sábado, agosto 26, 2023

Rússia: A estrada de sangue dos que ousaram enfrentar Putin



Oligarcas mortos em circunstâncias estranhas, dissidentes políticos envenenados, jornalistas mortos a tiro. O percurso de Putin desde que chegou ao poder em 2000 é assinalado por um rasto de sangue. Yevgeny Prigozhin e Dmitri Utkin, patrões do grupo Wagner, podem ter sido os casos mais recentes. O uso imoderado da força marca a era Putin na Rússia. No plano interno, a reação policial a um sequestro de reféns num teatro de Moscovo por terroristas chechenos (2002) saldou-se por 171 mortos, na maioria civis. No plano externo, os bombardeamentos indiscriminados de cidades tornaram-se imagem de marca das intervenções militares russas, primeiro na Chechénia (2000), depois na Síria (2015-16), seguindo-se os ataques com mísseis e drones na Ucrânia desde fevereiro de 2022.

Estas práticas têm correspondência na forma como a polícia ou os serviços secretos russos lidam com a dissidência política, os jornalistas ou o poder económico desalinhado do regime: intimidação, processos judiciais fabricados e, se necessário, atentados à bala, com veneno ou por outros meios, maquilhados de acidente, doença súbita ou causas desconhecidas.

Entre 2004 e 2020, um inventário não exaustivo feito pelo Expresso dá conta de cinco atentados mortais, a que acrescem cinco tentativas frustradas contra a vida de pessoas que, de uma forma ou doutra, incomodavam o senhor do Kremlin. A estes há que juntar um leque de casos suspeitos envolvendo mortes supostamente acidentais de oligarcas, sobretudo de há um ano para cá. À liquidação física de pessoas junta-se a caça às ONG e à imprensa independente.

ASSASSINADOS

ANNA POLITKOVSKAYA

Jornalista de investigação, trabalhava para a publicação independente “Novaya Gazeta”, tendo-se notabilizado pelas suas reportagens sobre abusos da tropa russa na Chechénia. Morta a tiro no seu apartamento em Moscovo em 2006. Os suspeitos, detidos pelas autoridades, incluíam chechenos e elementos próximos dos serviços secretos, mas o caso nunca ficou esclarecido. Segundo os Repórteres Sem Fronteiras, foram mortos na Rússia 18 jornalistas desde a chegada de Putin ao poder.

ALEXANDER LITVINENKO

Ex-espião soviético, estava refugiado em Londres e era crítico acérrimo de Putin. Foi envenenado com um isótopo altamente radioativo e tóxico de polónio em 2006. A investigação judicial britânica identificou dois agentes do FSB (antigo KGB) como autores do crime.

ALEXANDER PEREPILICHNI

Ex-oligarca, colaborara com a polícia em 2009 na investigação de esquemas de lavagem de dinheiro na Suíça e refugiara-se no Reino Unido. Foi encontrado morto nos arredores de sua casa, em 2012, depois de ter saído para fazer uma corrida a pé, com resíduos de uma substância vegetal venenosa (gelsemiun) no estômago.

BORIS BEREZOVSKY

Oligarca, tinha entrado em rutura com Putin e estava radicado em Inglaterra. Ex-colaborador do Presidente russo, foi encontrado enforcado na sua casa em Londres, em 2013. Um suposto suicídio que levanta muitas interrogações.

BORIS NEMTSOV

Antigo vice-primeiro-ministro e ministro da Energia, opositor político de Putin. Foi mortalmente baleado com quatro tiros em Moscovo, em 2015, na véspera de uma grande manifestação contra Putin que aquele opositor ajudara a convocar. Foram condenados como autores materiais do crime cinco chechenos, mas não se apuraram os autores morais.

SOBREVIVENTES

VIKTOR YUSCHENKO

Candidato presidencial ucraniano que se opunha ao pró-russo Yanukovich, foi envenenado em 2004 com dioxina, o que o deixou desfigurado e obrigando a uma lenta recuperação.

VLADIMIR KARA-MURZA

Jornalista e ativista político, começou a estar ma mira do Kremlin a partir de 2015. Alvo de pelo menos uma tentativa de envenenamento. Refugiado na Alemanha, em 2017, foram encontrados no seu organismo doses anormais de metais pesados como mercúrio, manganésio e zinco.

SERGEI E YULIA SKRIPAL

Este ex-espião russo e a sua filha foram encontrados inconscientes na via pública, em 2018, na cidade britânica de Salisbúria. Os sintomas apontavam para envenenamento com agente neurotóxico do tipo novichok (desenvolvido na União Soviética no tempo da Guerra Fria). Moscovo rejeitou qualquer envolvimento no ataque.

ALEXEI NAVALNY

O mais conhecido e combativo dos opositores políticos de Putin, sistematicamente impedido de fazer campanha pública ou mesmo de se apresentar a eleições por sucessivos subterfúgios judiciais, em 2020 esteve à beira da morte num voo comercial para a Sibéria. Levado posteriormente para uma clínica alemã e tratado, revelou sintomas de exposição a um agente neurotóxico do tipo novichok.

ROMAN ABRAMOVICH

O conhecido oligarca russo, durante muito tempo próximo de Putin, envolveu-se por conta própria em contactos visando a paz na Ucrânia. Em abril de 2022, depois de uma reunião ocorrida em Kiev, o bilionário e outras pessoas presentes apresentaram sintomas ligeiros de intoxicação por gás neurotóxico. O caso foi interpretado como aviso dos serviços secretos russos ao ex-dono do Chelsea.

Sucessão de mortes suspeitas

Desde o início da guerra na Ucrânia multiplicaram-se casos de mortes suspeitas de oligarcas ou figuras públicas russas, algumas fora do território nacio­nal. São 30 óbitos não necessariamente relacionados, mas cujas circunstâncias não deixaram de levantar interrogações. Incluem altos quadros da empresa energética Gazprom (Leonid Schulman, 30/1/2022, suposto sui­cídio; Alexander Tyulyakov, 25/2/2022, causas desconhecidas; Vladislaz Avayev, que terá morto a família a tiro antes de se suicidar). Alguns episódios são particularmente sangrentos, como o que envolveu o magnata do gás natural Sergei Protosenya. Terá esfaqueado a mulher e a filha em Espanha e depois posto termo à vida.

Alguns pareciam padecer de problemas de equilíbrio: Ravil Maganov, presidente da petrolífera Lukoil, caiu de uma janela do hospital central de Moscovo, enquanto Andrei Krukovsky, diretor de uma estância de esqui em Sochi, sofreu (1/5/22) queda fatal numa ravina. Anatoly Gerashchenkon, antigo responsável aeroespacial e próximo de Putin, também se despenhou por umas escadas no local de trabalho (21/9/22), enquanto o milionário da construção Dmitry Zelenov se sentia mal ao subir as escadas de casa, em França, e falecia no início de dezembro do ano passado. No dia de Natal, Pavel Antovo, magnata do agroalimentar, caía do terceiro andar de um hotel na Índia. Este ano, a 15 de fevereiro, Marina Yankina, responsável do Ministério da Defesa em São Petersburgo, morreu em consequência da queda de um 16º andar.

Liquidação de ONG e jornais

Coerente com a liquidação física de oposicionistas, generalizou-se na Rússia de Putin a liquidação de quaisquer organizações independentes, fossem estas associações ou meios de comunicação. Foi assim que a associação Memorial, no mesmo dia em que era distinguida com o Nobel da Paz (outubro de 2022), foi extinta pelas autoridades de Moscovo. Fundada em 1989 por antigos dissidentes soviéticos, como o físico e prémio Nobel Andrei Sakharov, empenhara-se durante décadas na investigação de crimes e perseguições ocorridos durante a era soviética. Também todos os media independentes, do site Meduza à “Novaya Gazeta” (onde trabalhara Politkovskaya), tiveram de passar a operar a partir doutros países (Expresso, texto do jornalista Rui Cardoso)

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