A cooperação entre Rússia e China nesta guerra narrativa tem-se intensificado. Ambos os regimes desafiam a “ordem internacional baseada em regras” que emergiu após a II Guerra Mundial. A desinformação já não se resume a notícias falsas ou mentiras descaradas. A Rússia e, cada vez mais, a China estão a investir em estratégias sofisticadas e persistentes para moldar perceções globais e enfraquecer a imagem das democracias ocidentais. Através de uma manipulação calculada da informação, estes regimes procuram apresentar o autoritarismo como modelo de estabilidade e o Ocidente como exemplo de declínio.
No site ‘The Conversation’, Aiden Hoyle, professor assistente em Inteligência e Segurança do Instituto de Segurança e Assuntos Globais da Universidade de Leiden, nos Países Baixos, explicou esta nova forma de guerra informativa vai muito além da simples propaganda. Baseia-se na seleção intencional de factos convenientes e na omissão de contextos que possam contrariar a narrativa desejada. Assim, o que parece verdade é, muitas vezes, uma construção cuidadosamente dirigida.
O Kremlin há muito domina esta arte. Utiliza meios de comunicação estatais, plataformas terceirizadas e redes de bots para difundir um fluxo constante de mensagens — artigos, vídeos e publicações — desenhadas para dividir e polarizar o debate político em sociedades democráticas. Estas mensagens acabam replicadas por meios de comunicação locais, comentadores e utilizadores de redes sociais, multiplicando o seu alcance.
Um tema recorrente é o retrato das democracias como caóticas e em colapso. A cobertura tende a exagerar fenómenos como criminalidade, protestos ou crises políticas, reforçando a ideia de que a liberdade leva à desordem. Em paralelo, valores progressistas — dos direitos LGBTQ+ ao multiculturalismo — são frequentemente caricaturados, apresentados como absurdos ou desestabilizadores. Outra técnica eficaz é explorar queixas reais e amplificá-las de forma enviesada. Nos Estados Bálticos, por exemplo, a imprensa russa dá grande destaque à alegada perseguição de falantes de russo, quase sem espaço para visões alternativas. O mesmo padrão repete-se em comunidades online como a chamada “manosfera”, onde narrativas de vitimização e ressentimento encontram terreno fértil.
A frente comum entre Moscovo e Pequim
A cooperação entre Rússia e China nesta guerra narrativa tem-se intensificado. Ambos os regimes desafiam a “ordem internacional baseada em regras” que emergiu após a II Guerra Mundial, e que consideram eurocêntrica e contrária aos seus interesses. Esta parceria vai além da política e da economia: manifesta-se também na esfera mediática. As duas potências difundem histórias que retratam o Ocidente como hipócrita e neocolonial, enquanto se apresentam como defensores da soberania e da justiça global. As divisões internas da União Europeia ou da NATO são frequentemente amplificadas para sugerir fragilidade, em contraste com a suposta coerência dos regimes autoritários.
Por que estas histórias funcionam
Estas narrativas encontram eco, sobretudo, em países em desenvolvimento, onde as críticas ao colonialismo e às desigualdades globais permanecem vivas. As mensagens russas e chinesas aproveitam-se de elementos verídicos — crises económicas, desigualdade ou incoerências da política externa ocidental — para ganhar credibilidade. No entanto, a forma como as histórias são contadas distorce a realidade: omitem dados, misturam especulação e emoção, e apelam à indignação do público. A guerra na Ucrânia tornou-se um exemplo claro. A desinformação apresenta os governos ocidentais como traidores das suas populações, acusando elites corruptas de sacrificar cidadãos comuns em conflitos distantes. A simplicidade e o dramatismo destas narrativas garantem a sua viralidade, mesmo quando desprovidas de rigor.
Uma ameaça silenciosa à perceção da verdade
A desinformação atual é menos sobre mentiras explícitas e mais sobre moldar, de forma impercetível, a forma como o mundo é compreendido. Ao explorar o poder emocional das histórias, Rússia e China constroem lentamente uma realidade alternativa, na qual as democracias são vistas como frágeis e a autoridade como sinónimo de ordem. Com o tempo, este processo pode corroer algo mais profundo do que a confiança nos meios de comunicação: pode levar sociedades inteiras a questionar o próprio valor da democracia (Executive Digest, texto do jornalista Francisco Laranjeira)


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