sábado, setembro 10, 2022

Rússia é Golias da propaganda, mas a Ucrânia construiu um "ativo": seis meses de mentiras e verdades na guerra da informação

Para estimular os apoios dos EUA, da União Europeia e do Reino Unido à Ucrânia, Zelensky e a sua equipa de comunicação têm-se desdobrado ao longo de seis meses. A campanha de propaganda russa também opera a um ritmo frenético, mas é a "verdade" que se impõe como um "ativo" que seduz e retém a confiança do público. É o que explicam ao Expresso analistas das áreas de comunicação, diplomacia e ciência política "Não posso contar esta história, porque estou em Kherson, e Kherson está ocupada pelos russos." A partir do seu Facebook, Igor Kurayan responde ao Expresso com cautela. Depois, volta a desaparecer. Antes da guerra, como conta a CNN, o ucraniano, de 55 anos, originário da cidade portuária de Kherson, no sul da Ucrânia, era um jardineiro bastante ativo nas redes sociais. Palmeiras, bambu, abacates e romãs faziam parte daquilo a que chamava "jardim de conto de fadas" que tinha construído e que partilhava em fotografias.

Um dia depois de a Rússia ter invadido a Ucrânia, Igor Kurayan publicou uma 'selfie' no Instagram com uma 'rifle', anunciando que se tinha juntado às Forças de Defesa Territoriais, para combater pela Ucrânia. Logo depois, Kherson caiu nas mãos das tropas russas, e, no início de abril, depois de semanas de protesto contra a ocupação, Igor Kurayan foi supreendido por soldados russos quando regava as plantas. Viu-se então atirado para uma carrinha, sequestrado, com o iPhone confiscado e de mãos atadas enquanto as suas páginas no Facebook, Instagram e TikTok começaram a divulgar vídeos em que aparecia, magro e pálido, ladeado por dois homens armados e mascarados que seguravam a bandeira azul e amarela da Ucrânia e uma bandeira vermelha e preta (associada ao movimento nacionalista ucraniano). Nas suas redes sociais, era assim defendido que quaisquer atos de resistência eram inúteis, já que a Defesa Territorial se tinha desintegrado. E até mesmo que o governo de Zelensky deveria ser denunciado.

Depois de ter sido transferido de um porão em Kherson para um quartel em Sebastopol, na Crimeia, Kurayan foi filmado e apareceu numa reportagem sobre prisioneiros de guerra ucranianos, que, nas imagens, se encontravam a assistir à televisão estatal russa. Foi a assistir ao canal televisivo russo que compreendeu que o conteúdo propagado pelos 'media' russos é "mentiroso", mas também foi graças a essa reportagem que foi libertado.

MÁQUINA DE PROPAGANDA SÓ COMPARÁVEL À "ERA ESTALINISTA"

Facto: o número de sites de desinformação mais do que duplicou desde a invasão russa, em fevereiro, de acordo com a "Newsguard", que fornece classificações de credibilidade para plataformas online de notícias. Em março, os investigadores detetaram 116 sites que publicam desinformação relacionada com a guerra. Em agosto, esse número tinha subido para 250.

Os conteúdos falsos pró-Rússia incluem um vídeo falsificado ('deepfake') em que o Presidente ucraniano aparece a dizer às pessoas para se renderem, o uso de símbolos como a "Babushka Z" e tentativas de denegrir a imagem da Ucrânia. O site de notícias independente em língua russa "The Moscow Times" informou que o governo "aumentou drasticamente o financiamento para os órgãos de comunicação estatais durante a guerra", para um nível apenas comparável com a "era soviética Estalinista".

Moscovo alegou que aquilo a que chama "operação militar especial" foi iniciada para combater o nazismo no interior do governo ucraniano. As buscas por "nazis" na Rússia e em todo o mundo aumentaram na primeira semana da guerra. No entanto, os especialistas ouvidos pelo Expresso garantem que a máquina de propaganda russa não está a ter o efeito esperado (por Moscovo, pelo menos). 

"PASSÁMOS ANOS E ANOS A MONITORIZAR A DESINFORMAÇÃO RUSSA"

Em 2014, quando, em todo o território, a ingerência começou a ser, mais do que temida, uma realidade, surgiu o "StopFake", uma organização ucraniana sem fins lucrativos que se dedica a refutar a propaganda russa e os conteúdos falsos. Yevhen Fedchenko garante ao Expresso que, apesar disso, já circulava desinformação durante a Revolução de Dignidade, em 2014, e durante a Revolução Laranja, em 2004. "A Rússia está a construir a sua informação desde que a Ucrânia é independente. Usa muitos instrumentos da era soviética, e foram criadas muitas histórias para retratar a Ucrânia de uma forma mentirosa." Nesse pacote, cabiam as alegações de que a Ucrânia não é um verdadeiro país ou de que é um Estado falhado ou até de que o governo ucraniano é ilegal.

"Passámos anos e anos a monitorizar a desinformação russa e a expor os conteúdos falsos. Há tantas narrativas falsas que é possível encontrá-las em todas as plataformas, desde as mais tradicionais às mais alternativas. Podem ser bastante sérias ou muito cómicas." A Rússia foi acusada, no início do conflito, de recorrer a efeitos sonoros, de tiros e explosões, de um vídeo com mais de uma década, gravado em abril de 2010, durante um exercício militar finlandês; tudo para acusar a Ucrânia de lançar os primeiros ataques.

"Inventam algo e, depois, repetem-no tantas vezes e depois pensam que toda a gente acredita na história.Também é construída uma bolha de informação em torno das pessoas, para que elas não confirmem as histórias." Yevhen Fedchenko explica que a Rússia não tinha sequer de fazer grandes esforços, já que "a desinformação funcionava muito bem entre a audiência interna do país". Hoje, com o desenrolar do conflito a demonstrar-se cada vez mais desfavoráveis à Rússia, as preocupações começam a ser outras: "Tem havido desinformação no sentido de reivindicar que as operações militares têm visto algum sucesso." Por exemplo, a Rússia tem sustentado que "o número de localidades ucranianas capturadas ou o número de tropas que foram executadas são superiores", e alega até que foram "abatidos mais aviões do que os que a Ucrânia realmente possui", descreve o jornalista do "StopFake".

"Também alegaram que conseguiram intersetar e comprometer o armamento ocidental que tem chegado à Ucrânia, o que não é verdade. Declararam que extraviaram os HIMARS, os sistemas de lançamento de mísseis múltiplos, imediatamente, assim que chegaram às fronteiras ucranianas, e a Ucrânia ainda não perdeu nenhum. Ou que o apoio que o Ocidente dá à Ucrânia está a desaparecer aos poucos, de forma a desencorajar os parceiros ocidentais."

A Ucrânia é um Estado corrupto, acusam. O equipamento fornecido pelo Ocidente acabará no mercado negro, atiram, entre muitas histórias em torno das armas de destruição maciça, e de teorias da conspiração produtos de efabulação. De tanto analisar conteúdos, já sabe identificar padrões e não chega a ser surpreendido. "Dizem que há na Ucrânia laboratórios biológicos, criados pelo Pentágono, que conduzem experiências secretas, com o coronavírus e o Monkeypox, que os ucranianos estão a utilizar armas químicas contra a população no Donbas e que as tropas da Ucrânia estão a atacar Zaporíjia, para causarem um desastre nuclear", salienta o jornalista ucraniano.

Como são "anos e anos a repetir a mesma coisa", as autoridades russas "ainda pensam que muitas pessoas fora da Rússia acreditam nas histórias, e, por isso, traduzem-nas para diferentes línguas e disseminam-nas nas redes sociais". A decisiva batalha da propaganda: "No dia em que a Ucrânia perder o apoio da opinião pública ocidental, perderá a guerra".

E A UCRÂNIA? TAMBÉM MENTE?

Das "atrocidades" cometidas em Bucha, cujas versões russas foram completamente desconstruídas pela BBC e pelo jornal "The New York Times", às frequentes alegações de que não está a atacar alvos civis - com todas as evidências a apontarem o contrário -, a Rússia é campeã da desinformação.

Alex Hinton, diretor do Centro para o Estudo do Genocídio e Direitos Humanos da Universidade Rutgers, lembra que os ataques à liberdade de expressão e de imprensa cimentaram a mentira como forma única de contar a realidade. "Durante a guerra, todos os lados enquadram as informações de uma maneira que lança uma luz positiva sobre a sua causa. Não há dúvida de que a Ucrânia fez isso. Mas a desinformação mais evidente veio claramente da Rússia, que tem uma longa história de desinformação e manipulação dos 'media', e isso só piorou desde que reprimiu os órgãos de comunicação social, a internet, a sociedade civil e os dissidentes."

A Ucrânia, em oposição, faltará com a verdade quando faz estimativas das baixas russas, admite o analista. "Os números ucranianos de mortos e feridos russos provavelmente são um pouco inflacionados. Mas mesmo as avaliações mais conservadoras desses números confirmam que as perdas da Rússia são enormes. E, claro, é importante ter em mente que a Rússia matou um grande número de ucranianos desde que a guerra começou."

Keir Giles, especialista em questões de segurança que afetam a Rússia e as Forças Armadas da Federação Russa e diretor de investigação do Centro de Estudos de Conflitos, não conclui tão rapidamente que os cálculos ucranianos decorram de uma mentira deliberada. "Podem não ser apenas o resultado de padrões mais altos de evidência aplicados por outros relatórios - por exemplo, as contagens de baixas que são inteiramente baseadas em avisos de morte npos 'media' russos -, mas também porque as Forças Armadas e os serviços de informação ucranianos estão realmente na melhor posição para saber os números reais." Alexander Motyl, professor de Ciência Política na Universidade Rutgers-Newark, nos Estados Unidos da América, e autor de várias obras sobre a Ucrânia e a Rússia, acredita na versão contada pelos serviços secretos ucranianos: "Os ucranianos dizem que perderam cerca de nove mil homens, e os russos 45 mil. O meu palpite é que esses números são mais precisos do que as estimativas ocidentais. Em abril, o Ministério da Defesa russo disse ter recebido 42 mil pedidos de esclarecimento sobre soldados desaparecidos. Naquela época, a Ucrânia estimava que a Rússia havia perdido cerca de 30 mil, enquanto as estimativas ocidentais eram de cerca de cinco a dez mil."

Mas, se as baixas podem ser motivo de discórdia, os crimes de guerra reúnem o consenso dos analistas. Luke March, investigador de Política Pós-Soviética e Comparada da Universidade de Edimburgo e vice-diretor do Centro Russo Princesa Dashkova, diz, no entanto, que existe uma "minimização ou falta de ação" por parte da Ucrânia em relação aos "crimes de guerra ucranianos", algo que a Amnistia Internacional tem também apontado. É o mesmo Estado que falha "ligando o bombardeamento da Rússia, perto de Babyn Yar, em março, ao nazismo na Rússia".O ataque ocorreu perto de Babyn Yar, mas, na perspetiva do investigador, "é mais provável que tenha sido um ataque mal direcionado à torre de televisão do que tenha sido fixado como alvo deliberado um memorial do Holocausto".

"A Ucrânia não reconheceu a responsabilidade por várias explosões na Crimeia, satirizando a resposta russa e dizendo que os russos não devem fumar perto das munições", o que presumivelmente constituirá "uma tentativa de desorientar a máquina de propaganda russa", analisa Luke March.

Sinalizando uma contra-ofensiva em Kherson "que ainda não começou", a Ucrânia pode ter conseguido o oposto dos seus objetivos, com a Rússia a deslocar forças para o sudeste para reforçar posições. É uma mentira que Luke March diz ter um objetivo incerto: "Talvez o de prender o maior número possível de forças russas enquanto fura as linhas de abastecimento."

Académico, professor de diplomacia pública e historiador do papel da comunicação para as massas na política externa, Nick Cull também acredita que "houve alguns exageros na auto-representação de Kiev, particularmente quando o governo não se apressou a corrigir mitos urbanos que funcionam a seu favor, como a crença no piloto de caça que se tornou o 'fantasma de Kiev' nos primeiros dias da guerra".

QUEM ESTÁ A VENCER A GUERRA DA INFORMAÇÃO?

Para Nick Cull, a resposta é flagrante: a Ucrânia está isolada à frente, e "o contraste em relação a 2014 é surpreendente". Em 2014, a falta de reputação internacional da Ucrânia era uma "fraqueza estratégica", admite o analista. "Hoje, a sua reputação é um ativo. Há faixas de páginas da internet que são azuis e douradas. O público ocidental preocupa-se tanto com a situação que mil empresas retiraram-se da Rússia."

É o que, aliás, comentam todos os analistas, não ignorando a influência que a Rússia ainda exerce em países como a China, a Índia e alguns Estados africanos aos quais a narrativa anti-imperialista (sendo, neste caso, os EUA os potenciais "imperadores") se cola na perfeição.

"No Ocidente, a Ucrânia está claramente a ganhar esta guerra", diz Graeme Robertson, antigo diplomata em Bruxelas. "O público ocidental continua muito motivado e tocado pela tragédia que se abateu sobre a Ucrânia e pela coragem do seu povo e líderes. A Rússia é amplamente condenada pelo público ocidental. Na própria Rússia, é difícil dizer realmente, mas o apoio à guerra ainda parece significativo, talvez a enfraquecer um pouco.Dado o monopólio quase total das notícias e a dura repressão por parte do Estado russo, não é sequer uma guerra de informação, mas um 'gatekeeper' unilateral." A Rússia está ainda a sair-se "melhor em grande parte da África, Ásia, e especialmente Índia e China, onde a narrativa de que o Ocidente está a envolver-se desnecessariamente e de maneira imperialista parece ter-se difundido", afirma Graeme Robertson, que coordenou os esforços internacionais para apoiar a reforma da antiga URSS, e, mais tarde, discursou na conferência internacional da ONU sobre a antiga Jugoslávia.

Mais do que isso, é um ativo. A Ucrânia mostrou o poder da comunicação nos Negócios Estrangeiros contemporâneos, sublinha o investigador Nick Cull. "Faz um excelente uso dos meios de comunicação mais recentes, mas também teve a sorte de ser liderada pela figura talvez mais experiente em comunicação desde Churchill. O Presidente Zelensky fez um ótimo trabalho ao personificar a luta do seu país e ao construir a imagem de uma causa que muitos cidadãos no mundo desejam apoiar." A Ucrânia construiu aquilo a que Nick Cull chama "segurança reputacional", mas, como a próxima fase da guerra "é crítica", todo o cuidado é pouco. "A Rússia passou da alegação fantasiosa de que estava a lutar contra um regime nazi em Kiev para uma reclamação mais sonante de que o apoio estrangeiro está a prolongar a guerra, teoria que está a ganhar força junto da esquerda política em alguns países da NATO. Para mim, a questão é existencial. Queremos um mundo em que as fronteiras sejam traçadas pela violência? Se a Ucrânia for remodelada dessa maneira, quem será o próximo? O mundo precisa de segurar e manter esta linha” (Expresso, texto da jornalista Catarina Maldonado Vasconcelos)

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