quarta-feira, agosto 23, 2023

Falta de militares agrava-se: quase dois chefes por cada soldado em Portugal


Desiludido, o sargento-ajudante Miguel Rego escreveu à ministra da Defesa Nacional, Helena Carreiras, a explicar por que pediu o abate aos quadros da Força Aérea depois de 24 anos fardado de azul. A saturação descrita pelo militar na sua carta — reproduzida em abril no jornal “Sargento” — não será estranha a muitos que têm deixado as fileiras. Miguel Rego ingressou como praça em 1999, depois estudou e fez o curso de sargentos, evoluiu, especializou-se nos sistemas do avião de transporte C-295 e saiu seduzido por uma oferta para ganhar o dobro no estrangeiro. “Foi uma empresa civil de outro país que entrou em contacto comigo. Se como 1º cabo ganhava o dobro do ordenado mínimo, como sargento-ajudante nem ao dobro chegava”, escreveu o ex-militar. Ao longo dos anos o salário mínimo nacional disparou, mas o vencimento dos militares estagnou: “Esta empresa simplesmente ofereceu o dobro do meu ordenado atual, com seguros de saúde para mim e a família. Saí do país e fui para instrutor de uma empresa fabricante de aeronaves.”

A “degradação da condição militar” que o sargento menciona, a má qualidade das instalações e dos equipamentos, a sobrecarga de trabalho e a falta de perspetivas levou-o a desistir, como a outros cinco camaradas da mesma esquadra: “E outros tantos querem sair”, avisa. A sua amargura traduz-se assim: “Senti-me abandonado e traído pelo Estado, após ter dado 24 anos da minha vida e da minha família”, porque “adorava a instituição onde entrei, mas não a atual”. Para ele “já não há volta a dar”, mesmo com as medidas que estão em curso (ver texto ao lado).





Podia ser apenas uma opinião ou uma experiência isolada, mas os números falam por si. As saídas das fileiras estão a deixar a tropa sem os efetivos necessários para assegurar missões que podem ficar em causa nos próximos anos. Não só a carreira militar foi deixando de ser atrativa para os jovens como as Forças Armadas perderam a capacidade de manter os que lá estão, sobretudo técnicos altamente treinados e especia­lizados. Tal como este sargento, em 2022 abandonaram as fileiras por abate ao quadro ou rescisão de contrato 2224 militares: as saídas não previstas foram de 1118 no Exército, 808 da Força Aérea e 298 da Marinha, segundo informações dos próprios ramos ao Expresso (os números avançados pelo Ministério da Defesa Nacional são menos pessimistas, mas igualmente elevados, como se pode ver no gráfico). Os números do Exército e da Marinha são os mais elevados desde 2018.
Este nível de “saídas extemporâ­neas” corresponde a 10,5% do total de militares a prestar serviço nos três ramos das Forças Armadas. Entre saídas e entradas, o resultado líquido de 2022 materializa-se numa redução de 7,2% dos militares em serviço efetivo (ou seja, sem contar com os que estão na reserva). As consequências da falta de pessoal começam a refletir-se nos níveis de operacionalidade dos três ramos, que só conseguem manter as missões sobrecarregando os que permanecem ao serviço (ver texto ao lado). Depois, essa sobrecarga de turnos, destacamentos ou embarques acentua o descontentamento e aumenta o número dos que querem sair, como revela um estudo realizado pela Marinha que o Expresso noticiou há duas semanas. A falta de efetivos é um problema que se alimenta a si próprio.

MAIS CHEFES DO QUE SOLDADOS

Do ponto de vista geral, o Ministério da Defesa Nacional (MDN) refere que faltam apenas 13% dos militares previstos para o quadro permanente. Mais séria é a necessidade de recrutar e contratar voluntários, que é onde se regista a maior carência de pessoal: 45% das vagas previstas na lei para os efetivos contratados estão por preencher. Em termos absolutos, o Exército é o ramo mais penalizado pela falta de atratividade das Forças Armadas, dado o volume de recursos humanos de que precisa: o ramo terrestre tem um terço dos efetivos previstos por preencher e não parece que esteja em vias de inverter a situação, porque o problema se acentuou na primeira metade deste ano. No final de 2022 o Exército precisava de ter mais 5260 militares, mas no fim de julho deste ano o balanço negativo acentuou-se e o défice aumentou para 5745 homens e mulheres em falta, segundo dados avançados pelo ramo ao Expresso. Trata-se de uma necessidade acrescida de mais 485 tropas, um crescimento negativo de 9,2% em apenas sete meses.

A falta de praças (soldados e cabos), ou seja, de “botas no chão”, é o maior problema dos três ramos, mas afeta especialmente o Exército. Se compararmos as 4500 praças que estavam ao serviço no fim de 2022 — segundo dados fornecidos pelo MDN — com o quadro de efetivos definido por decreto-lei, o ramo terrestre tem menos de metade das praças que devia ter. Isto acentua um problema que tem sido identificado nos últimos anos, mas que continua a agravar-se: a pirâmide hierárquica está tão distorcida que, no Exército, a proporção de chefes para subordinados é de 1,25 oficiais e sargentos para cada soldado (ver infografia), quando devia haver 1,4 praças para cada graduado. Em termos globais, nos três ramos há 1,7 chefes por praça.

Um soldado da GNR pode ganhar mais €490/mês do que na tropa

Na Força Aérea, onde faltavam 544 praças o ano passado, há 5,8 oficiais e sargentos para cada soldado e cabo — quando o rácio devia ser de 3,9. No entanto, a natureza do ramo aéreo é diferente do Exército, uma vez que os oficiais pilotam as aeronaves, enquanto praças e sargentos são pessoal de áreas técnicas de bordo ou de manutenção e apoio no solo. Não são tropas para ocupar terreno.

Apesar de o Governo ter criado, em maio, um quadro permanente de praças que possam fazer carreira no Exército e na Força Aérea — ramos que só têm praças em regime de contrato, por um máximo de seis anos —, a existência desse quadro na Marinha não parece tornar a vida dos marinheiros mais entusiasmante. A Armada tinha uma carência de 1116 praças no final do ano passado, o que representa um défice de 27% face às necessidades previstas. Na Marinha, há 3,2 oficiais e sargentos para cada praça (quando o rácio devia ser de quase um para um).

O número de militares no final de 2022, explica fonte oficial do gabinete da ministra da Defesa, “reflete o final dos dois anos de pandemia, nos quais vigoraram regras extraordinárias que permitiram prorrogar os prazos dos contratos”. A quebra acentuou-se depois. Mas Helena Carreiras também sabe que “a reabertura do mercado de trabalho global (crescentemente competitivo) tem impacto nos níveis de atratividade e retenção, sobretudo em tempo de baixos níveis de desemprego”, aponta o gabinete da ministra nas respostas ao Expresso. O caso do sargento-ajudante Miguel Rego é um desses exemplos.

A governante, no entanto, não deixa de enquadrar a crise de vocações militares nas tendências internacionais: “Outros países estão a enfrentar situações semelhantes”, aponta a mesma fonte oficial. Como exemplo, refere “a perda de efetivos e baixo recrutamento nos Estados Unidos em 2022 ou as dificuldades na Alemanha, onde há menos 7% de candidatos e taxas de desistência na formação a rondar os 30%”.

DA TROPA PARA A POLÍCIA

A falta de atratividade na carreira militar é revelada por um indicador avançado pelo Exército: dos 914 militares em regime de contrato que rescindiram o ano passado, 315 (34%) quiseram sair da tropa para as forças de segurança. Este também é um dos principais fatores identificados pela Marinha, onde as baixas remunerações foram apontadas por 62,6% dos militares que saíram para a vida civil.

Segundo contas da Associação dos Oficiais das Forças Armadas (AOFA), o que os polícias levam para casa no fim do mês (englobando suplementos e subsídios) representa mais cerca de €490 brutos para as praças, quando comparado o recibo de vencimento com os guardas da GNR. Embora estas contas não sejam consensuais, muitos militares olham para as polícias como uma carreira mais atrativa. De acordo com dados da AOFA, os oficiais das Forças Armadas ganham, em média, menos €470/mês do que os oficiais da GNR — quando são formados na mesma escola — e os sargentos menos cerca de €280/mês. Na sua carta, o antigo sargento-ajudante diz à ministra que não é preciso fazer mais estudos para perceber as razões da falta de atratividade das carreiras militares. “Mais estudos? Para quê?”, questiona Miguel Rego (Expresso, texto do jornalista VÍTOR MATOS e infografia de JAIME FIGUEIREDO)

Sem comentários: