sábado, agosto 26, 2023

Metade das casas vendidas em 2023 ainda não estão construídas

Metade dos maiores empreendimentos residenciais que começaram a ser comercializados nos primeiros seis meses deste ano já foi absorvida pelo mercado, revela a base de dados Edifícios em Comercialização, elaborada pela Confidencial Imobiliário. No primeiro semestre, foram postos no mercado 121 projetos residenciais num total de 4719 fogos, segundo a mesma fonte (ver gráficos). Uma redução de 50% da oferta face à média semestral de 184 empreendimentos e de 8,2 mil fogos lançados no ano passado.

Os analistas contactados pelo Expresso destacam o abrandamento do lançamento de novos projetos imobiliários face aos anos anteriores acompanhado pela deslocação da oferta de habitação nova para os segmentos mais altos do mercado, menos dependentes do financiamento bancário. Por outro lado, assiste-se também a uma certa inversão do movimento da promoção imobiliária para as periferias, tendência que já se desenhava ainda antes da subida dos juros. Argumentam ainda que tudo isto são fatores que não deixam de agravar a situação das famílias portuguesas de classe média no acesso à habitação.

“Num contexto de crise inflacionista e em que há menos oferta, as compras em ‘planta’ representam já 45% dos projetos lançados no mercado no segundo trimestre do ano”, afirma Ricardo Guimarães, diretor da Confidencial Imobiliário. Esta base de dados monitoriza o mercado de promoção imobiliária institucional, que compreende os edifícios de maior dimensão, localizados nos mercados mais relevantes e cuja lógica de comercialização passa pelo envolvimento das agências de mediação imobiliária ou portais imobiliários mais relevantes no mercado, explica. Fora desta base de dados que acompanha 1500 projetos com mais de 55 mil fogos, fica a autopromoção imobiliária e as vendas em mercados locais. Recorde-se que em 2022, foram vendidos 18.500 fogos novos em Portugal Continental.

“Existe uma menor oferta de construção nova e que está mais concentrada no segmento alto”, diz Ricardo Guimarães. O diretor da Confidencial Imobiliário salienta que “antes do aumento das taxas de juro, a tendência dos promotores era apostar em casas mais acessíveis nas periferias das grandes cidades dirigidas à procura doméstica. A valorização dessas novas geografias viabilizava a promoção imobiliária nessas zonas — que em três ou quatro anos duplicaram de preços”, como Vila Nova de Gaia, exemplifica.

Ricardo Guimarães salienta ainda que uma boa parte da oferta está tomada numa altura que se constrói menos. “O mercado reage aos constrangimentos da conjuntura adiando ou cancelando projetos. Mas cria-se um paradoxo, há promotores que têm receio de investir enquanto os que avançam registam grandes taxas de absorção do seu produto.” Uma tendência que segundo o diretor da Confidencial Imobiliário “agudiza” o problema de acesso à habitação das famílias portuguesas: há pouca oferta e a que existe é para os segmentos mais altos do mercado.

O lançamento da comercialização do empreendimento ocorre quando o promotor já tem o alvará de construção e prepara-se para iniciar a obra. A compra em planta é a assinatura do contrato e promessa de compra e venda em que é pago 20% do valor, enquanto o pagamento do remanescente é feito em média dois anos depois na escritura, após a conclusão do edifício. Sinal da dinâmica é que 45% da oferta lançada no segundo trimestre já foi absorvida, o que ajuda ao financiamento junto da banca, pois os projetos já têm mercado.

Patrícia Barão, diretora da área residencial da JLL, confirma a existência de uma “grande procura por projetos novos”, bem localizados e a valores considerados de mercado. “A maioria dos compradores são portugueses”, salienta.

Dos projetos lançados em 2023, a responsável destaca por exemplo, em Lisboa, o República 5, 20 apartamentos de T0 a T4, e preços entre €275 mil e €2,1 milhões; em Gaia o projeto Hillcrow, de 66 fogos de T0 a T4, com preços entre €140 mil e os €1,5 milhões; e em Setúbal, o Panorama, 77 apartamentos T1-T3 e preços entre €170 mil e €745 mil. A aquisição por portugueses é em parte explicada pela lógica da compra em planta. “Quando se compra em planta, há dois anos para pagar o grosso do investimento, entre 60% a 80% na escritura. A maioria das pessoas põe a casa à venda e só dois anos depois é que faz a escritura”, explica.

Para a redução de oferta de produto novo — que há dois anos seria o dobro — Patrícia Barão afirma que os atrasos do licenciamento, além do contexto de crise, é uma das causas. “Temos em carteira pelo menos 15 projetos cuja comercialização era para ter sido iniciada até junho e que só vão ser lançados no mercado no final do ano por atrasos no licenciamento”, explica.

Reconhece também que existe um adiamento de investimentos e que há promotores a repensar os projetos. “Em projetos com uma boa localização, existem promotores que reformulam os empreendimentos para um segmento de mercado mais alto. No caso de localizações mais periféricas, os projetos estão a ser adiados por causa das dificuldades de financiamento”, afirma.

Os últimos dados disponibilizados pelo INE dão conta de que o licenciamento de edifícios de construção nova acentuou a quebra no primeiro trimestre de 2023, ao recuar 10,9% em termos homólogos para 6,2 mil edifícios. Nos últimos três meses do ano anterior, a queda homóloga registada foi de 2,7%. A maioria das licenças (76,1%) emitidas destinava-se a construção nova. Por sua vez, 81,7% destas licenças eram para habitação familiar.

Para Hugo Santos Ferreira, presidente da Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários (APPII), constrói-se cada vez menos em Portugal e a oferta que está em produção não satisfaz o mercado. Um dos principais motivos apontado por Santos Ferreira é o facto de o licenciamento ser “estrangulador” do surgimento de mais oferta de habitação e em quantidade. “Na prática, as dificuldades de licenciamento têm um efeito de conta-gotas”, explica. Por outro lado, o aumento brutal dos custos de produção — construção, materiais, mão de obra, custos dos terrenos, carga fiscal, torna quase impossível a construção de habitação acessível.

“Estamos a assistir a uma concentração da promoção nos centros das cidades para as classes mais altas. Antes da pandemia, o fluxo era inverso e os promotores começaram a sair para as periferias para construírem casas mais adequadas às capacidades das famílias portuguesas.”

Face à falta de oferta de habitação acessível, agravada pelo disparo dos custos de construção, o presidente da APPII aponta a necessidade de disponibilização de solos públicos a custo zero para o efeito. Em paralelo, salienta a necessidade de racionalizar os processos de licenciamento para evitar o estrangulamento do sector, reduzir ou tornar dedutível o IVA na habitação, entre outras medidas. “Seria também desejável reverter o aumento da carga fiscal que existe na construção de habitação fora dos programas do Governo”, diz, referindo-se ao programa Mais Habitação. O diploma foi vetado esta semana pelo Presidente da República, mas o PS vai reconfirmar sem alterar o texto assim que os trabalhos parlamentares recomeçarem em setembro.

NÚMEROS

4719

fogos começaram a ser comercializados no primeiro semestre de 2023, menos 50% face à média semestral de 8,2 mil fogos registada em 2022, segundo a Confidencial Imobiliário

121

novos projetos imobiliários foram lançados no mercado nos primeiro seis meses de 2023, contra uma média semestral de 184 em 2022 (Expresso, texto do jornalista HELDER MARTINS)

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