em situação de sem-abrigo”, começa por dizer Sílvia Ferreira. Mas em 2009, quando com a crise financeira e económica bateu à porta do continente e das ilhas, “começaram a aparecer novas pessoas que, mesmo tendo casa, apareciam a pedir ajuda na rua”.

Não se esquece do “modo envergonhado” como perguntavam “se havia alguma coisa para levarem para casa” terminada a habitual ronda de distribuição aos sem-abrigo.

“Tinham trabalho mas, com a quebra do rendimento, precisavam de ajudar alimentar para continuar a pagar a prestação ou a renda da casa”, acrescenta.

O CASA alargou a sua área de actividade e recorreu a uma cadeia de supermercados, padarias e pastelarias que, com os seus excedentes diários (e para evitar os desperdícios), forneciam a instituição com mais refeições também servidas na cantina transformada em refeitório quando todos os hotéis e restaurantes que entretanto também contribuíam com os seus excedentes fecharam portas durante os meses da pandemia.

Seja como for, depois da crise de 2009 e 2010, sentiu-se uma ligeira melhoria. “Entretanto de há um ano para cá tudo disparou, com o aumento dos preços e das prestações das casas, e temos as pessoas que já pediam ajuda e nunca deixaram essa situação, e as outras que, em situações mais pontuais, vêm pedir bens alimentares. Só se vem pedir bens alimentares quando se está desesperado. Estas famílias não ficam inscritas. Têm trabalho, têm casa, têm filhos na creche e muitas vezes ainda estão a pagar as prestações do carro. Agora chegam a meio do mês e falta-lhes dinheiro para a alimentação.”

Uma vez por mês, 387 famílias recolhem o cabaz alimentar que o CASA gere a partir dos donativos de alimentos em duas campanhas com recolhas junto dos clientes de uma cadeia de supermercados – em Março e em Julho – à semelhança do que faz o Banco Alimentar.

Neste programa de entrega de cabazes uma vez por mês, foram apoiadas 441 famílias em 2022, mais do que as 387 apoiadas agora (o que corresponde a 1150 pessoas) “não por haver menos procura mas porque não temos capacidade para ajudar mais pessoas”. Na actual crise, também as doações diminuíram. A de Março deste ano já resultou em muito menos donativos, diz sem surpresa (Publico, texto da jornalista Ana Dias Cordeiro numa reportagem que teve fotos de Miguel Nóbrega)

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