sábado, agosto 26, 2023

Madeira, regionais-2023: Na Madeira, o “turismo de vento em popa” não está a chegar à vida das pessoas

A um mês de eleições regionais, a habitação, as desigualdades e as divergências internas em vários partidos têm marcado uma pré-campanha ainda amena. Final do dia, hora de ponta. Numa das laterais da Praça da Autonomia, no centro do Funchal, ilha da Madeira, Carlos Melino aguarda na paragem de autocarros. Está de frente para os cartazes de diferentes forças políticas, que por esta altura preenchem as artérias da cidade. As eleições regionais são daqui a pouco menos de um mês, a 24 de Setembro, mas o homem de 64 anos “não quer ouvir falar de política”. “Eu não sei se vou votar. Nem sei onde vou morar. Não acredito no que dizem”, começa por dizer ao PÚBLICO, enquanto aponta para as figuras dos candidatos. Carlos Melino vai ter de abandonar o local onde vive há três anos porque a proprietária, que vive fora da Madeira, vendeu o edifício. Já começou a transportar os pertences para casa de um amigo, enquanto aguarda pela acção de despejo. “Ando aí à procura de casa, mas as casas que estão a aparecer aqui na Madeira é só para quem tem dinheiro.”

Foi emigrante na Inglaterra durante 17 anos, voltou com a intenção de morar na zona velha do Funchal, onde nasceu, mas aquela “zona agora é só negócios”. “Eu sou doente, a minha mulher é doente. Estão quatro pessoas na casa e agora vão ter de sair não se sabe para onde”, explica, adiantando que procurou saber junto dos poderes públicos se poderia ter direito a uma habitação. “Seja qual for o partido, só querem saber das pessoas perto das eleições. Só dão casa a quem tem negócios.”

O relato na primeira pessoa espelha o desencantamento de uma parte da população com a classe política, um desafio das democracias contemporâneas, particularmente evidente nos períodos eleitorais. Na Madeira, o valor mediano do preço da casa por metro quadrado é de 1697 euros, superior à média nacional (1565 euros), figurando o arquipélago entre as quatro regiões com os preços de habitação mais altos do país – juntamente com Algarve e as áreas metropolitanas de Lisboa e Porto (segundo dados do Instituto Nacional de Estatística referentes ao primeiro trimestre).

A habitação tem sido um dos temas da pré-campanha eleitoral. Na quarta-feira, o líder do PS-Madeira, Sérgio Gonçalves, prometeu construir casas a preços acessíveis em todos os concelhos e criticou o governo regional por preferir “gastar 150 milhões de euros no prolongamento do molhe da Pontinha”, no porto do Funchal, “em vez de construir mais casas”.

A resposta veio no dia seguinte, com a coligação Somos Madeira, que junta PSD e CDS-PP (partidos que governam a região), a visitar um empreendimento habitacional em construção, em Santo António. Esta semana, Miguel Albuquerque, que por estes dias tem vestido mais o fato de presidente do executivo regional do que o de candidato, prometeu investir 6,3 milhões de euros para 30 fogos com rendas acessíveis.

Divergências internas e novos partidos

José Almeida aguarda pelo autocarro na mesma paragem de Carlos Melino. Está de pé, camisa às riscas e chapéu enfiado na cabeça para se proteger das elevadas temperaturas que sufocam o Funchal. Também ele está “desiludido com a política”, mas não vai deixar de votar. “Claro que é para votar. Eu voto sempre. É um dever cívico!”, afirma, deixando, contudo, um aviso: “Mas não tenciono votar em partidos em que votei no passado.”

Quando questionado pelos motivos da “desilusão” com a política, José Almeida, 74 anos, traz a resposta na ponta da língua. Durante a guerra do Ultramar, serviu em Moçambique durante três anos. Agora, diz, “ninguém quer saber” dos ex-combatentes. “Não dão nada aos combatentes. Sinto-me esquecido. Os problemas que eu passei lá já ninguém mos tira.”

Subindo a rua inclinada, numa das pontes que atravessam a ribeira em frente ao Mercado dos Lavradores, Horácio Brito expõe no chão as frutas para venda. O que “sai mais são as uvas”, mas o negócio “já esteve melhor”, confessa: “O custo de vida está pior. Os turistas já não são o que eram.”

Atrás de si estão os cartazes de CDU, Bloco de Esquerda (BE) e Iniciativa Liberal (IL), que “sempre servem para dar alguma sombra” – o da IL reivindica a criação de um gabinete contra a corrupção, uma exigência semelhante à do Chega nos Açores. Já a CDU tem denunciado as desigualdades e os baixos salários, enquanto o BE tem puxado pelos temas ambientais e pela necessidade do ordenamento do território.

As mensagens servem para puxar pela conversa. Horácio, natural da Serra de Água, freguesia da Ribeira Brava, localizada no interior da ilha, garante que vai votar nas próximas regionais. Gosta muito de política e já esteve envolvido em vários partidos, que ajudou em campanhas eleitorais. Teve até a ambição de fundar um partido, mas não “juntou as assinaturas suficientes”. Não deixa, ainda assim, de acreditar que “são precisas novas forças" na política madeirense: “Tem de haver gente nova a entrar e sair e são precisos mais partidos novos na Assembleia Regional.”

Actualmente existem cinco partidos no parlamento da Madeira: PSD (21 deputados), CDS-PP (três), PS (19), JPP (três) e PCP (um). Em pleno mês de Agosto, os partidos ainda correm a meio gás, mas para alguns o arranque foi atribulado e marcado por confrontos internos.

A começar pelo PS. O antigo líder, Emanuel Câmara, presidente da Câmara do Porto Moniz, veio a público criticar a constituição das listas (condenando, por exemplo, a presença do líder da JS-M em 21.º lugar) e acusar Sérgio Gonçalves de ser controlado por Paulo Cafôfo (candidato socialista nas últimas regionais e actual secretário de Estado das Comunidades).

As hostes socialistas estão igualmente alarmadas com as sondagens. A última, da Aximage para o Diário de Notícias e TSF-Madeira, atribui expressivos 49,6% a PSD/CDS-PP e apenas 13,5% ao PS; 8,7% para o JPP, 4,1% ao Chega, 3% à IL, 1,7% à CDU, 1,4% ao BE e 1,3% ao PAN. Os estudos parecem indicar que o equilíbrio registado nas últimas eleições (o PS obteve 36,76% e o PSD 39,42%) terá sido um acto isolado. O PSD governa a região desde 1976 e Miguel Albuquerque candidata-se a um terceiro mandato.

A formação das listas também agitou o Juntos Pelo Povo (JPP), actual quarta força política, que nasceu de um movimento de cidadãos. Filipe Sousa, líder do partido e presidente da Câmara de Santa Cruz (segundo concelho mais populoso da Madeira), demitiu-se por discordar da lista encabeçada pelo irmão, Élvio Sousa.

O Chega, por seu turno, tem sido alvo de queixas para impedir que se apresente a eleições. A Comarca da Madeira está a analisar um requerimento do ADN (um dos 13 candidatos) para excluir a lista do partido de André Ventura, segundo noticiou o Expresso. Em causa está a decisão do Tribunal Constitucional de anular a última convenção do partido, de onde saiu a direcção nacional que aprovou os candidatos às eleições madeirenses. Antes, o tribunal rejeitou uma queixa de militantes do Chega contra a lista encabeçada por Miguel Castro.

No PAN, Joaquim Sousa – que ficou conhecido por ser o director da escola-modelo do Curral das Freiras, extinta pelo governo regional – foi abruptamente substituído por Mónica Freitas como cabeça-de-lista devido a incompatibilidades com a liderança nacional de Inês Sousa Real.

Turismo a bater recordes

Voltemos à rua. No interior do Mercado dos Lavradores, a agitação já deu lugar aos preparativos para o encerramento. Algumas bancas já fecharam, mas Vitalina Teixeira, vestida com o típico traje madeirense, ainda esclarece um grupo de turistas curiosos sobre as reluzentes flores que ali vende. Está no mercado há 25 anos: tem visto os turistas a aumentar e as vendas a diminuir.

“Há uns anos vivia-se melhor. Agora está mais difícil. Está muita gente aqui agora no Verão, mas os turistas vêm tão pobres como a gente”, atira a vendedora, soltando uma gargalhada em “tom de brincadeira”, como faz questão de ressalvar. Vitalina Teixeira “gosta sempre de votar” e não vai falhar à chamada de 24 de Setembro. “É um dever de todos” que deve ser cumprido. “Vou votar, se Deus quiser. Gosto de votar sempre, nem que seja para ver se isto melhora.”

Os números do turismo na Madeira têm vindo a bater recordes: em 2022, o arquipélago chegou aos 9,6 milhões de dormidas, batendo os valores pré-pandemia. Em 2021, segundo dados fechados no final de 2022, o Produto Interno Bruto (PIB) da Madeira foi o que cresceu mais (8%) comparativamente a todas as regiões do país.

“Conjunturalmente, a Madeira está, aparentemente, a passar por uma fase muito boa”, considera Jorge Veiga França, presidente da Associação Comercial e Industrial do Funchal (ACIF), realçando que a pandemia de covid-19 teve um impacto muito forte numa economia alicerçada no turismo.

Se 2022 foi um “excelente ano” para a economia, em 2023 o “turismo vai de vento em popa”, o que obriga a “responder a outros desafios”, como a operacionalidade do aeroporto Cristiano Ronaldo. Para resolver o que diz ser um “problema” para a economia, o líder da maior associação empresarial madeirense defende a solução “Madeira+1”, que passa por reforçar a importância do aeroporto do Porto Santo nas chegadas ao arquipélago e melhorar a ligação marítima entre as ilhas.

Tal não impede que se “incentive a diversificação económica” da Madeira, advoga Veiga França, que sugere a redução da carga fiscal de forma “razoável” e “progressiva” – nas regiões autónomas é permitido um diferencial até 30% do IVA, IRC e IRS face ao continente. “Temos de compensar o rendimento disponível na nossa mão-de-obra com uma redução da fiscalidade. Isso tem de ser feito de uma maneira sustentável.”

O líder da ACIF alerta também para a “sangria na perda de recursos humanos” e para a falta de mão-de-obra. “Se queremos continuar a desenvolver o nosso sector do turismo e se queremos, como apregoamos, criar actividades diversificadas – diga-se que, com algum sucesso, temos tido o desenvolvimento das novas tecnologias –, precisamos de trabalhadores em várias áreas.”

Melhorias na educação, risco de pobreza agravado

A falta de mão-de-obra é um dos argumentos apresentados pelo vice-presidente do conselho executivo da Escola Secundária Jaime Moniz para defender uma maior aposta no ensino profissional. “Uma das coisas que falham no nosso sistema é o ensino profissional. Faltam-nos técnicos e profissionais”, afirma José Freitas.

O professor não tem dúvidas de que a Madeira fez um “percurso fantástico” nos níveis de escolarização desde o 25 Abril de 1974, mas, apesar da “grande autonomia” que existe na educação, a região “está inserida num modelo nacional” que se tornou um “fardo para os professores”. Num “meio pequeno” como as ilhas, todos os “problemas que afectam o país” são ainda “mais notórios”.

“Actualmente, não vou dizer que a falta de professores é um problema, mas pode vir a ser”, alerta, exemplificando com o caso da secundária Jaime Moniz. A escola não recebe estagiários há mais de 10 anos, à excepção de Educação Física, e a média de idades dos 260 professores está “bem acima dos 50 anos”. “A escola hoje é uma espécie de varinha de condão. A escola fica com a responsabilidade de resolver todos os problemas que existem na sociedade, mesmo que não tenha meios nem recursos.”

A Madeira tem registado uma evolução significativa na taxa de abandono escolar precoce na última década. Em 2013, o abandono escolar precoce estava nos 28,8%, em 2022 situou-se nos 9,4%, uma redução de 0,8 pontos percentuais face a 2021 (10,2%).

Já no risco de pobreza, a tendência inverteu-se entre 2020 e 2021, com um aumento de 24,2% para 25,9%. Segundo o INE, a Madeira é a região com a taxa de risco de pobreza mais elevada do país.

O aumento foi sentido por quem está no terreno, como é o caso da Associação Protectora dos Pobres (APP), que presta assistência a 600 pessoas. “Nestas épocas de crise a procura é muito maior. Sentimos isso. Com a covid-19, por exemplo, foi evidente”, relata Roberto Aguiar, director técnico da instituição sediada no Funchal.

Cerca de 80% dos utentes da APP são homens, com uma média de idades entre 45 e 55 anos. “Todos os anos temos cerca de 100 a 150 pessoas que entram pela primeira vez na instituição. Um número semelhante ao das pessoas que conseguem organizar a sua vida e deixam a instituição.”

Na região existem “muitos apoios”, mas “muitas vezes não são os apoios ideais”, alerta Roberto Aguiar, que defende uma aposta das políticas no emprego, na saúde e na habitação. No emprego é necessário um “maior acompanhamento”, que permita um “início de profissão mais protegido”, enquanto na saúde é preciso combater as dependências, como o álcool e a droga, em particular as novas substâncias psicoactivas.

Na habitação, a falta de rendas a preços acessíveis é um “entrave muito grande”. A maioria dos beneficiários da APP vive do Rendimento Social de Inserção – que em Julho de 2023 teve um valor médio de 138,90 euros per capita na Madeira – e não consegue “suportar os preços do mercado de arrendamento”. É o reverso da moeda do turismo, é o reflexo de uma terra de contrastes: “As pessoas que arrendavam quartos sem grandes condições, mas a preços mais acessíveis, começam a passar estes espaços para alojamento local. Isto é um problema grave.” (Publico, reportagem dos jornalistas Rui Pedro Paiva e Gregório Cunha, com a devida vénia)

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