Estudo sobre as democracias no mundo coloca a
maioria da população mundial como residente de autocracias. O maior problema é,
no entanto, a qualidade da democracia nos países que ainda o são, como os
Estados Unidos. Além da conclusão apresentada no título, de que grande parte da
população já vive em regimes autocráticos, o estudo “Relatório da Democracia
2025” da organização de análise de dados sobre democracia Variedade de
Democracia (V-Dem), mostra que quase 40% da população mundial vive em países em
processo de autocratização, ou seja, em regimes que estão a reforçar o
autoritarismo, o que equivale a 3,1 mil milhões de pessoas. Pela primeira vez
em mais de 20 anos, o mundo tem menos democracias (88) do que autocracias (91).
E estas representam a totalidade das democracias eleitorais. Se o critério for
“democracias liberais”, o número cai para um terço: só há 29 em todo o mundo.
As notícias não são boas, mas há nuances. O estudo mostra que há 45 países em processo de autocratização, quando em 2004 apenas 12 estavam nesse caminho; que as restrições à liberdade de expressão agravaram-se em 44 países; e que há 25 países com processos eleitorais menos transparentes agora do que há vinte anos. E o estudo acrescenta ainda que a Europa de Leste e a Ásia do Sul e Central registaram um “declínio particularmente acentuado” — a Bielorrússia tornou-se a primeira e única autocracia fechada na Europa de Leste. O declínio democrático estende-se à Rússia, Hungria, Roménia, Sérvia e Ucrânia e “nem a América do Norte está imune”.
Democracias mais antigas têm problemas mas são
resilientes
No entanto, uma linha geral emerge, explica ao
Expresso Diogo Noivo, investigador associado no Observatório Político do
Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa.
“Muito embora sejam indicadores preocupantes e claramente uma má notícia, não
se vê uma regressão grave nos países onde as democracias estão amadurecidas. O
que temos são experiências democráticas ainda muito frágeis, muito recentes, do
ponto de vista histórico, a ficarem para trás, nomeadamente na Europa de Leste,
África e América Latina. A maioria das democracias em declínio, ainda que não
todas, começaram a fazer o seu caminho para a democracia nos anos 80 e nos anos
90, é muito recente”.
E é precisamente isso que a democracia é: um
caminho. “Não se consegue democratizar um país em 24 horas. É um processo.
Portugal e Espanha são exemplos. Nós começámos as nossas transições
democráticas em meados da década de 70 e só temos uma consolidação da
democracia nos anos 80 com a adesão às entidades europeias. É um processo com
vários momentos, não é um processo linear”.
Os autores do estudo insistem, porém, em chamar a
atenção para esta tendência que deve, pelo menos, deixar-nos alerta. “A direção
inalterada de declínio em todo o mundo torna a situação inegável, talvez mesmo
para observadores anteriormente céticos”, lê-se no estudo, feito em parceria
com o Centro de Estudos Internacionais do ISCTE, em Lisboa. “O nível de
democracia de 2024 regressou a níveis de 1996, segundo as médias nacionais. O
mundo está a sofrer um declínio substancial da democracia, não demonstrando sinais
de desaceleração. O nível de democracia de que beneficia o cidadão comum global
em 2024 encontra-se em níveis registados pela última vez em 1985”.
As más notícias continuam: Quase três quartos da
população mundial – 72% – vive atualmente em autocracias. Trata-se de “um novo
recorde desde 1978”, também em termos populacionais: 5,8 mil milhões de
pessoas. “As democracias liberais acolhem, agora, menos de 12% da população
mundial, ou seja, menos de mil milhões de pessoas, o que representa o valor
mais baixo dos últimos 50 anos”.
Um dos problemas é a lenta taxa de crescimento
populacional nas democracias consolidadas, e por isso mesmo o decréscimo da
democracia na Índia, o país mais populoso do mundo, é um dos fatores que ajudam
a justificar as conclusões do estudo. Se retirarmos a Índia do conjunto de
dados, o nível de democracia ponderado pela população no “mundo excluindo a
Índia” regressa a 1990.
Dos cinco países com maior população – China,
Índia, Indonésia, Paquistão e EUA – apenas este último continua a ser uma
democracia. E mesmo assim, os autores do estudo dedicam um subtítulo a alguns
desenvolvimentos alarmantes neste país. “Quando olhamos para os fatores desta
regressão democrática, o que é que vemos? Vemos polarização, populismo,
estagnação económica, ataques ao Estado de Direito. Estamos a ver estes
fenómenos na Europa, em todo o lado, mas só provocam regressão democrática em
democracias menos consolidadas. Dito de outra maneira, as democracias
consolidadas, apesar de também serem vítimas destes fenómenos, estão a mostrar
capacidade de resistência”, argumenta Diogo Noivo.
Quantidade < Qualidade
Daniel Pinéu, especialista em Relações
Internacionais, professor e investigador na Universidade de Amesterdão, está
menos otimista que os autores do estudo e, num breve comentário ao Expresso,
diz que o factor “qualidade” da democracia é pelo menos tão importante quanto o
da “quantidade” de democracias. “Ainda temos 88 democracias, ainda são muitas,
é verdade. Mas quão saudável é cada uma dessas democracias? Há outros índices,
como o da Economist ou o da Freedom House, que mostram que, no geral, há um declínio
da qualidade democrática. Basta ver, por exemplo, o que está a acontecer, nos
Estados Unidos, onde mesmo antes do Trump houve um marcado de declínio da
qualidade da democracia, da qualidade das instituições, do funcionamento das
instituições, da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa, etc”.
Os números contam sempre só uma parte da história,
e “a história toda é que há democracias que estão a perder qualidade
rapidamente, e isso parece ser também uma tendência, o que é preocupante”. Em
alguns casos, há regimes eleitorais que não são democracias.
É o caso da Rússia. “A Rússia tem eleições, tem
vários partidos, tem uma Constituição, supostamente tem separação de poderes,
mas formalmente não é uma democracia, não funciona como uma democracia, ninguém
pode fazer oposição porque depois têm acidentes, caem de janelas e de
helicópteros e de falésias. A Hungria aproxima-se rapidamente desse nível. As
Filipinas, durante algum tempo, estiveram nesse nível. Na Índia, com Narendra
Modi, há uma tentativa, embora ainda não tenha conseguido degradar tanto as instituições”,
acrescenta, referindo ainda a China onde “há uma separação oficial entre o
Estado e os tribunais entre o Governo e os tribunais entre o Executivo e o
judicial, mas na verdade não porque o Estado pode ditar aos tribunais fazer e
os juízes são um pouco independentes porque são nomeados pelo Governo e há
pouca transparência nos processos de influência do Governo sobre os tribunais”.
O político acima da lei
O tipo de regime mais populoso é claramente o das
autocracias eleitorais, com 46% da população mundial, ou seja, 3,7 mil milhões
de pessoas. Alguns dos países mais populosos do mundo estão enquadrados neste
tipo de regime, como a Etiópia, a Índia e o Paquistão. A Indonésia desceu,
também, para este tipo de regime em 2024, embora para a “zona cinzenta”
autocrática. As autocracias fechadas com grande população incluem a China, o
Mianmar e o Vietname. Este tipo de regime corresponde a 26% da população mundial,
ou seja, 2,1 mil milhões de pessoas.
As mudanças que estão a afetar os regimes
democráticos já não são, como há 50 anos, de origem revolucionária no sentido
das grandes e violentas guerras civis ou golpes de Estado que estão no passado
de algumas das democracias atuais, como a portuguesa. Hoje, as mudanças
acontecem de forma mais lenta, e a Europa, ainda que, como diz Noivo, tenha
estado a resistir, encontra-se no meio de um furacão de forças antagónicas à
dita democracia “tradicional”. “Acabaram os caudilhos militares. Agora, a
dinâmica é outra. É verdade que o presidente pode ser militar, é verdade que o
exército e as forças armadas podem desempenhar um papel importante na regressão
democrática, agora a ideia dos golpes já não vigora. O que temos são ataques ao
Estado de Direito, porque agora o político quer-se emancipar da lei, quer
deixar de cumprir a lei porque acha que o seu poder, como vem do povo,
ultrapassa todas as instituições”.
Diogo Noivo diz que dois bons exemplos desta
espécie de ditadura do voto, em detrimento de todas as outras vias para o
exercício da democracia, são o Brexit e o referendo na Catalunha. “O grande
argumento do Brexit e o grande argumento do separatismo catalão foi que a
vontade do povo sobrepõe-se a tudo. Se temos que acabar com instituições, se
temos que acabar com a separação de poderes, se temos que acabar com a
independência do poder judicial, acaba-se porque é essa a vontade do povo. E,
portanto, o grande paradoxo da regressão democrática é que a linguagem da
democracia está a ser usada para acabar com a própria democracia”.
Menos multilateralismo
E como nenhum país existe sozinho, a erosão da qualidade das democracias leva também ao enfraquecimento da voz comum que elas podiam ter para atacar problemas como as alterações climáticas, a guerra, a fome, as doenças pandémicas. “Uma das vantagens das democracias liberais funcionais, é a capacidade ação coletiva. Portanto, o que está a acontecer é que estes países mais autocráticos não gostam de ser restritos domesticamente pelo seu eleitorado ou pela sua imprensa livre, também não aceitam regras internacionais multilaterais, impostas pelas Nações Unidas ou pela OCDE ou pela ASEAN ou pela União Europeia”, diz Daniel Pinéu. Este panorama leva ao enfraquecimento das próprias instituições e ao desenvolvimento de mais relações bilaterais. “A Hungria diz que a União Europeia é um problema para a sua política externa porque não permite uma relação direta com a Rússia, apenas uma que seja mediada pelas regras da UE” (Expresso)
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