Um investimento de vários milhões de euros numa propriedade de luxo em Londres que correu mal, um outrora poderoso cardeal do Vaticano que gravou secretamente uma conversa com o Papa e uma consultora de segurança acusada de gastar fundos da Igreja em marcas de moda. Não, isto não é o enredo de um novo thriller histórico, mas sim o que emergiu do que foi apelidado de "julgamento do século" do Vaticano, que examinou uma ladainha de má conduta financeira que custou milhões de euros à Santa Sé. O julgamento de dois anos e meio no tribunal criminal da Cidade do Vaticano envolveu 10 arguidos, incluindo, pela primeira vez, um cardeal.
Trata-se de Giovanni Angelo Becciu, outrora uma das figuras mais poderosas do Vaticano, que ocupou o cargo de "sostituto" ("substituto") na Secretaria de Estado da Santa Sé, um equivalente do chefe de gabinete papal. Nesta função, o prelado, de 75 anos, tinha privilégios de acesso ao Papa sempre que necessário e foi mesmo apontado como um potencial futuro Papa.
Atualmente, enfrenta uma pena de cinco anos e meio de prisão, depois de ter sido condenado por vários crimes de peculato. Becciu é o primeiro cardeal a ser condenado e sentenciado por um tribunal do Vaticano. O cardeal tem negado repetidamente as acusações contra ele e, após o veredito, o seu advogado disse que iria recorrer. No entanto, antes do início do julgamento, o Papa destituiu o seu outrora próximo assessor da sua posição de líder do departamento do Vaticano para a canonização de santos, juntamente com o seu direito de voto num futuro conclave.
O julgamento tem sido um teste crítico para o Papa Francisco e para a sua longa batalha para trazer transparência e responsabilidade às finanças obscuras do Vaticano. Ao longo do seu pontificado, o Papa tem procurado limpar o banco do Vaticano, estabelecer um sistema de regulação financeira e reprimir os pagamentos por fora e os conflitos de interesses. O Papa Francisco, à direita, e o Cardeal Giovanni Angelo Becciu, ao centro, são vistos durante a missa de canonização de dois novos santos na Praça de São Pedro, na Cidade do Vaticano, a 9 de outubro de 2022.
O investimento em Londres
No centro do processo está a compra pelo Vaticano
de uma vasta propriedade no bairro de Chelsea, a sudoeste de Londres,
originalmente construída como um salão de exposição de automóveis para os
armazéns Harrods. A Santa Sé gastou mais de 360 milhões de euros no negócio ao
longo de vários anos, mas acabou por registar perdas de quase 140 milhões de
euros depois de ter vendido a propriedade. Os procuradores do Vaticano
argumentaram que a Igreja foi defraudada em milhões ao pagar demasiado pela
propriedade, enquanto uma série de intermediários ganharam somas enormes e os
responsáveis pelo negócio foram negligentes.
Inicialmente, a Santa Sé investiu mais de 180
milhões de euros num fundo gerido por Raffaele Mincione, um financeiro italiano
baseado em Londres, que controlava uma participação de 45% na propriedade de
Chelsea. O investimento inicial foi autorizado quando o Cardeal Becciu era
chefe de gabinete. A outra metade do edifício era propriedade de Mincione.
O plano era transformar o edifício em
apartamentos, mas o Vaticano ficou insatisfeito com o investimento que, segundo
os procuradores, deixou a Igreja com grandes perdas. O edifício, dizem, foi
sobrevalorizado por Mincione e a Secretaria de Estado não foi informada de uma
hipoteca de cerca de 88 milhões de euros sobre a propriedade. O sucessor de
Becciu, Edgar Peña Parra, decidiu comprar o edifício de uma só vez, mas teve de
pagar uma taxa elevada a Mincione.
Depois, um outro financeiro, Gianluigi Torzi, foi
contratado para ajudar a comprar a propriedade, mas é acusado de ter
estruturado o negócio de modo a ficar com o controlo do edifício e o Vaticano a
comprar uma "caixa vazia". Funcionários de topo do Vaticano afirmam
que não foram devidamente informados sobre este facto e que tiveram de pagar
milhões a Torzi para sair do negócio.
O Vaticano anunciou que o julgamento teria início em julho de 2021, com os procuradores a apresentarem uma acusação de 500 páginas que detalha os alegados crimes. Tanto Torzi como Mincione estavam entre os 10 arguidos do processo, que foram todos condenados em algumas acusações e absolvidos noutras. Torzi foi julgado por extorsão, branqueamento de capitais, fraude e desvio de fundos, tendo sido condenado a uma pena de seis anos. Mincione foi acusado de peculato, abuso de poder, fraude e branqueamento de capitais e foi condenado a uma pena de cinco anos e meio. Ambos negaram as acusações que lhes foram imputadas. Mincione intentou também uma ação judicial contra a Santa Sé nos tribunais de Londres.
Mincione disse à CNN que o processo contra ele
"não assenta em nada" e que o Vaticano "nunca conseguiu
demonstrar que comprou a propriedade a um preço inflacionado, ou que perdeu
dinheiro". Ele insistiu que as avaliações da propriedade foram apoiadas
por um relatório independente da consultora PriceWaterhouseCoopers e que o
Vaticano estava "perfeitamente ciente do empréstimo do Deutsche Bank"
sobre o edifício e de "valores alternativos mais baixos". Mincione
acrescentou que sua ação contra a Santa Sé em Londres tem como objetivo
"limpar meu nome" e que está "100% confiante" de que
ganhará o caso.
Embora os reguladores tenham considerado, em 2021, que a Santa Sé tinha feito progressos nas suas reformas financeiras, insistiram que precisava de reforçar os seus esforços para combater as irregularidades, incluindo as dos clérigos seniores. Foi então que surgiu a notícia de que o julgamento iria prosseguir. Para que isso acontecesse, Francisco teve de alterar a lei para permitir que bispos e cardeais fossem julgados num tribunal do Vaticano. Anteriormente, estavam imunes a ações judiciais.
A senhora do cardeal
Becciu era o responsável pela aprovação do
investimento inicial no negócio imobiliário em Londres com fundos da Igreja.
Foi também acusado de desviar mais de 125.000 euros de fundos da Igreja para
uma instituição de caridade da Sardenha gerida pelo seu irmão e de autorizar
575.000 euros em pagamentos da Secretaria de Estado a Cecilia Marogna, uma
"consultora de segurança" supostamente para ajudar a libertar uma
freira raptada em África. Os procuradores do Vaticano argumentaram que este
dinheiro foi utilizado para fins pessoais por Marogna, incluindo cerca de 50
mil euros gastos em vestuário, calçado e acessórios de moda de marcas de luxo
como Prada, Gucci e Hermes.
Marogna, que está na casa dos 40 anos, foi
apelidada de "senhora do cardeal" devido à sua associação com Becciu.
Durante o julgamento, foram mostradas ao tribunal imagens tiradas por Marogna
no interior do apartamento do cardeal e publicadas nas redes sociais com legendas
que diziam "sentir-me em casa" e "o meu paraíso".
Quando a polícia do Vaticano disse a Becciu que o
dinheiro transferido para Marogna não estava a ser utilizado como pretendido,
este pediu-lhes que não informassem ninguém "porque isso traria sérios
danos a ele e à sua família". Durante um interrogatório antes do
julgamento, os procuradores perguntaram a uma testemunha se Becciu e Marogna
tinham uma relação íntima, o que esta negou. Tanto Becciu como Marogna negaram
a existência de uma relação imprópria.
Marogna foi condenado a uma pena de três anos e
nove meses, depois de ter sido condenado por se ter apropriado indevidamente de
centenas de milhares de euros autorizados por Becciu.
Marogna negou qualquer irregularidade e disse ao
jornal italiano Corriere della Sera que gastou os fundos do Vaticano em
honorários para ela e para os seus colaboradores, viagens e outras despesas de
subsistência. Insistiu que tinha desenvolvido uma "rede de relações em
África e no Médio Oriente" para ajudar os diplomatas e missionários do
Vaticano.
Também durante o julgamento, o tribunal ouviu uma
chamada telefónica que Becciu tinha gravado secretamente com o Papa, na qual
tentava confirmar com o pontífice que Francisco tinha autorizado pagamentos
para libertar a freira raptada. De acordo com uma transcrição, o Papa disse que
se lembrava "vagamente" de uma discussão sobre pagamentos, mas pediu
repetidamente a Becciu que explicasse por escrito o que pretendia.
A batalha da reforma em curso
A batalha do Papa para reformar as finanças do Vaticano revelou o problema de colocar clérigos, sem formação financeira profissional, à frente de grandes carteiras financeiras. Na sequência da investigação sobre as propriedades em Londres, Francisco ordenou que os fundos controlados pela Secretaria de Estado da Santa Sé fossem geridos por uma entidade diferente do Vaticano, onde um contabilista experiente, Fabio Gasperini, supervisiona as operações quotidianas. Em 2019, estimava-se que a Secretaria de Estado da Santa Sé geria ativos no valor de mais de 900 milhões de euros. Este caso trouxe recordações do falecido Roberto Calvi, ao centro, que era presidente do Banco Ambrosiano aquando do seu colapso em 1982. O banco do Vaticano era o seu principal acionista.
A Santa Sé tem uma carteira de propriedades em
cidades como Roma, Paris e Londres, que surgiu na sequência da indemnização que
lhe foi paga pela Itália pela perda dos Estados Pontifícios, as partes de
Itália sob o domínio papal até ao século XIX. Neste acordo de 1929, o Tratado
de Latrão, as autoridades italianas também reconheceram a Cidade do Vaticano
como uma entidade soberana. A maior parte das propriedades do Vaticano situa-se
em Roma e é utilizada para alojar os funcionários da Igreja. O financiamento do
Vaticano provém, em grande parte, de doações feitas por católicos de todo o
mundo e das receitas dos turistas que visitam a Capela Sistina e os museus do
Vaticano.
Durante o pontificado de Francisco, o Vaticano
começou a publicar demonstrações financeiras anuais, que revelaram recentemente
um défice de receitas, enquanto o Papa procurou centralizar os investimentos
para aumentar a responsabilização. O acordo de investimento imobiliário em
Londres também foi sinalizado como suspeito pelo sistema de monitorização
interna do Vaticano em 2019, desencadeando o inquérito que levou ao julgamento.
As finanças do Vaticano são há muito uma fonte de
escândalo, e este caso trouxe de volta memórias de Roberto Calvi, o homem
conhecido como "banqueiro de Deus", que foi encontrado enforcado sob
a Ponte Blackfriars em Londres em 1982. Era presidente do Banco Ambrosiano na
altura do seu colapso, sendo o banco do Vaticano o seu principal acionista.
Em 2019, o Papa descreveu o acordo de investimento em Londres como um "escândalo", enquanto esta semana disse aos auditores do Vaticano que a "sedução da corrupção é tão perigosa que temos de estar extremamente vigilantes". Francisco tomou muitas medidas para resolver o problema das finanças do Vaticano. O julgamento mostra que ainda há muito trabalho a fazer. O Papa tem avisado frequentemente: "O diabo entra pelos bolsos" (CNN-Portugal, texto do jornalista Christopher Lamb da CNN)
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