segunda-feira, novembro 27, 2023

Público - Análise: porque é que os estrangeiros votaram no homem esquisito na televisão?

O homem esquisito na televisão ganhou as eleições estrangeiras. Não é a primeira vez que acontece; não foi sequer a única vez que aconteceu nesta semana. Pelo contrário, há um padrão de sucesso eleitoral por parte de homens esquisitos na televisão. Nos últimos anos, em vários países e em vários sistemas, quando confrontados com uma gama diversa de candidatos, os eleitores votaram consistentemente no que era mais esquisito na televisão. Que mensagem estão a transmitir? Que ilações podemos tirar? Que explicações existem para o fenómeno?

Vamos a factos, cientificamente.

Capricórnio

O aspecto físico. Há qualquer coisa no aspecto físico destes homens esquisitos na televisão que estimula o esforço descritivo — o voto é apenas a tradução física dessa compulsão, um gesto pragmático para os manter visíveis até o assunto ficar resolvido. O caso de Javier Milei é exemplar. Ao contrário de Trump, cujo património de esquisitice, apesar do penteado heterodoxo, era predominantemente verbal, ou até de Bolsonaro, cuja esquisitice foi domesticada numa sucessão de imagens de polegares erguidos e tubos enfiados no nariz, Milei parece exigir mais atenção, e multiplicar os esforços descritivos, talvez por evocar um arquétipo específico, mas não imediatamente reconhecível, que é preciso localizar a qualquer custo. Portanto, sucedem-se os esforços metafóricos. Milei lembrará o resultado de uma polinização cruzada entre os genes de Herman José, Gabriel Alves e Joaquin Phoenix? Ou um hipotético ex-médio-centro do Belenenses, reformado nos anos 90, que passou as últimas décadas a gerir uma empresa de equipamentos de pesca submarina, e que toca bateria numa banda rockabilly em Alhandra? A comparação certa está mesmo debaixo da língua — mas não sai.

E assim insistimos, barcos contra a corrente, devolvidos incessantemente ao homem esquisito na televisão.

Aquário

Propaganda. Desinformação. Fake news.

Com a inacção da imprensa tradicional, e a conivência dos russos (provavelmente), os eleitores foram ludibriados e levados a votar contra os seus melhores interesses. Peritos ocultos em salas secretas, munidos de intenções malévolas e algoritmos infalíveis, conseguiram reconfigurar as moléculas de informação a seu bel-prazer, criando poções digitais mágicas, manipulando as vontades de eleitores incautos, transformando-os em paranóicos pré-fascistas, vulneráveis a teorias da conspiração, dispostos a acreditar que o mundo é secretamente governado por uma elite de peritos ocultos em salas secretas, munidos de intenções malévolas e algoritmos infalíveis, capazes de reconfigurar as moléculas de informação a seu bel-prazer, criando poções digitais mágicas, manipulando as vontades de eleitores incautos até eles votarem no homem não esquisito na televisão — portanto, votaram no homem esquisito na televisão.

Virgem

O libertarianismo extremo é, afinal, muitíssimo popular. Isto é aquilo a que em ciência política se chama uma enorme surpresa. Durante anos, julgou-se que o libertarianismo assumido era kryptonite eleitoral, que os talmudismos exóticos de Mises ou Hayek não tinham qualquer apelo nem interesse para uma vasta maioria, e que alguns dos seus objectivos (como transferir poder daqueles em quem votamos para aqueles a quem compramos coisas) tinham de ser camuflados com a retórica de responsabilidade das terceiras vias. Julgou-se que era um pacote doutrinário simplista, pertencente à adolescência da formação ideológica, quando se descobre uma forma de reduzir o tamanho do mundo até ao ponto em que uma única resposta serve para todas as perguntas, e, melhor ainda, quase ninguém a conhece, o que torna os poucos que a adoptam parte automática de uma elite intelectual, ainda que mais ninguém na escola inteira lhes passe cartão.

Mas todas estas crenças estavam erradas. O libertarianismo extremo é, ao que parece, extraordinariamente popular entre os adultos. É por isso que as pessoas votaram no homem esquisito na televisão: o que fala com cães mortos, mas também com austríacos mortos.

Balança

Reacção a um “ismo” qualquer que aflige os eleitores há anos. No caso argentino, a reacção terá sido ao peronismo, uma formulação que pode ser traduzida para quase qualquer circunstância estrangeira à vontade do freguês, mas que designa apenas “aquilo que existe”. É essa qualidade multiforme que permite classificar o peronismo alternadamente como “socialismo” ou “neoliberalismo” — a distinção não tem qualquer importância prática, porque os peronismos são normalmente omnívoros. O que interessa é dar nome e forma a uma ansiedade, e a ansiedade é tudo aquilo que nunca parece mudar, e, entretanto, é preciso um carrinho de mão cheio de notas para comprar um iogurte. Portanto vota-se no homem esquisito na televisão.

Escorpião

Os wokes. Os wokes foram demasiado longe. Alteraram demasiados livros infantis, problematizaram demasiados insultos de recreio, levaram demasiadas pessoas esquisitas à televisão para falar de cromossomas e colonialismo. As pessoas estão fartas e, num acto de revolta, votaram no homem que também é esquisito na televisão, mas de maneira diferente.

Sagitário

Eis algo que foi acontecendo antes, durante e depois de homens esquisitos na televisão começarem a ganhar eleições: a multiplicação de oportunidades para absorver qualquer assunto pelo filtro da disputa política, e a proporcional redução de actos disponíveis para participar politicamente. Votar pode tornar-se aborrecido quando nada muda, e o instinto procura outras maneiras de se manter entretido.

Para quem pode, a política torna-se um passatempo público, e um fetiche secreto: estas são as coisas que eu defendo; aquelas são as coisas a que eu me oponho; e toda a gente vai perceber quem eu sou. Para os que não podem, a política torna-se essencialmente análoga a um fenómeno meteorológico: algo que vai ou não acontecer, mas que se é absolutamente impotente para influenciar ou modificar. Em ambos os casos, a relação com a política é feita enquanto espectador: os segundos limitam-se a saber que chove e depois a molhar-se; os primeiros, a olhar para o espelho enquanto atacam ou defendem a chuva.

Quanto mais a governação prática vai sendo delegada a instituições opacas e a mecanismos em aparente piloto automático, mais fácil se torna concluir que o critério correcto para avaliar candidatos políticos não é aquilo que podem ou querem fazer (como distribuir recursos), mas sim aquilo que são (se ficam tristes com o que nos entristece, se ficam irritados com o que nos irrita).

Ninguém vota na esperança de que algo aconteça. E se a única coisa que se tem é o voto, porque não usá-lo de um modo tão arbitrário, imprevisível, cruel e impessoal como todas as forças que o voto não costuma alterar?

O voto é a vox pop feita carne, mas já não há povo, há um público: a desenhar as suas cicatrizes nos boletins. Cada eleição, nessas circunstâncias, é reduzida à mais patética e ineficaz forma de sufrágio: um referendo. Mostra-se ao eleitorado as suas cicatrizes e pergunta-se, “sim ou não?”. As cruzes dizem “Não!”, como disseram noutros momentos, e voltarão a dizer.

O homem esquisito na televisão é apenas o que fica no lugar certo à hora certa — o nome encontrado por acidente a seguir a esse "Não". De vez em quando o homem esquisito tem cabelo invulgar. De vez em quando grita. De vez em quando fala com austríacos mortos, ou cães mortos. Talvez um dia os cães mortos respondam, e consigam dizer todas as coisas que ainda não sabemos. É nessa esperança que os estrangeiros votaram no homem esquisito na televisão (Publico, texto de opinião de Rogério Casanova, 26.112.2023, com a devida vénia)

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