Na sua caminhada para primeiro-ministro, António Costa começou por pedir uma maioria absoluta. Como a maioria absoluta estava difícil, chegava maioria relativa. Como a maioria relativa estava difícil, chegava ao PS ter mais deputados do que o PSD. Como o PS não teve mais deputados do que o PSD, chegava um acordo de legislatura com o Bloco e com o PCP. Como o Bloco e o PCP não falam um com o outro, chega um acordo de legislatura com o Bloco e um outro com o PCP. Como o PCP não quer acordos de legislatura, é possível que chegue um acordo de investidura. E se o PCP nem um acordo de investidura quiser, António Costa há-de contentar-se com um acordo verbal e um bacalhau.
A seriedade deste procedimento é nula. Quase toda a gente achou que Cavaco foi excessivo na sua intervenção, mas parece-me que quase toda a gente desvalorizou a passagem mais importante do seu discurso. O Presidente falou de forma muito directa de uma “alternativa claramente inconsistente sugerida por outras forças políticas”, acrescentando de seguida: “É significativo que não tenham sido apresentadas, por essas forças políticas, garantias de uma solução alternativa estável, duradoura e credível.”
Convém olhar bem para os adjectivos usados por Cavaco e compará-los com aqueles que polvilhavam a frase mais importante proferida por António Costa após o encontro entre ambos no dia 12 de Outubro. Disse então o líder do PS: “Tive ocasião de informar o Presidente da República sobre a criação de condições para podermos ter em Portugal um governo que seja estável, credível e consistente para os próximos quatro anos.”
Por muito limitado que seja o vocabulário de Cavaco, não terá sido por milagre que os adjectivos que ele escolheu na sua comunicação encaixam na perfeição nos adjectivos que António Costa utilizou à saída de Belém. Costa falou em governo estável, Cavaco disse que não havia solução estável. Costa falou em governo credível, Cavaco disse que não havia solução credível. Costa falou em governo consistente, Cavaco disse que a alternativa era “claramente inconsistente”. Costa falou em governo “para os próximos quatro anos”, Cavaco disse que não havia uma solução “duradoura”.
É fácil adivinhar o que se passou: ao verificar a espantosa discrepância entre aquilo que ouviu da boca de António Costa e aquilo que António Costa resolveu comunicar ao país à saída do encontro entre ambos, Cavaco sentiu-se aldrabado. Pouco dotado de sentido de humor, não achou nenhuma piada aos malabarismos retóricos de Costa e optou por lançar um agressivo aviso ao país, a ver se conseguia acordar algumas consciências. Que o efeito da sua comunicação tenha sido unir o PS, como alguns socialistas se apressaram a celebrar, diz menos sobre a falta de jeito do Presidente da República do que sobre o estado miserável em que se encontra o PS.
Vale a pena recordar que o último socialista com o qual Cavaco Silva teve de coabitar chamava-se José Sócrates, e o resultado de tão bonito convívio foi aquele que conhecemos. Como é óbvio, o Presidente não pode assistir impávido àquilo que considera ser uma golpada parlamentar, só possível porque os seus poderes se encontram diminuídos, e a faltas de lealdade de um candidato a primeiro-ministro que ainda nem sequer tomou posse. Cavaco só falhou numa coisa: sugeriu que o problema estava no PCP e no Bloco. Ora, o problema está, evidentemente, no PS (texto do jornalista JOÃO MIGUEL TAVARES, Público, com a devida vénia)
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