segunda-feira, novembro 27, 2023

Público - "O nacionalismo volta a ameaçar a Europa"

1. Viktor Orbán quis ser o primeiro dirigente europeu a saudar a vitória de Geert Wilders nas eleições legislativas dos Países Baixos. Telefonou-lhe para celebrar o verdadeiro “tremor de terra” eleitoral que provocou. “O vento da mudança está a soprar”, escreveu na rede social X. Não foi o único. A extrema-direita europeia já deixou de viver há muito nas franjas das democracias liberais para se transformar numa força política que disputa directamente o poder. Que já faz parte das soluções governativas em vários países da União Europeia.

Giorgia Meloni, cujo partido nasceu da herança das forças pós-fascistas italianas, lidera a Itália em coligação com a extrema-direita de Matteo Salvini. Os Democratas Suecos e os Verdadeiros Finlandeses fazem parte das coligações parlamentares que apoiam os governos de Estocolmo e de Helsínquia. Marine Le Pen é o maior partido da oposição ao Presidente Macron, na Assembleia Nacional Francesa, e a sua Reunião Nacional lidera de longe todas as sondagens. As mesmas que colocam persistentemente a Alternativa para a Alemanha (AfD) em segundo lugar, atrás da CDU/CSU e à frente dos sociais-democratas de Olaf Scholz, dos Verdes e dos Liberais da actual “grande coligação”. Em Espanha, o Vox perdeu alguns deputados nas últimas eleições, mas esteve à beira de entrar no Governo de Madrid, coligado com o Partido Popular, o que só não aconteceu porque Pedro Sánchez conseguiu evitá-lo, mesmo que através de alianças polémicas com partidos independentistas.

2. Na sexta-feira, num encontro do grupo “Identidade e Democracia” do Parlamento Europeu, Marine Le Pen, sentada à direita de André Ventura numa sala do Parlamento português, disse com todas as letras que é contra a União Europeia precisamente “porque defende a Europa”. À esquerda de Ventura sentava-se o líder da AfD, ferozmente xenófobo e antieuropeu. O que é a Europa deles? A mesma Europa que Wilders defende – branca, cristã, construída por nações soberanas, donas das suas fronteiras e das suas próprias leis, contra a Europa que nasceu dos escombros da segunda “guerra civil” europeia a partir de uma simples ideia fundadora: a rejeição do nacionalismo através da partilha dos mesmos valores políticos da democracia, do liberalismo, dos direitos humanos, da soberania. E que garantiu o mais longo período de paz e de prosperidade que a Europa jamais viveu. Foi preciso que uma vaga democrática varresse as ditaduras nacionalistas que dominavam Portugal, Espanha e Grécia, na década de 1970, para lhes abrir as suas portas. Depois da implosão da União Soviética, a mesma vaga democrática afastou os regimes comunistas dos países da sua metade leste, abrindo-lhes o caminho da adesão. É de novo para defender a democracia e a liberdade que a União Europeia apoia a Ucrânia contra o nacionalismo expansionista e agressivo do regime de Moscovo.

O nacionalismo de Wilders, Orbán, Robert Fico, Le Pen ou Salvini está na origem da sua defesa, mais ou menos assumida, de Vladimir Putin. A sua “guerra” é contra aqueles que ameaçam uma mítica Europa cristã e etnicamente pura. A sua arma política é convencer os europeus “de origem” de que acabarão por ser “substituídos” por uma nova maioria vinda de fora, com outra cor de pele, outra religião e outra cultura – a chamada “teoria da grande substituição”. O mesmo conjunto de ideias que continua a alimentar os republicanos de Donald Trump.

3. Os partidos nacionalistas e populistas que hoje ocupam um espaço cada vez maior na generalidade dos países da União Europeia não se apresentam como antidemocráticos, como aconteceu na Europa dos anos 1930. Ganham força política e chegam ao poder através de eleições livres e justas. Mas basta observar o que aconteceu na Hungria nos últimos dez anos para entender, para lá de qualquer dúvida, que o seu objectivo é destruir a democracia liberal. Servem-se do poder para anular a independência dos tribunais, limitar drasticamente a liberdade de expressão, calar os media, asfixiar legalmente os partidos da oposição, distorcer a concorrência dos mercados, alterar as Constituições para enfraquecer os direitos dos indivíduos em nome do interesse nacional. A Hungria é já hoje um regime autoritário. Podem ser distintos de país para país, mas não tenhamos dúvidas de que o nacionalismo étnico que defendem tem as suas raízes na mesma rejeição dos fundamentos da democracia liberal. Não é uma questão de propostas diferentes para problemas comuns. É muito mais do que isso.

4. Estão a ganhar terreno porque estão a conseguir “normalizar” as suas bandeiras políticas. Ocupam o espaço que os partidos democráticos do centro político deixaram vago pela falta de respostas convincentes aos problemas que se colocam às sociedades desenvolvidas – a dificuldade de integrar os imigrantes, mas também de combater as desigualdades crescentes que nasceram do neoliberalismo, da globalização sem regras, da perda de estatuto das classes médias, da incompreensão dos medos e dos ressentimentos de muita gente, do crescente distanciamento de elites que se foram tornando cada vez mais distantes e cosmopolitas, os “passageiros frequentes”, na feliz designação do sociólogo alemão Wolfgang Merkel, ou do “politicamente correcto” que, mesmo podendo ser correcto, não levava em conta as percepções de uma parte maioritária da população.

O perigo maior está em que o centro-direita está a ceder à tentação de mimetizar parte do seu discurso e das suas bandeiras, nomeadamente as que fazem dos imigrantes a origem de quase todos os males. Na Alemanha e na França, a CDU/CSU pós-Merkel e os Republicanos viraram à direita. A sucessora de Mark Rutte à frente dos liberais holandeses, por sinal uma refugiada turca, prometeu endurecer as leis migratórias e de asilo. Não quer dizer que essas leis não possam ou não devam ser revistas. Quer dizer que os partidos centrais perderam a iniciativa, deixando-se ir a reboque de soluções xenófobas e racistas que não deviam nem podiam aceitar. “Evitar a questão da imigração e do asilo quando está no topo das preocupações dos eleitores não é uma solução”, escreve o Monde em editorial. “Mas deixar a extrema-direita fixar os termos do debate e acabar por alinhar pelas suas posições também não é.”

O centro-esquerda também ainda não encontrou respostas para um conjunto de problemas novos e velhos. Porque, na União Europeia, não conseguiu encontrar alternativas à visão alemã do funcionamento da moeda única, que levou à resposta “austeritária” à crise financeira de 2008 com as consequências que conhecemos. Porque está ainda longe de conceber um programa económico que seja diferente da mera submissão à lógica dos mercados globais e da competição entre os países europeus com uma dimensão social que responda aos problemas concretos das pessoas concretas. Talvez devesse olhar com mais atenção para a agenda interna de Joe Biden. Só o conseguirá se o fizer a nível europeu. Fá-lo-á em circunstâncias difíceis. Perde terreno em quase todos os países, com a excepção ibérica.

Mas, em primeiro lugar, o centro moderado está a perder terreno porque aceitou a lógica de radicalização própria dos extremos, cortando as pontes que unem a esquerda e a direita.

5. A velha ideia, a que tanta gente se agarrou durante tanto tempo, de que esta vaga nacionalista seria facilmente contida e acabaria por recuar é negada pelos factos todos os dias. A vitória do partido nacionalista, xenófobo e antieuropeu de Wilders numa democracia fundadora da União Europeia, liberal, aberta, tolerante e rica é, de facto, um “tremor de terra” cuja escala se arrisca a causar danos sérios no próprio edifício europeu.

Wilders quer um referendo para decidir sobre o “Nexit”. Como o “Brexit”. Tal como Orbán, promete suspender imediatamente qualquer apoio a Kiev. “A reunião dos chefes de Estado e de Governo prevista para 14 e 15 de Dezembro será um primeiro teste”, escreve também o Monde. O Conselho Europeu terá de aprovar o início das negociações de adesão da Ucrânia e rever o orçamento anual da União para integrar um apoio de 50 mil milhões de euros a Kiev até 2027. O outro debate urgente é sobre uma hipotética vitória de Trump nas presidenciais americanas. Wilders é conhecido como o “Trump holandês”. Orbán é um seu devotado seguidor.

O nacionalismo volta a ameaçar a Europa. Combatê-lo em todas as suas dimensões é cada vez mais urgente. O século XX ensinou-nos quais são as suas consequências (Publico, texto de opinião da jornalista Teresa de Sousa, 26.112.2023, com a devida vénia)

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