quarta-feira, agosto 23, 2023

Mercado sueco em queda livre deixa imobiliário europeu em alerta

A crise na Suécia está a assustar o mercado imobiliário europeu, que já entrou num período de viragem. A acontecer, uma crise imobiliária na Europa será desigual entre os vários países. Em tempos um dos mais dinâmicos do espaço europeu, o mercado imobiliário da Suécia está a tornar-se um dos maiores focos de preocupação da economia europeia. Com os preços a caírem desde a segunda metade do ano passado, as empresas do sector, que são das maiores proprietárias do país, estão a ver os activos a deteriorar-se e a entrar numa corrida contra o tempo para conseguir honrar as dívidas que têm de reembolsar no próximo ano. Pelo caminho, reguladores e economistas temem um contágio do mercado sueco ao resto da Europa, numa altura em que tanto os preços como as vendas já caem em vários países.

O actual cenário no mercado imobiliário sueco é explicado, sobretudo, pelo contexto de subida das taxas de juro. Durante as últimas décadas, factores como a reduzida oferta de casas para arrendar, incentivos fiscais à compra de casa e um contexto de taxas de juro historicamente baixas levaram a uma explosão na procura de casa para comprar na Suécia, onde os preços aumentaram ininterruptamente entre 2009 e 2021, com um crescimento acumulado de quase 70% neste período.

O cenário começou a alterar-se em 2022, ano em que a subida acentuada da inflação levou a uma mudança drástica e repentina de política monetária que, por sua vez, resultou numa subida significativa das taxas de juro, que até hoje se mantém. A viragem na política monetária significou um encarecimento do crédito, dificultando o acesso ao mercado por parte de novos compradores e encarecendo o custo dos empréstimos já contraídos por aqueles que já eram proprietários.

No caso da Suécia, este cenário teve particular impacto, tendo em conta a prevalência das taxas de juro variáveis: segundo os dados mais recentes do Eurostat, relativos a 2022, quase dois terços dos suecos são proprietários da casa em que vivem, mas só 13,8% da população vive em casa própria sem qualquer crédito associado, ao mesmo tempo que mais de 60% das famílias com crédito à habitação suportam taxa variável – aquela que é afectada no actual contexto de subida das taxas de juro e que leva a um aumento do custo dos créditos.

Desde então, o mercado imobiliário sueco tem sofrido quebras mês após mês: desde o segundo trimestre de 2022, quando foi atingido o pico histórico de preços, e até ao primeiro trimestre deste ano, os preços das casas na Suécia já caíram mais de 15%. No segmento comercial, o cenário não é melhor, com dados que apontam para uma percentagem de escritórios vagos superior àquela que se verificava antes da pandemia.

O pânico intensificou-se quando, em Maio deste ano, a SBB, empresa do sector imobiliário que é uma das maiores proprietárias do país, anunciou a intenção de adiar o pagamento de dividendos, para, pouco tempo depois, reportar prejuízos de quase mil milhões de euros no segundo trimestre deste ano.

Já no mês passado, o presidente executivo da SBB, Leiv Synnes, afirmou à Reuters que não "acredita" que será necessária uma ajuda estatal para resgatar a empresa. Mas o problema dos proprietários institucionais suecos vai para lá da SBB: segundo cálculos feitos recentemente pela Bloomberg, o conjunto das principais empresas a actuar no mercado de arrendamento sueco (ou seja, empresas que, como a SBB, são senhorias) tem um montante total superior a 10 mil milhões de euros de dívida a reembolsar no próximo ano.

O resultado foi quase imediato: por um lado, estas empresas vêem agora os seus ratings atirados para o nível de "lixo" por parte das agências de notação financeira, um fenómeno que dificulta posteriores tentativas de financiamento nos mercados, agravando ainda mais a questão dos reembolsos devidos no próximo ano; por outro, estas empresas podem vir a ver-se forçadas a vender casas que têm em portefólio, presumivelmente a preço de desconto, o que contribuirá para acelerar a queda dos preços da habitação. É, na prática, um ciclo vicioso.

A Suécia como presságio

As preocupações em torno da Suécia surgem, sobretudo, pelo efeito de contágio que o país poderá ter sobre o restante mercado imobiliário europeu, já de si a entrar numa inversão de ciclo nos últimos meses, como evidenciam de forma clara as estatísticas mais recentes.

No primeiro trimestre deste ano, os preços das casas caíram em seis dos 30 países que enviam dados ao Eurostat: para além da Suécia, os preços caíram, em relação ao ano passado, na Dinamarca, Alemanha (nestes dois casos, com quedas superiores a 6%), Luxemburgo, Países Baixos e Finlândia. Ao mesmo tempo, no conjunto de 2022, e ainda de acordo com os dados do Eurostat, a desaceleração do mercado já era notória: o número de vendas de casas caiu mais de 30% na Dinamarca, outros 16% na Finlândia e Países Baixos e 15% no Luxemburgo, naquelas que foram as maiores quedas registadas, mas não as únicas.

No entanto, para antecipar potenciais novos focos de preocupação, é preciso olhar não só para a evolução das vendas e preços, mas, também, para a estrutura de crédito em cada país. Na União Europeia, segundo os dados disponibilizados pelo Eurostat, quase 70% da população é proprietária da casa em que reside e mais de 40% vive mesmo em casa própria sem quaisquer créditos à habitação associados. É aqui, sobretudo, que os perfis diferem entre os vários países.

Se nos países do Leste europeu a larga maioria da população vive em casa própria e sem empréstimos associados (na Roménia, por exemplo, quase 94% da população estava nesta situação no final de 2022, enquanto na Bulgária a proporção era superior a 82%), o cenário é exactamente o oposto nos países nórdicos: na Dinamarca, só 12% da população vive nesse contexto, enquanto na Noruega a proporção sobe para 19% (dados de 2019) e na Finlândia para 30%.

Este cenário é agravado pelo tipo de taxa associada a estes créditos, um indicador que, mais uma vez, coloca os países nórdicos em maior risco de crise imobiliária. Segundo o levantamento mais recente feito pela Federação Europeia de Crédito Hipotecário, publicado em 2022, mais de 90% do crédito à habitação contratado na Noruega e na Finlândia tem taxa variável. É essa, também, a proporção de crédito à habitação com taxa variável em Portugal, bem como em alguns países do Leste europeu, como a Bulgária ou a Polónia. Pelo contrário, em países como França ou Bélgica, esta percentagem é inferior a 10%, enquanto na Alemanha ou Países Baixos fica abaixo de 20%.

É também preciso contar com o volume de endividamento das famílias, a sua relação com o rendimento disponível e a avaliação dos imóveis em causa. Ainda de acordo com os dados da mesma federação, o rácio entre o volume de crédito à habitação e o rendimento disponível das famílias era superior a 100% em países como a Suécia, Noruega, Dinamarca ou Países Baixos.

Ao mesmo tempo, a sobreavaliação em alguns mercados já não é um risco, mas uma certeza. "O rápido crescimento dos preços das casas nos últimos anos levou a avaliações esticadas em alguns países da zona euro, onde as dinâmicas do mercado excederam o valor intrínseco das casas. Em alguns países da zona euro, as estimativas de sobreavaliação do mercado residencial, no quarto trimestre de 2022, superam os 10%, o que faz aumentar o risco de uma correcção de preço", refere o Banco Central Europeu (BCE), no mais recente relatório de estabilidade financeira, apontando para países como Portugal, Países Baixos, Irlanda ou França.

E, por fim, importa olhar para o segmento comercial do imobiliário, que, conforme referiu já o BCE no mesmo relatório, "sofreu uma quebra mais acentuada, impactado pelo ambiente macroeconómico, que tem agravado as vulnerabilidades estruturais que surgiram durante a pandemia".

É neste contexto que consultoras e entidades como o BCE ou o Fundo Monetário Internacional (FMI) reconhecem a existência de um risco de crise imobiliária. "Os riscos continuam a apontar para uma evolução desfavorável, especialmente nos países onde os níveis de endividamento são elevados e os imóveis podem estar sobreavaliados", refere o BCE no mesmo relatório.

"Um colapso do mercado habitacional ainda pode estar por vir. Certo é que, a acontecer, será desigual. Os mercados imobiliários europeus são demasiado diferentes uns dos outros para que a Europa experiencie uma crise como aquela que se viu nos Estados Unidos em 2007", escreveu, por seu lado, a consultora Morningstar, numa nota recente.

Também em Portugal o mercado não está imune à política monetária e, na verdade, apesar do ininterrupto aumento dos preços, o número de vendas já está a cair consideravelmente. No primeiro trimestre, o número de vendas de casas caiu mais de 20% face a igual período do ano passado, levando o montante total transaccionado a recuar mais de 15%

A excepção portuguesa

Portugal, por seu turno, mantém-se, para já, como uma das principais excepções na Europa, com os preços das casas a continuarem a aumentar a ritmo acelerado e muito acima da média europeia.

No primeiro trimestre deste ano, de acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), o índice de preços da habitação registou, em Portugal, um aumento de 8,7% face a igual período do ano passado. Esta taxa de variação representa uma desaceleração em relação ao trimestre anterior, mas, ao mesmo tempo, é uma das mais significativas da Europa, num trimestre em que o índice de preços da habitação registou uma variação média de 0,8% no conjunto da União Europeia e de 0,4% na zona euro.

Ao mesmo tempo, apesar de reconhecerem os riscos existentes, as próprias imobiliárias têm vindo a manter a confiança no sector. "Os novos projectos residenciais que foram lançados tiveram forte procura, com muitas unidades já reservadas ou vendidas. Embora a inflação e as taxas de juro a aumentarem representem um potencial desafio, a baixa taxa de desemprego e os níveis consideráveis de poupanças contribuíram para um mercado imobiliário estável", referia a consultora imobiliária JLL no mais recente relatório de análise ao mercado, relativo ao primeiro trimestre deste ano.

A isto, soma-se a (ainda) crescente procura de Portugal por parte de investidores estrangeiros, que também têm contribuído, em larga medida, para o aumento dos preços. Segundo os dados mais recentes do INE, no primeiro trimestre deste ano, os compradores com domicílio fiscal em território estrangeiro foram responsáveis por 7,2% do total de casas vendidas em Portugal nesse período, acima da proporção de 5,9% que representavam em 2022 e de 4,2% em 2021.

Mas, também em Portugal, o mercado não está imune à política monetária e, na verdade, apesar do ininterrupto aumento dos preços, o número de vendas já está a cair consideravelmente. No primeiro trimestre, ainda de acordo com os dados do INE, o número de vendas de casas caiu mais de 20% face a igual período do ano passado, levando o montante total transaccionado a recuar mais de 15%, uma diminuição explicada, sobretudo, pela retracção do mercado nacional.

E, por esta altura, os alertas já começam a surgir também em relação a Portugal. No mais recente relatório sobre a economia portuguesa, o FMI aponta que, nos cenários mais adversos de uma inflação persistente e consequente prolongamento da subida das taxas de juro, quase metade das famílias portuguesas com créditos contraídos ficaria numa situação de vulnerabilidade financeira, arriscando-se a ter de reduzir consumos essenciais ou a falhar a amortização dos seus empréstimos.

Um cenário desses terá, inevitavelmente, um impacto sobre a solidez da banca, como, aliás, já admite o Banco de Portugal (BdP), que, no relatório de estabilidade financeira, aponta "o arrefecimento no mercado imobiliário residencial, com impacto sobre os preços e sobre o valor do colateral de créditos garantidos por imóveis", como um dos principais riscos para a estabilidade do sistema bancário nacional (Publico, texto da jornalista Rafaela Burd Relvas)

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