segunda-feira, julho 17, 2023

Procuradoria Europeia investiga fraudes no PRR em Portugal

Dois inquéritos foram abertos em 2022, mas esse número “já está desactualizado”, diz o procurador José Guerra. Organismo Europeu de Luta Antifraude também investiga infracções. A Procuradoria Europeia (EPPO na sigla inglesa) está a investigar eventuais casos de fraude no uso de fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) em Portugal. No final do ano passado, já havia dois inquéritos a decorrer, um dos quais relativo ao apoio à empresa Pluris Investments pelo Banco Português de Fomento, mas esse número "já está desactualizado", confirma o procurador José Guerra, representante português no órgão máximo daquela entidade, o colégio de procuradores.

A 31 de Dezembro de 2022, a EPPO tinha 15 processos relativos ao PRR em quatro países. A Itália tinha o maior número de investigações em curso (nove), seguida da Roménia (três), de Portugal (dois) e da Croácia (um), segundo o relatório anual daquela entidade, disponível online.

Sem adiantar detalhes sobre o número actual de inquéritos relativos ao PRR, e a evolução desde 1 de Janeiro deste ano, José Guerra frisa, em declarações ao PÚBLICO, que aqueles dois em Portugal "eram um número verdadeiro a 31 de Dezembro de 2022, mas nesta altura já está desactualizado".

Numa altura em que Bruxelas já transferiu 153,4 mil milhões de euros, em montantes diversos, para 27 Estados-membros da União Europeia (UE), a EPPO não é a única entidade europeia a escrutinar o uso destes fundos de apoio à recuperação económica pós-covid e que são pagos através do Mecanismo de Recuperação e Resiliência (MRR). Também o Organismo Europeu de Luta Antifraude (OLAF, na sigla inglesa) tem inquéritos a correr, tal como confirmou ao PÚBLICO, embora sem revelar se Portugal é um dos países visados. Neste momento, há um número de investigações em curso por causa de alegadas irregularidades com esses fundos em vários Estados-membros

OLAF, gabinete de imprensa, ao PÚBLICO

"O OLAF está, de facto, a avaliar o uso de fundos do MRR em diferentes Estados-membros. Neste momento, há um número de investigações em curso por causa de alegadas irregularidades com esses fundos em vários Estados-membros. Não estamos em posição de especificar quais os países envolvidos nesta altura", respondeu o gabinete de imprensa deste organismo.

"Mais genericamente, o OLAF não comenta casos que está ou não a investigar, para proteger a confidencialidade da investigação e possível actuação judicial subsequente, bem como para assegurar o respeito pelos dados pessoais e direitos processuais", acrescenta a mesma fonte.

OLAF e EPPO cooperam

​​Embora pareça haver duas entidades europeias a escrutinar a mesma coisa, OLAF e EPPO têm actuação complementar e cooperam. O OLAF tem como missão detectar, investigar e pôr termo à utilização fraudulenta de fundos da UE, actuando no plano administrativo. Se encontrar indícios de matéria criminal, envia os casos para a EPPO, que tem poder de investigação e acção penal, podendo levar a julgamento nos próprios tribunais nacionais quem cometa infracções lesivas do orçamento da UE.

O relatório de 2021 (cobrindo de facto sete meses) ainda não tinha referências ao PRR. A EPPO nasceu em 2017, tendo jurisdição sobre 22 Estados-membros, mas só arrancou efectivamente em Junho de 2021.

José Guerra, que termina em breve o seu mandato na EPPO, não revela detalhes sobre os processos em curso. Mas é público que um dos dois casos que envolvem o PRR português, e reportados em 2022, envolve a empresa Pluris Investments, do empresário Mário Ferreira.

Essa empresa tinha-se candidatado a um apoio do PRR para a capitalização de uma empresa de barcos turísticos. A candidatura foi submetida a um dos programas do Banco Português de Fomento, que gere um fundo com 1300 milhões de euros do PRR (e que até hoje poucos resultados apresenta).

O banco aprovou uma ajuda de quase 40 milhões, no fim de Junho de 2022, sob a forma de empréstimo. Mas o empresário desistiu desse apoio, anunciando um mês depois, que preferia vender activos para financiar um aumento de capital, após intensa polémica que a decisão do banco levantou.

Apesar desse recuo em relação às verbas do PRR, o inquérito europeu permanece aberto até porque visa outros negócios de empresas daquele gestor, que também está a ser investigado em solo nacional no âmbito de outros processos.

Não foi possível apurar o segundo caso português relativo a 2022. Nenhuma autoridade nacional com responsabilidade na gestão do PRR revelou ter conhecimento do que estava, segundo apurou o PÚBLICO. Mas José Guerra esclarece que a EPPO não "investiga nas costas dos países", recorrendo às entidades nacionais com intervenção nos fundos.

Chamámos a atenção para as nossas necessidades em termos do apoio que vamos necessitar quando as investigações efectivamente avançam e para os pontos débeis do controlo de fundos em Portugal

José Guerra, representante português no colégio de procuradores da Procuradoria Europeia

"A Procuradoria teve muitas interacções com a Estrutura de Missão Recuperar Portugal, com a Agência para o Desenvolvimento e Coesão e com a Inspecção-geral das Finanças", destaca o representante português na cúpula da EPPO.

"Chamámos a atenção para as nossas necessidades em termos do apoio que vamos necessitar quando as investigações efectivamente avançam e para os pontos débeis do controlo de fundos em Portugal, de modo a podermos estabelecer formas de colaboração expeditas. Eles é que são os peritos, nós fazemos a investigação, é preciso que ajudem a separar o trigo do joio."

1400 milhões ficaram no Estado

Portugal recebeu até agora 5182 milhões de euros do MRR, relativos a um adiantamento em Agosto de 2021 e dois desembolsos (Maio de 2022 e Fevereiro de 2023).

Desse montante, a entidade nacional que gere o PRR regista à data de hoje pagamentos efectivos de 2166 milhões de euros. No relatório da Estrutura de Missão Recuperar Portugal, cerca de um terço (720 milhões) desses pagamentos foram ao sector privado (empresas, famílias e entidades do sector social) e o resto teve como destino os cofres de entidades públicas diversas.

Porém, mesmo neste último caso, o dinheiro pode ter ido parar à economia privada, via fornecedores do Estado pagos pela aquisição de bens ou serviços.

José Guerra alerta que os meios disponíveis para escrutinar a aplicação de todo este dinheiro são escassos e "desadequados". Mais ainda quando o próprio Ministério Público português, no âmbito da Comissão de Auditoria e Controlo, emitiu pareceres críticos aquando dos dois pedidos de pagamento enviados a Bruxelas.

O MP nacional já identificou diversas "fragilidades", que abrangem desde o modelo de governação e passam também pelo sistema de controlo interno. Apesar de melhorias entre os dois pedidos de pagamento, há deficiências que permanecem. O risco de duplo financiamento (que é um dos usos indevidos do PRR) continua sem controlo nacional adequado.

Ao todo, o MRR tem 750 mil milhões de euros. Itália (191,5 mil milhões) e Espanha (160 mil milhões de euros) serão os principais beneficiários. Portugal receberá 22.200 milhões, dos quais 74% (pouco mais de 16.300 milhões) a fundo perdido, se vir aprovada a revisão do PRR, em análise na Comissão Europeia.

As transferências entram nas contas nacionais e, a partir daí, escapam ao controlo europeu, como assinalou o Tribunal de Contas Europeu, após uma auditoria que suscitou um relatório crítico publicado já em Março deste ano.

Os auditores alertaram que o MRR não dá garantias de protecção dos interesses financeiros da UE e abre a porta a sérios riscos de fraude, uso indevido de verbas e desrespeito das leis europeias e nacionais, nomeadamente no que toca à contratação pública, aos auxílios estatais e à elegibilidade. com Mariana Oliveira

Investigação reforçada em Setembro, "mas ainda não chega"

Portugal tem quatro procuradores europeus delegados que trabalham localmente, em total autonomia face às autoridades nacionais. No entanto, é um número insuficiente e por isso, no final de 2022, foi pedido a Portugal um reforço que só chegará em Setembro. Serão mais dois procuradores, um número mesmo assim insuficiente tendo em conta o número de processos e a complexidade dos mesmos, sublinha José Guerra, representante português no colégio de procuradores, que funciona como órgão de gestão da Procuradoria Europeia (EPPO, na sigla inglesa).

"Fizemos um pedido formal para alterar esse número de quatro procuradores europeus delegados, quando eu e a procuradora-geral europeia visitámos Portugal, no final de 2022", recorda Guerra, em delcarações ao PÚBLICO.

O pedido, ou proposta de reforço, foi apresentado à PGR e ao Ministério da Justiça. "Defendemos que aquele número precisa de ser actualizado, não só porque o número de processos pendentes estava já a crescer rapidamente, como também pela complexidade muitíssimo elevada, e pelos processos muito sensíveis que temos em mãos", recorda.

Quatro procuradores independentes pode parecer muito ou suficiente, mas dá-se o caso de dois deles estarem 100% dedicados às fraudes relacionadas com o IVA. Portugal é o epicentro de uma operação transnacional em 14 países, que envolve também a EPPO, e que tenta levar à justiça uma gigantesca fraude no IVA que terá causado 2200 milhões de euros de prejuízo aos cofres europeus.

Em Portugal, há 14 detidos e o prejuízo estimado é de 50 milhões de euros.

A EPPO actua sobretudo em casos de fraude em subsídios europeus e outros apoios financeiros, corrupção, branqueamento de capitais e fraude com IVA. José Guerra exemplifica a escala de complexidade daquela mega-operação, baptizada Admiral, com esta comparação: "Apreendemos informação sobre IVA que ultrapassa largamente toda a informação envolvida nos Panama Papers [que envolveu mais de 11 milhões de documentos ou 2,6 terabytes de dados digitais."

O impacto inicial dessa operação é brutal. Desde a sua divulgação, "houve uma quebra de 80% na actividade fraudulenta com IVA na Europa", aponta o mesmo responsável, o que demonstra também como é importante dedicar recursos em exclusivo para esses casos.

Sobram, portanto, dois procuradores europeus delegados para todo o resto. O pedido a Portugal foi que se passasse de quatro para oito, mas só foram disponibilizados dois, que só entram ao serviço em Setembro. "É um reforço tardio e que ainda não chega", conclui José Guerra, anotando que a falta de meios "dificultou enormemente a actividade" da EPPO em Portugal.

O Conselho Superior do Ministério Público relegou uma reavaliação da situação para Janeiro de 2024. Mas tendo em conta que Portugal tem quase 50 mil milhões de euros em fundos europeus para executar até 2027, o país precisa de reforçar-se quer na EPPO quer nas entidades nacionais responsáveis pelo escrutínio do uso desses fundos, conclui (Publico, texto do jornalista Vitor Ferreira)

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