domingo, julho 30, 2023

Madeira, reportagem: “Eu ouvia vozes, era uma voz inquietante, que só parava quando eu fumava o bloom”

O bloom tomou conta de bairros como o das Malvinas, Câmara de Lobos, ou da Baixa do Funchal, onde Marcelo ou Vanessa se entregam a uma lógica destrutiva. As drogas sintéticas alastram na Madeira. O castanho dos olhos de Mário são como um poço sem fundo, e o branco dilui-se num vermelho de quem mergulhou deixando-se assim ficar, por algum tempo — de olhos muito abertos. De T-shirt púrpura e boné preto junto ao cinzento do bloco de pequenos apartamentos, é ele que se avista ao longe, de uma das muitas curvas da estrada que convida quem sobe a entrar neste mundo à parte: o Bairro das Malvinas, no topo do concelho de Câmara de Lobos. Passam poucos carros e, assim à distância, Mário parece isolado de tudo e profundamente sozinho, como se ele próprio fosse uma ilha. Neste bairro, ele e o irmão, filhos de pescador, nasceram e brincaram na rua, estudaram e namoraram, tornaram-se homens. Há um ano e meio começaram a consumir bloom, a mais conhecida das novas substâncias psicoactivas (NSP) consumidas e apreendidas pelas polícias na Madeira. Mário não é “vigia”. Porém, assim sentado num muro baixo da esquina de um dos prédios onde se compra esta droga, parece assumir uma posição só sua. E esta é, de certo modo, uma posição estratégica — não para alertar quem trafica de que algum carro da polícia surja na encosta —, mas porque é nesta esquina que este homem de 27 anos joga todas as fichas para apostar na única prioridade do dia e de todos os que se seguem: “Estou ansiando fumar.”

“Uma ansiedade que mata”

Numa mão segura um isqueiro, na outra uma moeda de 50 cêntimos. Precisa de pelo menos mais 1,5 euros. “São sempre assim os meus dias. Todos iguais. A tentar arranjar dinheiro para um pacote.” Tem o 12.º ano, trabalhou até ao ano passado e é pai de um menino com quem não convive. Pesando “a ansiedade que mata” quando não fuma, como ele próprio diz, com a impotência para se libertar do vício, é a primeira que maior sofrimento lhe causa. “É muito pior. Não consigo deixar.”

Com a ponta dos dedos esconde os olhos que, sem aviso, passam de uma infinita apatia à comoção inesperada. Assim, em vez de falar, acena ou abana a cabeça. Não se importa de conversar, mas poupa nas palavras como que para ficar intacto.

Retoma a postura quando um homem mais velho passa à sua frente e lhe exibe as moedas na palma da mão que vão ser o seu trunfo por umas horas. Outro homem faz o mesmo gesto, e depois mais um, como se de um ritual se tratasse, até que Mário parece acreditar que o chamam para partilhar. Desaparece pela viela por onde todos se dirigem, mas logo volta. Foi engano.

“Quero a coisinha que me devem”, diz, inconformado. “Se tenho amigos? Os amigos são os piores.” Sobretudo desde que começou nisto. "Comecei para parar os pensamentos maus. Passava a vida com esses pensamentos.”

Tentou uma cura de desabituação no Centro de Tratamento de Adicções (CTA), do serviço regional de saúde, na unidade de psiquiatria junto ao Hospital dos Marmeleiros, perto da Igreja de Nossa Senhora do Monte. Mas a realidade dói, parece dizer. “Assim que saí, voltei a consumir. E agora ainda estou pior do que antes.” Só consome bloom.

É delicado no trato e não há sinal, na aparência, que denuncie a rápida deterioração física de outros corpos que deambulam por ali. Com a sua figura alta e esguia, o rosto fino e os braços queimados do sol, muito pouco ou nada nele combina com o que o rodeia: só talvez o corpo magro, o poço sem fundo do olhar e o vermelho de quem mergulhou e ainda não veio ao de cima.

Subitamente, o grito de raiva de uma mulher rompe o silêncio desta rua principal do Bairro das Malvinas e junta-se ao estrondo que ela própria provoca ao derrubar um enorme contentor de lixo, entre os vários alinhados junto ao passeio.

A urgência dela é trocar latas, vidro ou trapos pelas mesmas moedas que ostentam os que passam na esquina e entram na viela do prédio onde se compra à porta, na fachada de costas para a estrada que atravessa o bairro, ou subindo no escuro ao primeiro andar.

Mário mora mais acima, mostra com um gesto. “Em casa, já não me aguentam”, diz como se merecesse o que vem a seguir. “O meu pai insulta-me, chama-me nomes. Não vou dizer quais, são muito maus.”

Não precisa de comer. “Só de fumar”, insiste. E quando não tem, ou algo maior do que ele não o deixa sossegar, há uma pessoa que no seu próprio desespero tenta resgatá-lo. “A minha mãe dá-me comprimidos para eu dormir.”

Lixo e cadeira de bebé

Mesmo em frente a ele, na semana anterior — onde agora estaciona um carro com uma cadeirinha de bebé e de onde se apressa a sair um homem, para logo voltar, dar meia volta e desaparecer na encosta — um incêndio deflagrou na casa inacabada onde dormem muitos dos que já não voltam a casa.

É um bloco de divisões de cimento, sem janelas, onde se amontoam trapos e lixo, como destroços de um conflito, no interior e no espaço todo em volta.

“Nesse dia, formou-se uma grande nuvem de fumo; alguém tinha pegado fogo”, conta Joaquim, de 15 anos, que já há umas semanas está de férias e caminha abstraído pelos auscultadores nos ouvidos.

“Os meus pais sempre avisaram para a gente não ir por esses caminhos. Quem vai por esses caminhos é porque já perdeu a esperança na vida. São pessoas com potencial, mas alguma coisa muito má aconteceu nas suas vidas. É muito triste”, diz, nunca desviando o olhar da conversa. O pai é pescador e a mãe empregada doméstica.

“Tenho pena que seja assim no bairro. Parece um espelho daquilo que eu possa vir a ser. São pessoas como eu. Têm família, têm irmãos, tinham sonhos. Isto afecta-me, mas não me afecta todos os dias. Alguns querem sair da droga. Vão para a reabilitação mais do que uma vez. Tentam, mas não conseguem”, diz Joaquim.

“Estamos a falar de uma substância química em que tudo começa pela curiosidade, depois pelo prazer, e as pessoas vão ficando dependentes, submetidas, escravizadas”, explica Nélson Carvalho, psicólogo clínico e director da Unidade Operacional de Intervenção em Comportamentos Adictivos e Dependências (UCAD), na Madeira.

“Aquela substância tem um poder tal de adicção que as pessoas deixam tudo, objectivos de vida, família, tudo, porque ficam de tal maneira dependentes que a vida se vai afunilando, só para a dose, para a próxima dose”.

E acrescenta: “As novas substâncias são piores, porque têm a agravante da deterioração física que é mais rápida, mas também a deterioração da parte cognitiva e neurológica, a parte das doenças mentais associadas. A adicção e as consequências são mais rápidas.”

Joaquim diz que ele e os dois irmãos estão a salvo, embora aqui, nas Malvinas, a esperança não chegue a ver a luz do dia. Por isso, quando concluir o liceu, há-de partir para o continente, licenciar-se, ser professor de Artes e talvez emigrar.

Crianças dentro de casa

Há muitas crianças no bairro, mas ficam fechadas em casa. Pais e avós, à porta da escola para os recolher, não podem afastar-se do percurso que os leva a casa, mas desviam o olhar enquanto caminham de forma apressada. “O que está aqui é um espelho”, diz uma avó de 47 anos, com quatro filhos e dois netos. “Não queremos que os nossos filhos vejam isto. Mas é esta degradação toda que as nossas crianças vêem quando saem da escola.”

Começa por dar o nome verdadeiro, mas, quando se põe a denunciar abertamente o que a corrói há alguns anos, pede para não ser identificada — todos aqui se conhecem.

“As crianças já não podem brincar na rua. Têm que ficar dentro de casa a ver televisão ou a jogar PlayStation. Não há condições... No mesmo patamar onde eu moro, vivia um traficante. Levava para lá toxicodependentes. Partiram portas, faziam barulho durante toda a noite, quando uma pessoa tinha que se levantar cedo para ir trabalhar.” Ainda lá vão à casa onde agora só está a mãe daquele que vendia e que, entretanto, foi preso por tráfico.

As maiores apreensões são na Faixa Sul da ilha da Madeira, a mais populosa e servida pela via rápida, que vai desde Machico (zona do Caniçal), passando por Santa Cruz, Caniço, Camacha, Funchal, Câmara de Lobos, até Ribeira Brava, diz o comissário Dario Sanguedo, chefe do Núcleo de Investigação Criminal da Polícia de Segurança Pública (PSP) no Funchal.

A substância mais apreendida na Madeira é o bloom, confirma. Tecnicamente designada por Alpha.PHP, o bloom só foi criminalizado em Maio de 2021, quando esta nova substância foi acrescentada à tabela das substâncias identificadas para efeitos de ilegalização que está junta à Lei n.º 15 de 1993.

Sete anos depois, a Lei n.º 30 de 2000 introduziu a descriminalização do consumo no caso de a pessoa ter em sua posse ou comprar o equivalente a uma média de dez doses individuais diárias (quantidade que pode oscilar de acordo com a característica do consumo da pessoa e com o grau de pureza da droga).

Recentemente, a Assembleia da República aprovou um diploma — da iniciativa do PSD, através do círculo eleito pela Madeira, ao qual se juntou o PS e outros partidos — para equiparar as drogas sintéticas às drogas clássicas e assim permitir ao consumidor das novas substâncias (sintéticas) ser encaminhado para a comissão de dissuasão da toxicodependência, precisamente por este ser um fenómeno que atinge em particular a Madeira, bem como os Açores.

Estas novas drogas são produzidas em países da Europa, como os Países Baixos, a partir de substâncias provenientes da Ásia e que chegam à Madeira pelo correio, diz o coordenador da Polícia Judiciária no Funchal, Ricardo Tecedeiro.

Além do Alpha.PHP, outras três novas substâncias psicoactivas consumidas na Madeira foram criminalizadas desde 2021, permitindo às autoridades policiais perseguir judicialmente, e não apenas penalizar do ponto de vista contra-ordenacional, os seus traficantes: são os canabinóides sintéticos MDMB-4en-Pinaca e ADB-Butinaca e aquele que na rua é conhecido por Gorbimix.

“Tem-se verificado uma grande incidência do aparecimento destas drogas sintéticas. São conclusões que decorrem das apreensões que vão sendo feitas pelas polícias [PJ e PSP]”, contextualiza Ricardo Tecedeiro. “O número de pedidos de exames [periciais para identificar estas drogas] dirigidos ao Laboratório de Polícia Científica da PJ, a partir da Madeira, é superior ao todo nacional”, acrescenta, embora não disponha de dados que lhe permitiram dizer qual a percentagem. O mesmo acontece nos Açores, diz.

“Em números absolutos, estamos a falar a partir das apreensões, e tendo em conta os números muito menores da população — na Madeira na ordem dos 250 mil habitantes e nos Açores cerca de 240 mil — a incidência é muito maior nas regiões autónomas face ao todo nacional”, esclarece.

“Teoricamente”, explica o psiquiatra Luís Filipe Fernandes, director clínico da Casa de Saúde São João de Deus, no Funchal, “droga sintética é aquela que se produz artificialmente”. E acrescenta: “Os ácidos e tudo aquilo que é teoricamente manipulado também são sintéticos.”

No imenso universo global das “novas drogas psicoactivas”, têm-se multiplicado as drogas sintéticas. Vários alertas nesse sentido têm sido lançados pelo Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, com sede em Lisboa.

Nem heroína, nem bloom

O único café que se avista da estrada, no Bairro das Malvinas, é um dos pontos de contacto para quem quer fazer negócio. Ao sábado, enche-se de todo o tipo de pessoas, incluindo famílias. Quem vende mantém boa aparência, veste T-shirts coloridas de marca, e uma calça engomada, fala com sarcasmo ou graceja e, em qualquer desses tons, dirige o sentido da conversa.

A maioria dos homens que aqui estão são quem consome e distinguem-se por usar roupa deslavada ou rasgada que descai e deixa parte do corpo à vista. Uns e outros alinham nas piadas fáceis sobre a rotina de ali se encontrar droga às claras.

No espaço junto à porta que separa as crianças a brincar, no exterior, dos homens a beber na penumbra, um pequeno grupo de amigos conversa animadamente. Entre eles, o primo de Amélia que se orgulha de estar limpo de qualquer consumo. Nem haxixe, como em jovem; nem heroína, como em tempos; nem bloom, como há uns meses.

Mas isso só na cabeça e nas palavras dele, garante Amélia em surdina. Gosta dele, é família e um dos poucos em quem confia. “Mas não se endireita”, diz Amélia, sem expressão, observando-o de lado, enquanto ele joga bilhar e se aproxima para conferir se está tudo bem com ela.

O filho de Amélia está preso por roubar para consumir e ela não se conforma nem vê a hora da visita de domingo, no dia seguinte. “Já chorei muito por isto. Não é por chorar agora que sofro mais”, diz.

“O meu filho nem fumava ‘ganzas’. Um dia teve um desgosto de amor, e ficou diferente, muito triste e cabisbaixo. Um dos amigos disse-lhe que já não era divertido sair à noite com ele. E propôs-lhe que experimentasse o bloom para esquecer e voltar a ser como era”, conta Amélia.

“‘Mãe’, disse-me ele, ‘na primeira semana rejeitei, na segunda semana rejeitei, à terceira, não rejeitei’”, descreve a senhora de olhos muito azuis. “Então passou a haver dias em que me chamava nomes, que era coisa que o meu filho nunca me tinha feito antes. Eu não lhe dava dinheiro quando ele mo pedia e um dia partiu-me as vidraças”, conta, sem pausas.

“Paguei 80 euros pelo arranjo dos vidros, mas disse-lho e volto a dizer que preferi pagar esse dinheiro todo pelos vidros novos do que lhe dar dinheiro, a ele, para se drogar.” E continua, como se falasse sozinha: “Estou desejando que ele venha para casa. Estão sempre a adiar o julgamento. E ele diz-me: ‘Mãe, não chores. A porta abriu-se para entrar. Há-de abrir-se para eu sair’.”

Às 9h, todos os dias, o telefone de casa toca. “É ele a ligar-me da cabina da prisão. Tem direito a duas chamadas de cinco minutos por dia. Ele diz-me: ‘Mãe, não te preocupes. Eu estou sempre ocupado’”, relata Amélia, antes de suspirar: “O que a gente sente de deixar um filho lá em cima [na cadeia da Cancela].”

Conversam sempre que podem, e ela não resiste a perguntar-lhe se ele deixou de vez “aquele veneno” que abafava na prata. “É verdade que, no fim, ele já estava com raiva da droga. Mas a gente nunca sabe. Agora diz-me: 'Mãe, por amor de Deus, esquece isso...’”

Amélia não esquece os dias em que via o filho a revirar o lixo em busca de restos de alguma coisa para vender; ou quando, assustado, dizia para ela fechar a porta por estarem “uns homens” dentro do roupeiro. “Eu não conseguia convencê-lo de que não estava ninguém.”

Situações agudas mais violentas

“É uma droga diferente das outras porque degrada muito mais rapidamente”, diz o médico Luís Filipe Fernandes, da Casa de Saúde São João de Deus, aonde chegam consumidores com episódios psicóticos e outras perturbações graves.

“O que a gente sabe, do ponto de vista prático, é que as situações agudas são muito mais violentas em termos de bizarrias de comportamento, de actividades alucinatórias ou delirantes, e deterioração de todas as áreas do funcionamento”, explica. “Sabemos que, na maior parte deles, aquele episódio agudo reverte rapidamente, ao fim de cinco anos, mas também notamos que a deterioração geral acaba por ser mais acentuada.”

E conclui que “um misto disto tudo — a fácil acessibilidade, o preço reduzido, a degradação de pessoas que já vinham de outros consumos e agravaram a sua degradação — está a contribuir para o aumento dos internamentos de consumidores activos de novas substâncias” na casa de saúde que recebe doentes mentais e tem um programa especial para tratamento do consumo de álcool.

“Deterioram de uma forma crónica e de uma forma aguda os efeitos psicóticos” que agora “são muito mais evidentes do que o eram antigamente” com as drogas clássicas. “Acho que tem que se olhar para este fenómeno não como um fenómeno individual, mas como um fenómeno social. E possivelmente transversal a toda a sociedade em termos organizativos — quer do meio laboral, quer do meio familiar, quer do meio social”, recomenda.

O secretário regional para a Saúde e Protecção Civil da Madeira, Pedro Ramos, elenca por escrito uma lista de objectivos a cumprir para resolver uma situação que qualifica como “muito preocupante” reforçar o corpo clínico do Centro de Tratamento de Adicções (onde se faz a desabituação); reactivar um centro de dia, no qual entre outras actividades, haverá a preparação dos utentes com indicação para tratamento em comunidades terapêuticas, bem como o apoio na sua reintegração social, no seu regresso; promover e melhorar a articulação entre o CTA e as equipas de rua das autarquias e da Segurança Social, através da criação de uma via verde, de modo a proporcionar uma resposta mais célere e eficaz a esta população vulnerável.

A estas medidas, o médico, que já dirigiu o Serviço de Urgências do Hospital Dr. Nélio Mendonça, no Funchal, acrescenta a necessidade de a Madeira voltar a ter uma comunidade terapêutica para acompanhar o doente durante um longo período de desintoxicação.

Um aumento dos internamentos

Entre 2012 e 2022, houve, no total, 1807 internamentos por perturbação psiquiátrica grave associada ao consumo de drogas sintéticas, de acordo com os dados da Casa de Saúde de São João de Deus. Porém, o que aumentou mais, ao longo desses dez anos, foi o número de internamentos compulsivos; os que, pela gravidade do estado de saúde depois do uso destas drogas, exigem uma medida de protecção do consumidor e das pessoas que o rodeiam.

“Os que vêm ter connosco estão em processo de doença e tem vindo a crescer desde 2012; tem sido um fenómeno muito marcado, com o aparecimento destas novas drogas”, diz Manuel Freitas, director de Enfermagem da Casa de Saúde São João de Deus.

Até dia 20 de Julho, das 312 admissões na unidade de agudos de psiquiatria desta instituição, 108 pessoas (35%) tinham consumos activos. Se o ritmo das admissões por consumos activos se mantiver, serão 185 no final do ano, correspondendo àquilo que indica o enfermeiro Manuel Freitas, de que, dos cerca de 600 internamentos por ano, entre 150 e 200 estão directamente ligados ao consumo de drogas sintéticas, como o bloom.

Destes, só uma percentagem ínfima sairá para se tratar, lamenta. É comum ouvir-se, dos especialistas, que falta um projecto de vida para os consumidores que se libertam do vício; ou uma articulação entre a urgência hospitalar e um acompanhamento terapêutico; ou ainda entre a Casa de Saúde de São João de Deus, onde são internados os que desenvolvem surtos psicóticos ou outras perturbações psiquiátricas — que permitem, segundo a legislação, um internamento compulsivo —, e o acompanhamento em ambulatório ou em internamento mais prolongado no centro de tratamento.

Do Bairro das Malvinas, alguns descem, por vezes, à freguesia de Câmara de Lobos, junto à paradisíaca baía onde turistas se surpreendem com os comportamentos de quem perdeu o discernimento, anda despido ou fala sozinho; de quem fita um ponto ou decifra uma alucinação, enquanto caminha numa linha recta.

“Sou muito jovem para me deixar ir assim”

A cena repete-se, com outros ou os mesmos consumidores, na zona velha do Funchal. Vêm de freguesias de uma ponta à outra da ilha, e encontram-se aqui, onde se compra mais por menos.

“Vamos em busca do consumo. Aquela perda de tempo no consumo ocupa o dia da pessoa. Passa mais um dia, e outro e outro, e a pessoa acaba por não fazer nada pela vida fora. Não é constante, mas não passa daquilo. É consumir, ficar a dormir e voltar a consumir...”, diz Amaral, que escolhe este para nome fictício. Tem 33 anos, começou a consumir haxixe aos 14.

“Logo que eu tenho um problema, aquilo é o meu refúgio”, diz Marcelo. Antes consumia heroína. “Passei para o bloom por ser mais barato.” Fez uma cura, aprendeu um ofício, mas recaiu.

“Foi a parte do trabalho que o levou à recaída porque ele ainda não estava preparado para ter dinheiro nas mãos”, explica Djamila Teixeira, assistente social da equipa de rua da Associação Protectora dos Pobres. O trabalho consiste em ir ao encontro dos consumidores na Baixa do Funchal. É uma presença, para não os deixar completamente ao abandono e uma forma de estar atento ao momento em que eventualmente possam estar preparados para deixar a droga.

Marcelo é um deles. “A desculpa para a recaída do bloom…”, começa por tentar explicar, para logo concluir: “Não há desculpa para a recaída.” Fala das alucinações. “Às vezes, eu ouvia vozes, era uma voz inquietante. Uma voz que não larga a pessoa, que me diz para consumir, e que só parava quando eu fumava o bloom”, descreve com o gesto de uma mão junto ao ouvido.

Mais de quatro anos de consumo cavaram-lhe a cara, definharam-lhe o corpo. As carências alimentares arruinaram-lhe os dentes. “Sou muito jovem para me deixar ir assim. Tenho que ter força de vontade. Estou a tentar ficar limpo”, diz, como que para se convencer.

Foi pai, aos 20 anos, de um filho hoje com 21. Tem também uma filha pequenina, que lhes foi retirada para a adopção, porque nem ele nem a namorada deixaram de consumir.

“É uma dor para ele”, diz Djamila Teixeira, mais tarde. “É uma mágoa muito grande ele saber que tem os filhos e que não é capaz de estar com eles. Neste momento, ele está a pedir ajuda para cuidar dele próprio”, continua a assistente social. “Ele diz que somos a família dele. Diz que não tem ninguém, e sabe que nós, na equipa, não criticamos, não criamos preconceito. Cada um faz a sua vida como tinha de a fazer e nós estamos lá para apoiar.”

“Lá” é a rua, continua. “É o território deles, onde eu prefiro estar e onde é preciso estar. Eu aqui conheço-os mesmo como eles são e sei o que se está a passar. Na rua, eles não têm como esconder nem a sua situação nem o que estão a fazer. Não fazem a conversa que o técnico quer ouvir, que é o que acontece dentro do gabinete”, diz.

“Ele tem esperança que vai sair disto. Quero acreditar que está para breve. Ele já saiu uma vez e eu quero acreditar que ele vai sair outra vez. Não a saída completa. Mas em breve vamos voltar a tê-lo autónomo, na sua vivência do dia-a-dia, sem necessidade de consumos.”

Para poder ter uma cama no centro de acolhimento nocturno da Associação Protectora dos Pobres, no coração da Baixa do Funchal, o utente não pode estar a consumir, explica o director Roberto Aguiar. Os que consomem, mesmo não dormindo, têm aqui um porto de abrigo, onde podem vir tomar o seu banho, comer quatro refeições por dia (feitas na grande cozinha da associação) e ter a roupa lavada.

“É muito difícil, quase impossível, fazer uma integração sem haver um tratamento adequado, sem haver um acompanhamento, são processos relativamente longos, e às vezes não é dado o tempo suficiente”, diz Roberto Aguiar.

“Este é um meio pequeno, toda a gente se conhece, e o toxicodependente que está em tratamento muitas vezes é assediado pelos outros pares para voltar ao consumo. Há uns que não aguentam, e, por ansiedade, saem”, diz, naquilo que é corroborado pelo director da UCAD, Nélson Carvalho.

“Os consumidores toxicodependentes são um grupo, funcionam como uma tribo e há pessoas que não estão preocupadas com o bem-estar do outro. Só com o seu bem-estar. E se a pessoa deixa de consumir, sai do grupo, é abandonado pelos amigos e a família, que entretanto se cansa, já não está lá”, acrescenta o psicólogo clínico.

“O problema da ressaca e do voltar à vida activa é aquele vazio que se criou. Porque tem que se recomeçar do zero. E dói muito enfrentar as pessoas, enfrentar o mundo real. As pessoas que consomem ficam anestesiadas, e quando deixam de consumir voltam a ter que enfrentar a vida do dia-a-dia, e não é fácil. Já não tem a retaguarda que as outras pessoas têm. A família, os amigos, foram-se, estão nas suas vidas. Há sempre aquele estigma. As pessoas desconfiam. O próprio empregador tem dificuldade em aceitar [na sua empresa] essa pessoa. E tudo isto é um desafio muito grande que o doente, muitas vezes, não consegue superar. Por mais apoio que tenha, não é fácil”, expõe Nélson Carvalho.

Ao longo dos anos a trabalhar nesta área, o director da UCAD na Madeira desenvolveu uma perspectiva pessoal. “Posso estar enganado, mas eu acredito que, no fundo, todo o toxicodependente quer ser tratado, quer sair.”

Um dos primeiros sinais a quererem mudar de vida é dirigirem-se à Associação Protectora dos Pobres, sem documentos, para serem ajudados a preencher os papéis e ir aos registos de notariado fazer um cartão do cidadão, para depois se inscreveram na Segurança Social e receberem algum apoio, diz o sociólogo Roberto Aguiar, que dirige a associação.

Para estas pessoas, a viver num limbo, “devia ser criado uma espécie de emprego protegido para ter em conta problemas de saúde”, continua. “As pessoas são confrontadas com as regras normais, mas no seu caso, precisam de algum tempo. E esse tempo, se lhes fosse dado, permitiria que a integração fosse melhor.”

“Quem é esta senhora?”

A viver na rua, a maior parte do tempo, mas utente da associação para apoio nas refeições, na roupa e na higiene pessoal, Vanessa não encontra razões na vida para deixar de consumir, nem mesmo os seus dois filhos, que estão aos cuidados da sua mãe e irmã. Foi há poucos dias que a mais nova, de seis anos, já não a reconheceu. Quando a viu, perguntou à avó: “Quem é esta senhora?”

Era Vanessa, sem força para ser quem já não é, sem redenção possível. Quanto mais se afunda, menos vontade tem de se libertar. Dorme na rua? Nem sempre, porque se prostitui e um ou outro cliente trata de lhe arranjar um quarto. Tem um colchão na rua? “Fixo, não.”

Fixa tem a ideia de que vai morrer aos 33 anos. Não sabe como, mas sabe que vai morrer nessa data. Restam-lhe assim pouco mais de seis anos para viver no auge. “Comecei a fumar para preencher um vazio. Se calhar foi isso. É como um refúgio. E agora? Já estou habituada. Já assumi um posto.”

“Sempre fumei porque eu quis. Nunca fui aliciada”, diz, embora descreva a pressão para consumir que há na rua, aqui na Baixa, zona velha do Funchal, junto ao cais, ou na rua atrás do Mercado dos Lavradores. “O problema desta droga é experimentar. Não é gostar. É só experimentar. A partir daí, não largam a pessoa. Todos os dias dizem que têm para vender. Se alguém me diz que está a tentar sair, eu digo: ‘Muito bem’.”

Mas nem todos são assim. “Vêem uma pessoa experimentar e vão logo atrás.” Quanto a ela, deixou de conhecer a vida fora do bloom. “Rendi-me a ele como quem se rende a um marido.” Passa os seus dias no Funchal. Mas diz: “Sou de toda a Madeira um pouco...”

Pequenina e roliça, cabelo pintado de ruivo e óculos escuros, podia ser uma jovem como outra qualquer da sua idade. Foi esfaqueada num ombro numa rixa na rua, por uma rapariga como ela que há anos consome.

Enquanto fala, Vanessa exibe a tesoura de cozinha que traz numa bolsa de cintura. Aqui na rua todos lhe têm respeito. Mas para se proteger, Vanessa tem-se só a si mesma. Perdeu a conta aos pacotes que fuma por dia. Várias vezes foi parar ao hospital com uma overdose.

Na Baixa do Funchal, há quase sempre muita droga disponível, diz Amaral. “Houve aí uma abordagem da polícia no outro dia, uma rusga. No dia seguinte, estava tudo ralinho, ralinho. Não havia nada. Passei dois dias sem consumir, um deles a dormir. Quando há, a primeira coisa a fazer é ir comprar. Se eu tiver 20 euros, gasto cinco para comer e 15 para o bloom”, conta.

“Vamos a vários bairros comprar. Tem na Nazaré, tem em Santo Amaro (Funchal), tem nas Malvinas (Câmara de Lobos). E tem aqui perto: atrás do Mercado dos Lavradores, junto ao talho da esquina.”

Ali sentados, fumam a qualquer hora do dia; ou no cais, onde ainda há pouco tempo, no final de Junho, um rapaz de Santo Amaro mergulhava, despreocupado, num dia de muito calor. Tudo parecia estar bem. Vanessa lembra-se de ver a ambulância na praia, quando soube que algo terrível se passara com o amigo.

O rapaz que, dias antes, estivera nos serviços da Associação Protectora dos Pobres, com Roberto Aguiar, a tratar dos papéis para pedir um cartão do cidadão, divertia-se com outros. Era o único dentro de água.

Um deles regista no telemóvel um pequeno vídeo, banal até ao momento em que a imagem pára de modo brusco. Nele, começa por se ver o jovem vestido a mergulhar uma vez, a reaparecer sorrindo e a sacudir a água do cabelo. Quando mergulha de novo, com as pernas esticadas, a última coisa que se vê são os seus pés a desaparecer dentro de água. E, sem que nada o fizesse prever, não ressurge ao de cima, nunca mais. Nota - Mário, Joaquim, Marcelo, Amaral, Amélia e Vanessa são nomes fictícios (Publico, reportagem da jornalista Ana Dias Cordeiro  e Miguel Nóbrega, fotografia)

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