sábado, julho 22, 2023

Zanga desvenda financiamento ilegal na campanha do Chega

Ex-candidatos avançaram com verbas para as autárquicas, sem cobertura legal. E ninguém lhes pagou. Órgão que fiscaliza as contas dos partidos pediu auditoria. Vários candidatos do Chega às eleições autárquicas de 2021 acusam a direção de André Ventura de nunca ter cumprido a promessa de lhes devolver o dinheiro que avançaram, a título pessoal, para cobrir as despesas da campanha. A história podia ser apenas a de um desentendimento interno, mas neste caso representa um problema maior para o partido: o incumprimento da lei que define as regras de financiamento das campanhas eleitorais.

Inicialmente, o Expresso recebeu queixas de candidatos a autarquias alentejanas, nomeadamente Portalegre, mas os casos de “ilícitos financeiros” espalham-se por outras zonas do país: “Apesar de ter sido eleito, o dinheiro que gastei na campanha nunca me foi devolvido”, ouviu o Expresso de um atual vereador do Chega, que pediu para não ser identificado para não sofrer “ainda mais represálias” por parte da direção. Este vereador prefere não dizer quanto dinheiro gastou na sua campanha de 2021, mas garante que desde que entrou para o partido já deu por perdidos entre €30 mil e €40 mil — entre campanhas, manifestações, jantares e outros eventos. “Aqui no distrito todos os candidatos tiveram de avançar dinheiro próprio [nas autárquicas]. A única coisa que a direção prometeu foi ajudar com brindes e material, e mesmo assim alguns municípios receberam mais do que outros”, explica.

Segundo a Lei do Financiamento Partidário, as campanhas das autárquicas só podem ser financiadas de duas formas: através das subvenções estatais e das contribuições financeiras dos próprios partidos. Os partidos podem ainda pedir adiantamentos (um empréstimo bancário, por exemplo) para os seus candidatos e pagar esse empréstimo após o ato eleitoral.

“O partido não deu um cêntimo à minha campanha. Prometeram-me €1000 para ajudar a comprar panfletos e outdoors, acabei por gastar €2 mil do meu bolso”, diz Amílcar Pires, que se candidatou à autarquia de Nisa

Dois meses antes das eleições, André Ventura convocou uma reunião na sede do Chega, em Lisboa, com todos os líderes das distritais. No encontro terá sido prometido — de acordo com várias fontes — que o partido iria ajudar com material de campanha (panfletos, brindes, etc.), que cada concelhia teria direito a um outdoor e que seriam disponibilizadas verbas para as distritais dividirem pelas concelhias. No entanto, Ventura nunca se comprometeu com um valor.

“O partido não deu um cêntimo para a minha campanha. Prometeram-me mil euros para ajudar a comprar panfletos e outdoors, acabei por gastar cerca de €2 mil do meu bolso”, diz Amílcar Pires, mediador de seguros que se candidatou à autarquia de Nisa. “O Júlio [Paixão] disse que iam mandar as faturas para o partido de forma a recebermos o dinheiro… até hoje.”

Júlio Paixão foi líder da distrital de Portalegre entre 2019 e abril do ano passado, tendo organizado vários eventos importantes no crescimento do partido, como a apresentação da candidatura de André Ventura a Belém. “Disseram-me que quando o dinheiro estivesse disponível tudo seria pago, mas eu estava anestesiado e só via o Chega à frente”, lamenta ao Expresso. E conta que nos três meses de trabalho para as autárquicas chegou a enviar várias faturas de gastos para o mandatário financeiro do partido, Rui Paulo Sousa, agora deputado eleito por Lisboa. O dinheiro foi-lhe sempre prometido para depois, quando houvesse possibilidade, “mas nunca chegou”. “Eu insistia sempre com o Rui, ele dizia que ‘estava a ser tratado’, até que chegou uma altura em que disse mesmo: ‘Paixão, vou ser sincero contigo, não há dinheiro, não temos dinheiro’.” Só nesse período eleitoral diz ter pago mais de €2,5 mil para ajudar várias campanhas no distrito. “E já desconto a avaria da carrinha, usada ao serviço do partido, que me ficou por €1500”, acrescenta.

“TUDO FORA DO QUADRO LEGAL”

“É uma forma de financiamento que não está nos termos da lei”, diz ao Expresso Margarida Salema, ex-presidente da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP). “Parece ter sido tudo feito fora do quadro legal e à base de financiamento informal.” Não há um ilícito criminal, mas “há claramente um ilícito financeiro”, acrescentando que o mandatário financeiro do partido nessa altura (Rui Paulo Sousa) pode incorrer em sanções que podem ir até aos €38 mil. “Um candidato não pode financiar a sua própria campanha”, explica Salema.

“É uma forma de financiamento que não está nos termos da lei”, diz Margarida Salema, ex-presidente da ECFP. “Parece ter sido tudo feito fora do quadro legal e à base de financiamento informal”

Segundo a legislação relativa às contas das campanhas eleitorais, não são permitidos donativos de pessoas singulares nas autárquicas (com exceção de grupos de cidadãos eleitores), ao contrário do que acontece nas eleições presidenciais. Os partidos podem fazer contribuições às contas das campanhas municipais, podendo eventualmente fazer adiantamentos ao candidato por conta da subvenção que possam vir a receber — mas só os partidos podem fazer esses adiantamentos, não os candidatos. “Se os candidatos se autofinanciaram, então nem eles nem o mandatário financeiro seguiram as regras das despesas eleitorais em campanha”, sublinha Margarida Salema.

Nuno Afonso, ex-militante do Chega e coordenador autárquico em 2021, não estranha as perguntas sobre este assunto. “É verdade que ouvi algumas queixas [de candidatos]. Desde o início que o André [Ventura] decidiu que os valores que o partido viesse a receber das subvenções não seriam devolvidos, mas investidos no partido, e eu sempre disse isso nas duas convenções autárquicas que organizei. Mas alguns candidatos disseram-me que o André e o Rui Paulo Sousa lhes prometeram devolver o dinheiro caso fossem eleitos”, afirma, ele que foi eleito vereador por Sintra há dois anos.

AUDITORIA A CAMINHO

O Expresso confirmou mais de uma dezena de possíveis de irregularidades, comparando os valores que os candidatos dizem ter gasto com as contas de campanha que o partido é obrigado a apresentar à ECFP. Várias das irregularidades são fáceis de detetar, como a tabela que o partido enviou para a ECFP referente ao município do Crato, por exemplo, estar completamente ‘a zeros’: zero euros angariados, zero euros gastos, zero euros em receita.

Ora, o candidato do Chega ao Crato conta uma história diferente: “Entre viagens, estadas, publicidade, aluguer de veículos… a minha candidatura deve ter-me custado uns €18 mil”, diz António Pinheiro, empresário da zona Norte e à época militante do Chega, que aceitou o desafio de ir concorrer a uma terra alentejana onde ninguém o conhecia.

“Havia a informação de que a Direção Nacional devolveria uma verba após as eleições, mas eu já sabia que era um investimento a fundo perdido”, e ainda ajudou financeiramente campanhas à volta no distrito de Portalegre. A sua mulher concorreu à vice-presidência da Trofa: investiu €500 em panfletos e outdoors, que “tinham sido prometidos pelo partido e depois…”.

Júlio Paixão, ex-líder da distrital de Portalegre, chegou a enviar várias faturas de gastos para o mandatário financeiro do partido, Rui Paulo Sousa, agora deputado eleito por Lisboa. Nunca recebeu o dinheiro José Lérias candidatou-se pelo Chega à autarquia de Elvas, onde o tema da comunidade cigana dava palco mediático a Ventura. Estima em €4 mil o dinheiro que gastou do seu bolso durante a campanha. “Eu fui uma migalhinha. Há pessoas que investiram muito mais dinheiro do que eu. Ainda me sugeriram en­viar as faturas, deram-me o NIF [do partido], mas eu recusei”, refere o empresário. “Eu é que estou cá, as pessoas conhecem-me é a mim. O partido deveria ter avançado logo com o dinheiro — antes das eleições tinham pago às pessoas. Assim é que se trabalha”, opina José Lérias, que se desfiliou no dia seguinte às autárquicas e se considera “lesado” pelo partido, “tal como muitos outros”. De acordo com os dados que o Chega enviou ao ECFP, o partido declarou apenas cerca de €3,67 mil gastos na campanha em Elvas.

A ECFP não fez até agora uma auditoria às contas das últimas autárquicas, mas ao Expresso garante que esse processo está a ser feito numa “auditoria externa”, a que se seguirá um relatório público. O Chega não respondeu às questões enviadas pelo Expresso (Expresso, texto do jornalista TIAGO SOARES)

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