Esta semana, goste-se ou não, Portugal
rendeu-se às Jornadas Mundiais da Juventude mas sobretudo rendeu-se ao Papa
Chico, um Papa que prometeu trazer mudança a uma instituição secular, no seio
da qual ficamos com a sensação de que muita coisa parou no tempo, o que explica
uma certa crise da Igreja e um afastamento de muitos sectores da sociedade
perante, repito, uma estrutura religiosa que se banalizou e deixou de dar
respostas a uma sociedade em contínua evolução e modernidade.
Recebemos em Portugal um Papa do povo, um
Papa vindo dos confins do mundo, como ele próprio afirmou no dia em que foi
eleito para a liderança da Igreja Católica, um Papa que enfrentou inúmeros
problemas estruturais e funcionais internos, no Vaticano, que pretendeu sacudir
hábitos velhos e caducos que, em vez de aproximarem, distanciaram todos os Papas
das pessoas. Recebemos um Papa que, mais abertamente que os antecessores, enfrentou
o escândalo dos abusos sexuais que sacudiram a instituição, mesmo que todos saibamos,
e sabemos, que essa chaga asquerosa e nojenta, não se limita à Igreja mas que,
por terem acontecido no universo da Igreja e do catolicismo institucional em
geral, assumiu uma outra amplitude que não se compadeceu com uma Igreja
silenciosa e de costas voltadas para uma realidade incontornável e que a foi minando
irreversivelmente.
O facto é que o Papa Chico esteve lá, na
primeira fila, dando a cara, enfrentando adversidades, incluindo no próprio
Vaticano. E fê-lo mais do que os seus antecessores, porque, verdade seja dita,
este tema dos abusos sexuais e de todos os comportamentos doentios denunciados nos
subterrâneos vaticanistas, nunca antes como agora, atingiu a amplitude
mediática que obrigou a que a Igreja assumisse uma outra postura que não a que era
costume, a de virar-se para o lado perante as denúncias, como se nada se
passasse.
Eu não sei se o Papa Chico vai ficar muito
tempo entre nós, devido à sua doença e à fragilidade que evidencia. Não sei
como e qual será a Igreja depois do Papa Chico, se ela vai evoluir, se ela se
vai renovar, apesar de todos os esforços de Francisco, a começar pelo Colégio Cardinalício,
se ela vai retroceder, se ela vai assumir as suas fragilidades e preparar as
respostas mais adequadas. Não sei se o Papa Chico será capaz de continuar as
mudanças internas que paulatinamente, mesmo enfrentando as habituais
resistências internas e os interesses e o conservadorismo institucional,
incluindo os financeiros e económicos de uma instituição universal e rica.
Apenas sei que o Papa Chico quer uma Igreja
cada vez mais junto das pessoas, sobretudo dos mais desfavorecidos e mais
carenciados e que tem um discurso que valoriza o primado do humanismo, da
justiça social, do respeito entre as pessoas, pela observância de rendimentos
dignos para todos, do respeito pelo trabalho e de apelos constantes à solidariedade
humana, etc
Admito que uma das maiores frustrações do
Papa Chico, se não mesmo a maior, esteja relacionada com a guerra na Ucrânia e
com a impotência do Vaticano, pelo menos até hoje constatável, pese todos os
esforços de mediação realizados, em encontrar um entendimento entre Moscovo e
Kiev para um cessar-fogo que suspenda o sofrimento, a destruição e a morte e
para a abertura de negociações sérias entre todos os protagonistas, incluindo
os que se dizem apologistas da paz mas que lucram milhões de milhões vendendo
armas e incentivando a guerra.
Hoje parece-me mais do que evidente -
perante a crise de vocações, o envelhecimento do sacerdócio e a galopante
redução de fiéis - que os problemas de afirmação e de modernização da Igreja
são maiores, diria mesmo decisivos. A Igreja paga a pesada factura de ter
parado no tempo durante demasiado tempo, em grande medida devido às resistências
conservadoras do próprio Vaticano e aos múltiplos interesses que por lá se
cruzam, para os quais qualquer mudança é olhada como uma “ameaça” passível de colocar
em causa esses interesses acomodados e ainda influentes no processo de decisão
vaticanista.
Penso que a Igreja acreditou na imutabilidade dos dogmas em que assenta toda a sua doutrina e praxis e que, por isso, o seu mundo estaria imune ao impacto de crescentes pressões ou à demanda de mutações, apesar de muitos sectores reclamarem essa modernidade em todo o edifício católico liderado pelo Vaticano. Mas a verdade é que a pressão externa vinda de todos os lados, e por inúmeros motivos, a natureza das pressões sociais, a falta de resposta dos governos particularmente aos jovens, cada vez mais a braços com incertezas e poucas respostas, uma nova realidade social que denuncia muitas desigualdades e injustiças, o aparecimento de novos grupos religiosos, incluindo seitas que perceberam que a religião pode ser um negócio altamente lucrativo, assente num discurso populista e pseudo-religioso, a ciência e as descobertas que ela propicia, o questionamento decorrente da conjugação de todas essas realidades, etc, tudo isso pressiona a Igreja para que ela sem se descaracterizar, se adapte aos novos tempos, a novas mentalidades, a novas prioridades sociais, a novas ideias, a uma mudança do seu discurso social, actualizando-o, adaptando-o aos novos problemas sociais, à realidade do mundo num tempo aceleradamente em mudança e carregado de incertezas, de novas exigências das sociedades, etc. Daí a incerteza quanto ao futuro da Igreja se o caminho de mudança e de modernidade for abandonado (LFM, texto de opinião publicado no Tribuna da Madeira de 4.8.2023)
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