Tendência de aumento das dívidas dos estudantes que se começou a sentir nos anos da pandemia continua a afectar o ensino superior, à boleia do aumento do custo de vida. Os estudantes do ensino superior devem mais de 60 milhões de euros às instituições onde estão ou estiveram inscritos nos últimos anos. Este é um valor acumulado, com dívidas que em alguns casos remontam há oito anos, mas a situação tem-se agravado na sequência da pandemia de covid-19, à qual se juntam agora os efeitos do aumento do custo de vida. São cerca de 52 mil estudantes com prestações atrasadas, dos quais quase 6000 já têm os seus processos entregues à Autoridade Tributária para cobrança coerciva.
O PÚBLICO pediu dados sobre o valor de propinas em dívida a todas as 29 instituições públicas de ensino superior, tendo respondido à solicitação 19. Entre as que disponibilizaram os seus números, totalizam-se 58,4 milhões de euros, cujo pagamento por parte dos estudantes está atrasado. A este valor somam-se os 3,5 milhões de euros de propinas em atraso detectados por uma auditoria financeira da Inspecção-Geral de Finanças à Universidade de Évora, cujos resultados foram recentemente divulgados.
Ou seja, são quase 62
milhões de euros de propinas em atraso devidamente contabilizadas, faltando
ainda conhecer os números relativos a quase uma dezena de instituições de
ensino. A generalidade das instituições reporta apenas a dívida efectiva, pelo que
estão fora desta contabilidade os casos de estudantes que, tendo deixado de
pagar as propinas, chegaram a acordo com a sua universidade ou politécnico para
regularizarem a situação através de um plano de pagamento, uma possibilidade
introduzida pelo Governo em 2021 na sequência da pandemia de covid-19.
Os valores apurados pelo
PÚBLICO são resultado de dívidas acumuladas ao longo dos últimos anos. Em
regra, as dívidas relativas aos custos de frequência do ensino superior
prescrevem ao fim de oito anos.
O valor agora apurado pode
estar “algo inflacionado” por estarmos no final do ano lectivo, avisa o
presidente do Politécnico de Bragança, Orlando Rodrigues. “Muitos alunos deixam
as propinas para pagar o mais tarde possível”, pelo que poderão regularizar a situação
nas próximas semanas. Aquele responsável não deixa, porém, de reconhecer a
existência de uma “tendência” no período após a pandemia de aumento das
propinas por pagar, a que se junta agora as dificuldades provocadas pelo
aumento do custo de vida.
As propinas “são um
elemento muito susceptível a ser descurado” num cenário de dificuldade, quando
“a prioridade é a alimentação ou a saúde”, concorda o presidente da Associação
Académica de Coimbra, João Caseiro.
No actual contexto de
inflação e aumento dos custos com a habitação, “é compreensível que os bolsos
das famílias e dos estudantes estejam muito apertados”, prossegue o dirigente
estudantil. A Académica de Coimbra apresentou recentemente um estudo em que
concluía que a propina — actualmente fixada em 697 euros anuais — apenas pesa
11,85% nos custos totais de frequência do ensino superior.
A pesar na contabilidade do
valor de propinas em dívida está também o abandono precoce do ensino superior,
que subiu ligeiramente nos últimos dois anos. No primeiro ano lectivo afectado
pela pandemia (2019/2020), quebrou-se uma tendência de melhoria deste indicador
que se vinha verificando desde 2015.
Os dados sobre abandono do
ensino superior mais recentes dizem respeito ao ano lectivo 2020/2021 e foram
publicados há quase um ano pela Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e
Ciência, no portal Infocursos — está prevista uma nova actualização para as
próximas semanas. Segundo esses indicadores, a percentagem dos estudantes que
saíram do sistema de ensino durante o primeiro ano das suas licenciaturas subiu
de 9,1% para 10,8%.
“Alguma desta dívida é de
alunos que já abandonaram o ensino superior e não deram baixa”, alerta a
presidente do Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos,
Maria José Fernandes, revelando também a preocupação das instituições com os
impactos do aumento do custo de vida, que tem reduzido a capacidade financeira
das famílias.
Como o PÚBLICO já tinha
notado num trabalho idêntico feito no ano passado, a pandemia fez disparar as
dívidas. Os efeitos desses dois anos lectivos ainda se notam nos números agora
apurados.
Nas instituições onde se
nota um maior aumento do valor em dívida, como no Politécnico de Bragança (mais
um milhão de euros, totalizando 4,3 milhões), o Politécnico de Coimbra (duplicou,
passando para 2,2 milhões) ou Politécnico de Leiria (mais 760 mil euros,
alcançando 2,2 milhões), a justificação é sobretudo contabilística.
Em Janeiro deste ano,
passaram a ser incluídos no valor em dívida os últimos dois anos lectivos. “O
ano 2020/2021 foi mais crítico por causa da pandemia, o que poderá também
explicar as dificuldades dos estudantes em pagar os valores em dívida”,
justifica fonte da presidência do Politécnico de Leiria.
Há quatro instituições de
ensino — os politécnicos de Beja e Viseu, bem como a Universidade Aberta e a
Universidade de Coimbra, que se recusaram a divulgar o valor de propinas em
dívida que contabilizam. A reitoria da mais antiga universidade nacional
adianta apenas que essa contabilidade “tem-se mantido em valores estáveis desde
2019”.
Tal como aconteceu na
Universidade de Coimbra, nas maiores instituições como a Universidade de Lisboa
(total em dívida acima dos 15 milhões de euros) e a Universidade do Porto (as
propinas em atraso ascendem a 9 milhões de euros) o valor sofre poucas
variações face ao ano anterior. Apenas uma das maiores instituições de ensino
superior — a Universidade Nova de Lisboa — não respondeu à solicitação do
jornal.
Quase 6000 processos de
cobrança coerciva
Segundo os dados recolhidos
pelo PÚBLICO junto das instituições de ensino superior, há 51.909 alunos ou
antigos alunos com dívidas de propinas. Destes, 5966 têm já os seus casos
entregues à Autoridade Tributária, à qual a generalidade das instituições de
ensino passou a pedir a cobrança coerciva aos estudantes em incumprimento a
partir de 2015.
A esmagadora maioria destes
casos concentra-se na Universidade do Porto, que remeteu 4579 processos à
Autoridade Tributária. “Durante a pandemia, não o fizemos porque a situação
social assim o justificava, mas, entretanto, reiniciou-se o processo normal de
cobrança coerciva das propinas, que é algo que não nos é propriamente
agradável, mas a que não nos podemos furtar”, explica o reitor daquela
instituição, António Sousa Pereira.
As propinas são consideradas uma taxa devida ao Estado e, nos últimos anos, tanto o Tribunal de Contas quanto a Inspecção-Geral de Finanças chamaram a atenção de universidades e politécnicos em diferentes relatórios de auditoria, como agora aconteceu com a Universidade de Évora, apontando a necessidade de serem criados mecanismos mais eficazes de cobrança de propinas junto dos alunos, face às elevadas dívidas existentes (Publico, texto do jornalista Samuel Silva)
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