segunda-feira, novembro 27, 2023

Público - “Malhar” no Ministério Público

Sem espanto, a Operação Influencer detonou uma explosão política, com estilhaços em ricochete para o Ministério Público (MP). Entre interrogações legítimas, intervenções cínicas e cortinas de fumo, vale a pena esmiuçar algumas dúvidas que circulam por aí, à luz do senso comum e da lei; não dos interesses partidários.

Primeira: o MP pode investigar o primeiro-ministro? Assim que tomar conhecimento da “notícia de um crime” (é assim que a lei lhe chama), não só pode como tem de abrir um inquérito para confirmar ou afastar a suspeita. O indício inicial não precisa ser “forte”, basta que seja plausível e justifique razoavelmente uma investigação. O argumento circular, segundo o qual o primeiro-ministro só pode ser investigado se, logo no momento da primeira suspeita, houver uma quase-certeza de que se vai chegar ao fim com prova para acusar, não tem sentido. É óbvio que, para poder concluir alguma coisa, o MP precisa de investigar primeiro. Aliás, se não abrir inquérito por razões de oportunidade política, poderá até haver crime de denegação de justiça.

Segunda: quem investiga o primeiro-ministro? Talvez por desconhecimento, diz-se que o primeiro-ministro está a ser investigado no Supremo Tribunal de Justiça. Isso é confundir o órgão jurisdicional “tribunal”, composto por juízes, com o edifício do Terreiro do Paço, onde também está instalado um “departamento do MP”, composto por procuradores-gerais adjuntos. Os juízes não conduzem inquéritos criminais. Quem trata disso são os procuradores do MP. Os juízes apenas intervêm nos inquéritos para autorizar certos actos que afectam direitos fundamentais. Mais adiante, se houver acusação, aí, sim, será aberto um processo judicial, num tribunal, conduzido e decidido por juízes.

Terceira: e o parágrafo? É muito curioso dizer-se que o primeiro-ministro se demitiu por causa de meia dúzia de linhas no comunicado da procuradora-geral da República. O tal parágrafo dizia que foi aberto inquérito contra o primeiro-ministro relacionado com uma investigação a pessoas que lhe são próximas e membros do seu Governo. Sem que a lei obrigasse, o primeiro-ministro entendeu demitir-se por imperativo de consciência. E a culpa, acusam agora alguns, é do MP. Mas então era suposto que a procuradora-geral da República fizesse o quê? Omitia aquele esclarecimento público para ser depois acusada de esconder informação relevante para beneficiar o Governo e o PS? Ou, melhor ainda, mandava arquivar o inquérito, independentemente do que lá estivesse, para poupar o país a uma crise política?

Quarta: a montanha pariu um rato? O facto de o juiz de instrução não ter validado a indiciação por todos os crimes nem ter decretado prisões preventivas é, dizem uns, a prova da incompetência do MP; ou da cabala, segundo outros. Grande equívoco. A decisão judicial em causa, além de poder ser revertida em recurso, limitou-se a verificar se existiam os indícios de crimes e as razões cautelares invocadas pelo MP, apenas para efeitos da aplicação de medidas de coacção. A avaliação global da suficiência dos indícios para levar alguém a julgamento só ocorrerá se e quando houver uma acusação. De resto, considerar que a indiciação de quatro pessoas por crimes de oferta indevida de vantagens e de tráfico de influência é uma minudência tem muito que se lhe diga.

Já agora, há outra “ninharia” de que não se fala. Em 29 de Março de 2022 entrou em vigor o artigo 18.º-A da Lei 52/2019, que pune com prisão de um a cinco anos o crime de ocultação intencional de património, para quem, estando sujeito às obrigações declarativas, estiver na posse de dinheiro intencionalmente escondido que devesse ter declarado. Convém ir lendo o Diário da República.

Quinta: influenciar decisões políticas é apenas lobbying? O que interessa é saber se o interesse público foi salvaguardado? Como se “meter cunhas” fosse coisa pouca. A lei é clara. Influenciar o processo de decisão pública para obter um resultado ilícito a troco de vantagens não devidas é crime. Tecnicamente, não é corrupção, mas anda lá perto. A incriminação desses comportamentos corresponde, além do mais, a uma obrigação de Portugal, por força de convenções internacionais que assinou. O lobbying é outra coisa. Não vale a pena mistificar a realidade.

Com estas dúvidas, quem, como eu, apenas souber o que aparece na imprensa achará, no mínimo, precipitado começar já a “malhar” forte e feio no MP. Sobretudo se, atrás disso, se esconder a intenção, muito perigosa, de querer aproveitar um eventual percalço do MP para se passar a controlar politicamente a sua acção.

O reparo final: uma advocacia digna não diz, com ar de conversa de salão, que o presidente do Supremo Tribunal de Justiça faz “conversa de tasca”. Isso é impróprio e impõe um pedido de desculpa (Publico, texto de opinião do magistrado Manuel Soares, Presidente da Direcção da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, 22.11.2023, com a devida vénia)

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