quarta-feira, dezembro 27, 2023

Justiça: O mistério do processo que investiga campanha de Passos Coelho

O Ministério Público averigua tudo ou vai deixando alguma coisa para trás? O processo 1441/17 investiga uma suspeita: a campanha eleitoral do PSD em 2015 terá sido financiada com "luvas" pagas pela construtora brasileira Odebrecht como contrapartida da construção da barragem do Baixo Sabor. Mas a investigação não anda nem desanda - apesar das informações vindas das autoridades judiciais brasileiras. A procuradora-geral da República esclareceu em recente visita à sede da Polícia Judiciária que o Ministério Público não guarda denúncias na gaveta. "Investiga, perante a notícia da prática de factos, aquilo que deve investigar", disse Lucília Gago. Mas há investigações mais ou menos demoradas - e outras que se parecem arrastar no esquecimento, protegidas do escrutínio e da curiosidade, até que o carimbo do arquivamento lhes ponha um fim.

O processo 1441/17 é um dos casos que não anda nem desanda. Investiga o negócio da construção da barragem da EDP no Baixo Sabor, em Torre de Moncorvo, por um consórcio constituído pela brasileira Odebrecht e o grupo português Lena - e abarca um rol de crimes de corrupção ativa e passiva, branqueamento de capitais, recebimento indevido de vantagens e fraude fiscal. Jaz misteriosamente adormecido, vai para sete anos, no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), o órgão do Ministério Púbico contra a criminalidade mais grave e complexa, sem que ainda se conheçam arguidos.

O Ministério Público suspeita que a Odebrecht terá distribuído em Portugal "luvas" no valor de 4,7 milhões de euros como contrapartida pela adjudicação da obra - e que parte desse dinheiro, quase 870 mi euros, terá sido utilizada para financiar em 2015 a campanha eleitoral do PSD, então presidido por Pedro Passos Coelho.

A investigação prossegue, "não tendo sido proferido despacho final", segundo a Procuradoria-Geral da República em resposta ao DN. Continua a marcar passo no DCIAP, apesar das informações enviadas pela Justiça brasileira no âmbito dos acordos de cooperação judiciária entre os dois países.

A Odebrecht foi uma das grandes empresas atingidas pela Operação Lava-Jato - uma das maiores iniciativas de combate à corrupção e lavagem de dinheiro na história do Brasil. As autoridades federais, na resposta à carta rogatória enviada de Lisboa, em agosto de 2019, recordam como o publicitário que trabalhou para a campanha do PSD, André Gustavo, tinha estreitas ligações à Odebrecht - tão estreitas que acabou condenado a seis anos e meio de cadeia: foi ele, por exemplo, o intermediário confesso de pagamentos ilícitos feitos pela Odebrecht ao ex-presidente do Banco do Brasil, Aldemir Bendine. A delação livrou-o do cumprimento da pena.

A investigação no Brasil assinala que os pagamentos faturados por André Gustavo ao PSD e à Coligação Portugal à Frente, através da sua empresa Arcos Propaganda, totalizaram 868 943,24 euros - e "foram feitos no mesmo período" em que da contabilidade paralela da Odebrecht saíram "valores muito semelhantes". As autoridades brasileiras têm uma certeza: o beneficiário destas quantias foi um português identificado na lista de pagamentos da Odebrecht com um nome de código: "Príncipe".

Quem é o "Príncipe"?

Foi em busca da verdadeira identidade do "Príncipe" que o Ministério Público, nos finais de maio do ano passado, quase três anos depois das informações enviadas do Brasil, fez buscas nas instalações da Odebrecht em Portugal, nos arredores de Lisboa. Os procuradores não encontraram nada que denunciasse a misteriosa figura. O "Príncipe" continua a andar por aí.

A história da construção da barragem do Baixo Sabor começa em 2004. O Governo, então liderado por Santana Lopes, anunciou a intenção de avançar com a obra. António Mexia, que abandonara a presidência da Galp, era o ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações. Mas é no verão 2005, já no tempo de José Sócrates, que a obra sofre decisivo impulso. João Talone está de saída da presidência da EDP - e António Mexia, por influência de Vasco de Mello, Paulo Teixeira Pinto e Ferro Ribeiro, será o escolhido para a liderança da companhia. Toma posse em janeiro de 2006. Tem um plano: apostar na produção de energia. A barragem do Baixo Sabor, com capacidade para se tornar no maior centro de produção hidroelétrica do país, é uma peça-chave da estratégia. Mãos à obra.

A EDP abriu um concurso público internacional para selecionar o construtor. Ganhou a Lena, uma média empresa de Leiria sem experiência em obras com a dimensão da barragem. Segundo a EDP, "apresentou a proposta mais competitiva": 250 milhões de euros. O grupo Lena associar-se-á à gigante Odebrecht que, na prática, assumirá a cabeça do consórcio. Era uma época de ouro nas relações luso-brasileiras. As duas empresas prosperavam. A Odebrecht multiplicara por seis, de acordo com a revista Veja, a faturação durante os governos do Partido dos Trabalhadores: passou de 17,3 mil milhões de reais, em 2003, para 107 mil milhões em 2014 (cerca de 1993 milhões de euros).

A barragem encalhou numa torrente de providências cautelares que associações ambientalistas fizeram chegar aos tribunais contra o Estado. As obras atrasaram-se irremediavelmente. O preço final disparou para 760 milhões de euros - valor que inclui um bónus de cerca de 20 milhões de euros negociado entre os advogados das partes. Um dos negociadores, em representação da EDP, foi Rui Pena, sócio do escritório de José Luís Arnaut. A negociação ficou concluída em 2017 - já a Operação Lava-Jato fazia estragos no Brasil e tinham começado em Portugal os inquéritos judiciais à EDP.

Notícias do Brasil

Marcelo Odebrecht, preso em junho de 2015, acabou por colaborar com o juiz Sérgio Moro. Revelou que a empresa tinha um departamento - o "Setor de Operações Estruturadas" - com a função de fazer a contabilidade dos subornos e respetivos pagamentos para garantir que a construtora abocanhava os grandes negócios. A delação valeu-lhe estar a cumprir no conforto do domicílio a pena de 19 anos a que foi condenado.

O acesso à contabilidade paralela da Odebrecht permitiu levantar a ponta do véu ao esquema de corrupção. O "Setor de Operações Estruturadas" geriu seis contas e de uma delas, designada "Paulistinha", saíram cerca de 800 mil euros. As autoridades federais brasileiras creem que o dinheiro foi enviado para Portugal no "quadro de subornos" pagos pela construção da barragem do Baixo Sabor. A movimentação e os valores, insiste a investigação brasileira, coincidem no tempo com os serviços prestados por André Gustavo na campanha do PSD e com os valores cobrados - suspeitas que foram partilhadas com o DCIAP no âmbito do inquérito 1414/17, o tal que nunca mais anda...

As ligações de André Gustavo ao PSD são antigas. Miguel Relvas, de quem é amigo, contratou-o em 2010 para consultou de marketing do PSD - acordo que vigorou até 2016. Relvas, segundo a Visão, passava férias na casa do publicitário, em Porto Galinhas. Contactado pelo DN, Miguel Relvas preferiu o silêncio: "Estou fora da política e não falo do Gustavo", disse.

Cada cavadela, uma minhoca

As investigações relacionadas com a EDP já duram há uma dúzia de anos. Uma averiguação ao negócio da privatização da companhia ordenada em 2012 pela procuradora Cândida Almeida - uma simples busca -, acabou por destapar um enredo judicial que tantos anos depois ainda não tem fim à vista.

Mal o Governo de Passos Coelho, em 22 de dezembro de 2011, decidiu vender ao fundo China Three Gorges os 21,35 por cento do capital da EDP - volume suficiente de ações para os compradores assegurarem uma participação qualificada da empresa -, começaram a chegar à Procuradoria-Geral da República denúncias anónimas sobre a opacidade do negócio.

Lucília Gago garante que Ministério Público investiga todos os casos que lhe chegam

As denúncias eram encaminhadas pelo então procurador-geral, Pinto Monteiro, para o Departamento de Investigação e Ação Penal. No final de janeiro de 2012, já tinham chegado ao DCIAP, dirigido pela procuradora-geral adjunta, Cândida Almeida, seis denúncias contra a EDP. Na primeira semana de fevereiro, havia de chegar mais uma. Esta, porém, não era anónima. Fora enviada pela procuradora Amélia Cordeiro, chefe de gabinete do procurador-geral da República, Pinto Monteiro.

Escassos oito meses depois de ter tomado posse, o Governo chefiado por Passos Coelho enfrentava a primeira rebelião interna: o secretário de Estado da Energia, Henrique Gomes, acabava de declarar guerra às rendas excessivas da EDP - principalmente ao prolongamento do contrato que o Estado celebrou em 2007 com EDP para exploração das barragens.

O acordo - que vinha do tempo de Manuel Pinho, ministro da Economia do Governo de José Sócrates - parecia não incomodar Passos Coelho. Mas o secretário de Estado da Energia não se conformava com o que lhe parecia ser um péssimo negócio para o interesse público. O seu chefe de gabinete, Tiago Andrade e Sousa, reuniu-se com Amélia Cordeiro. A procuradora saiu do encontro convencida de que a EDP fora favorecida. A companhia elétrica pagou ao Estado 750 milhões pela concessão do domínio hídrico - importância elevada que, ainda assim, seria muito abaixo do real valor da exploração das barragens. Todos os estudos técnicos e avaliações, segundo Tiago Andrade e Sousa, indicavam que o negócio devia ter rendido ao Estado, pelo menos, 1500 milhões de euros. Amélia Cordeiro informou Cândida Almeida da conversa com Andrade e Sousa - e a diretora do DCIAP, por fim, pôs a investigação em marcha. O processo foi distribuído aos procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto.

Este caso, que ainda não tem acusação, está relacionado com os Custos de Manutenção do Equilíbrio Contratual. Mexia e Manso Neto são suspeitos de corrupção e participação económica em negócio para a manutenção do contrato das rendas excessivas em que, segundo o Ministério Público, terão corrompido o ex-ministro da Economia Manuel Pinho e o ex-secretário de Estado da Energia Artur Trindade.

Mas ao fim de uma dúzia de anos a ser investigado, o caso da EDP, que tem como principais arguidos António Mexia, João Manso Neto e Manuel Pinho, está praticamente no ponto onde começou. Ainda nem sequer há acusação. Os procuradores que tutelam o processo sofreram recentemente um duro golpe desferido pelo Supremo Tribunal de Justiça. Os juízes conselheiros decidiram em plenário, sem apelo nem agravo, que a maior parte da prova recolhida é nula. Os magistrados do Ministério Público, segundo a decisão do Supremo, cometeram o erro de terem lido e copiado correspondência eletrónica de Mexia e Manso Neto sem mandado do juiz de instrução. Os procuradores argumentaram que os e-mails já tinham sido abertos pelos destinatários. Nem assim! - esclareceu o Supremo. E a prova vai para o lixo (DN-Lisboa, texto do jornalista Manuel Catarino)

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