sábado, agosto 26, 2023

Espanha: Vem aí um mês de leilão político

Cumpridas as formalidades preliminares de nomeações, candidaturas e calendários, Espanha entra na etapa mais crítica do processo pós-eleitoral, que deve culminar com a designação do Governo que dirigirá o país nos próximos quatro anos. Alberto Núñez Feijóo, presidente do Partido Popular (PP, centro-direita) e vencedor das legislativas de 23 de julho, foi indigitado pelo rei para tentar formar o novo Executivo, mas a hipótese de reunir os apoios suficientes é remota. Caso fracasse, terá vez o atual primeiro-ministro, Pedro Sánchez (Partido Socialista Operário Espanhol, PSOE, centro-esquerda) que procurará reeditar o acordo de investidura que o levou ao poder em 2019. O horizonte é-lhe muito mais favorável. Os dois maiores partidos espanhóis, que somaram 65% dos votos em julho (cerca de 16 milhões de sufrágios), encetam uma fase delicada, de tons mercantilistas. Cruzam-se ofertas e exigências dos demais grupos que conseguiram representação no Parlamento, tentando o PSOE e o PP atrair os seus votos para o processo de investidura, que tem início marcado para 26 de setembro. Este regateio é marcado tanto por princípios políticos como por interesses económicos, de que já há indícios claros.

A tarefa mais difícil é a do PP de Feijóo. Apoiado pelo Vox (extrema-direita), União do Povo Navarro e Coligação Canária, necessita imperiosamente de pelo menos mais quatro deputados para chegar aos 176 (maioria absoluta) e obter a investidura. De momento soma 172. Feijóo insiste em “virar” o Partido Nacionalista Basco (PNV, nacionalista moderado e de inspiração democrata-cristã), cujos cinco votos seriam cruciais.

Para tal, o PP propõe ao partido até agora hegemónico no nacionalismo basco um pacote de cedências. Este prevê, entre outras coisas, terminar as obras que levarão a ferrovia de alta velocidade às capitais das três províncias bascas, Vitoria, Bilbau e San Sebastián; reformar a fundo o concerto económico, que é sistema de financiamento exclusivo do País Basco, transferindo para a região a gestão de novos impostos; e aumentar as competências de autogoverno da região.

O porta-voz do PNV em Madrid, Aitor Esteban, está disposto a aceitar “por cortesia” uma reunião com Feijóo, mas já explicou com meridiana clareza que o seu partido não entra em nenhuma equação política que inclua o Vox, cujos 33 votos são vitais para as aspirações do líder popular. O chefe da extrema-direita, Santiago Abascal, também indicou o preço do seu apoio: que o PP reconhece o Vox como sócio preferencial e se comprometa a “acabar com a pretensão de certas minorias de impor um apartheid” ao seu partido. Feijóo já pagou parte do montante, ao afirmar sobre o Vox, quarta-feira, num ato público: “Temos uma relação de normalidade democrática, com o objetivo partilhado de proteger a nossa nação e defender a Constituição”.

EM BUSCA DE DISSIDENTES

Feijóo deu instruções para os seus representantes em Múrcia levantarem o atual bloqueio ao Vox e permitirem a incorporação de um membro da extrema-direita no Governo da região, como o PP fez noutras cinco autonomias e mais de 100 municípios em toda Espanha.

Enquanto pressiona o PNV, o PP procura outra fórmula arriscada, que consiste em seduzir deputados socialistas que possam estar descontentes com os acordos almejados por Sánchez para permanecer no poder. Uma ala centrista do PSOE desconfia de pactos com partidos independentistas, fugitivos à justiça e herdeiros políticos do terrorismo da ETA. Fontes do PP asseguram ao Expresso, sob anonimato, que nalgumas federações socialistas, sobretudo Castela La Mancha, existe um viveiro de dissidentes que poderiam votar a favor de Feijóo caso se confirmem as cedências de Sánchez para permanecer no poder.

A terceira via do PP para procurar os votos em falta tem por alvo o Juntos pela Catalunha, (JxC), partido separatista dirigido — a partir do autoexílio belga — pelo ex-presidente regional Carles Puigdemont e a quem o PP chamou “grupo de golpistas”. Agora, modera a linguagem. “O JxC é um grupo parlamentar que, tal como a Esquerda Republicana da Catalunha, para lá das ações de quatro, cinco ou dez pessoas, representa um partido cuja tradição e legalidade não estão em causa”, assegurou Esteban González Pons, vice-secretário do PP para as relações institucionais e colaborador muito próximo de Feijóo.

Embora hoje as suas posições estejam muito distantes, o PP pactuou em ocasiões passadas com a Convergência e União, federação de partidos nacionalistas catalães de que descende o JxC de Puigdemont. No tempo do histórico Jordi Pujol, que chefiou o governo regional catalão entre 1980 e 2023, apoiaram o primeiro Executivo do popular José María Aznar (1996-2000). O problema é que as exigências dos catalães vão muitíssimo além do quadro de princípios em que se move a formação de Feijóo.

É na esquerda política que o leilão político espanhol é mais ativo. Está garantido que Sánchez terá o apoio dos 31 deputados da aliança Somar, amálgama de partidos à esquerda do PSOE dirigida pela vice-primeira-ministra e ministra de Trabalho, Yolanda Díaz. Precisa ainda do PNV, Euskal Herría Bildu (Unir o País Basco, sucessor do braço político da ETA), Bloco Nacionalista Galego (BNG), ERC e JxC.

REBUÇADOS PARA A CATALUNHA

Os dois últimos anunciaram o preço dos seus apoios: amnistia para os envolvidos em processos judiciais resultantes do referendo ilegal catalão de 1 de outubro de 2017 e um novo referendo, legal, de autodeterminação.

O PSOE já pagou o sinal. Fez eleger Francina Armengol, reputada catalanista, para presidente do Congresso dos Deputados, terceira figura política do país; deu luz verde ao uso das línguas cooficiais (catalão, basco e galego) nas sessões parlamentares, o que só acontecia no Senado; e apresentou um pedido formal a Bruxelas, via Ministério dos Negócios Estrangeiros, para esses idiomas serem incluídos nas línguas de trabalho da UE.

Esta sexta-feira, será formalizada a cedência de dois deputados do PSOE e outros tantos do Somar para que o JxC e a ERC possam ter grupo parlamentar próprio, uma vez que não cumpriram o requisito de ter 15% dos votos nas províncias onde apresentarem candidaturas ou 5% a nível nacional. Ter bancada parlamentar significa mais receita, mais presença nas comissões parlamentares e, em suma, mais poder. Os deputados “emprestados” regressam ao partido de origem após a constituição dos grupos parlamentares.

A vontade do PSOE de agradar aos independentistas será mais nítida na tramitação de um eventual alívio penal para os acusados da intentona de secessão de 2017. Os socialistas encontrarão, possivelmente, uma fórmula equiparável à amnistia que possa ser constitucional.

Mais complicada seria a celebração de um referendo, que implicaria pelo menos a reforma do atual estatuto de autonomia da Catalunha, confirmada nas urnas pelos eleitores. Se anteriormente o próprio Sánchez assegurava que a amnistia não era permitida com a Constituição vigente, prestigiosos juristas, Pascual Sala, ex-presidente do Tribunal Supremo e do Constitucional, defendem que as Cortes Gerais têm toda a capacidade para adotar legislação ad hoc (Expresso, texto do jornalista ÁNGEL LUIS DE LA CALLE)

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