O jornalista e diretor-adjunto do “Polígrafo” descreve a forma como a mentira se banalizou na política e como André Ventura se tem servido dela. Este texto é uma versão reduzida de um dos capítulos do seu livro“Os Políticos São Todos Iguais!”, que é apresentado esta semana. O ‘mundo de ontem’ estremeceu em janeiro de 2017, quando Kellyanne Conway, então conselheira do recém‑empossado novo Presidente dos EUA, Donald Trump, fundou o conceito de “factos alternativos” para justificar uma falsidade grosseira do porta‑voz da Casa Branca, Sean Spicer. Já havia sofrido múltiplos abalos durante a campanha eleitoral, sob o fluxo contínuo de mentiras expressas pelo insólito candidato do Partido Republicano (além da torrente de fake news nas redes sociais), mas foi no período de exercício do poder que se consolidou o domínio da política pós‑verdade.
Nessa época de metamorfose, André Ventura ainda interpretava a personagem que “argumentou contra o securitarismo, contra o populismo penal, contra os políticos que procuram ganhar votos com o acicatar dos medos e dos preconceitos” (tese de doutoramento), ou defendeu que “países como Portugal e a Irlanda não devem esquecer o seu passado e devem acolher o maior número de migrantes” (artigo de opinião). Aliás, em março de 2017, ao intervir na apresentação do livro “O Efeito Trump e o Brexit”, de Jorge Castela (um dos amigos que o iriam ajudar a criar o partido Chega), Ventura criticou os métodos de Trump, nomeadamente os ataques à imprensa, a comunicação direta pelas redes sociais (para se furtar ao escrutínio jornalístico) e a difusão de mentiras e fake news.
“Hoje, tornou‑se uma espécie de gíria popular — ou uma certa elite intelectual — atacar a comunicação social. Digo isto completamente livre nesta matéria. Nós, em Portugal, temos tido a sorte de ter meios de comunicação social capazes de tocar com o dedo na ferida. […] Temos que ter alguma cautela quando apontamos o dedo à comunicação social”, afirmou o então professor universitário e comentador de futebol, pouco tempo antes de ser anunciado como candidato do PSD nas eleições para a Câmara Municipal de Loures.
“Quando perguntam ao Presidente dos EUA (Trump) porque é que ele usa o Twitter, é porque dá um poder enorme não haver nenhuma espécie de intermediário. Eu escrevo o que quiser. Ninguém me faz a pergunta, sequer”, explicou Ventura. “Na verdade, por trás desta perceção está a lógica de os intervenientes políticos se quererem furtar aos intermediários que fazem perguntas. É incómodo. É muito mais fácil (recorrer às redes sociais). E é por isso que se utiliza isto. […] É esta a lógica das fake news, que são perniciosas, porque nos levam à negação e à defesa permanente. Mas, sobretudo, porque são capazes de convencer em períodos de grande turbulência noticiosa.”
Em 91 dos seus primeiros 100 dias na Casa Branca, de acordo com uma contagem do jornal “The New York Times”, o Presidente Trump proferiu pelo menos uma alegação falsa ou enganadora. No final do mandato de quatro anos registava‑se um total de 30.573 alegações falsas ou enganadoras de Trump, informou o jornal “The Washington Post” em janeiro de 2021. Por exemplo, no debate televisivo frente à adversária Kamala Harris, em 10 de setembro, Trump amplificou uma alegação falsa (propagada de forma viral nas redes sociais) sobre imigrantes haitianos que, em Springfield, Ohio, estariam a roubar animais de estimação para se alimentarem. “Eles estão a comer os cães, eles estão a comer os gatos. Eles estão a comer os animais de estimação das pessoas que lá vivem”, acusou.
Logo no dia seguinte, um vice‑presidente do Chega apresentou nas redes sociais um conjunto de ‘provas’ (sobretudo vídeos falsos ou descontextualizados) da acusação de Trump, estendendo o suposto fenómeno a Portugal (entre outros países europeus) e garantindo: “Os imigrantes andam mesmo a comer os nossos animais de companhia! Aqui deixo as provas para quem tiver estômago para ver! Nojento! Isto já foi longe demais! [sic] É preciso remigrar estes criminosos, doa a quem doer!” Mais uma vez está aqui em funcionamento o sistema de vasos comunicantes (mediante conteúdos tantas vezes perdidos na tradução), assim como a mimetização de Trump e outras referências internacionais desta espécie de populismo pós‑moderno.
Tem sido algo recorrente nas páginas do Chega (formais e informais), dos dirigentes e deputados do partido, assim como do próprio Ventura, que, no momento em que escrevo este parágrafo, acaba de publicar um vídeo que retrata uma aparente situação de violência e destruição (protagonizada por alunos negros) numa escola em Portugal, comentando: “Vejam isto! Esta é a violência que reina nas escolas, fruto da impunidade! É preciso agir já! Salvar Portugal.” O problema é que, na verdade, as imagens foram captadas no Brasil há mais de cinco anos. O que resulta em mais um selo de “Falso” para Ventura no jornal “Polígrafo”. Acumula mais de uma centena desde 2019.
No entanto, a banalização da mentira, utilizada por Ventura como instrumento político, não se limita à esfera das redes sociais. Também é frequente nos discursos, entrevistas, debates, etc. Compilamos cinco exemplos concretos dos últimos anos, do mais recente para o mais antigo.
O deputado e líder do Chega, André Ventura, em entrevista à CNN Portugal, em 21 de agosto de 2024, explicou as medidas que propõe para restringir a imigração em Portugal e impõe como condição “incontornável” para viabilizar o próximo Orçamento do Estado um referendo sobre a imigração (no sentido de estabelecer quotas e um limite anual), a proibição de acesso a subsídios pelos imigrantes antes de completarem cinco anos no país e um reforço do controlo de fronteiras.
Nessa parte da entrevista, Ventura insistiu mais na questão dos subsídios ou no acesso a apoios da Segurança Social. E quando a jornalista o confrontou com os imigrantes serem contribuintes líquidos da Segurança Social — responsáveis por um saldo positivo de 1604,2 milhões de euros em 2022, por exemplo —, o líder do Chega apontou para outros efeitos, nomeadamente a pressão nos centros de saúde e na habitação. Daí saltou para uma acusação a Marcelo Rebelo de Sousa.
“O nosso Presidente da República foi a Timor chamar timorenses que agora estão a viver no Parque das Nações, na estação de comboios. Você acha isto normal? Acha normal eu ir fazer uma visita à igreja em Arroios e estarem só imigrantes ali à volta a viver em tendas? Quer dizer, nós podemos ser o país do politicamente porreiro, está tudo certo, eu compreendo isso, eu nasci cá, eu sou de cá, eu compreendo bem o país em que vivo. Agora, vamos lá ver uma coisa, contribuir para a Segurança Social, também era o que mais faltava era que não pagassem Segurança Social”, declarou Ventura.
Esta alegação baseia‑se num vídeo que tem sido partilhado nas redes sociais. Mais precisamente, baseia‑se num breve excerto recolhido de um vídeo mais longo que está publicado na página da Presidência da República, no âmbito de uma visita à Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL), em Díli, no ano de 2022. Depois de uma cerimónia de boas‑vindas, o chefe de Estado discursou perante um grupo de alunos da UNTL no respetivo Centro de Língua Portuguesa.
Rebelo de Sousa convidou então o grupo a visitar Portugal “em fatias”, mas naquele contexto em particular, expressando até disponibilidade para receber os estudantes universitários no Palácio de Belém, em Lisboa, para uma conversa “informal”.
Estas declarações do Presidente da República motivaram, alguns meses mais tarde, um esclarecimento do próprio, após ter sido noticiado que estavam 865 timorenses em Portugal referenciados pelo Alto Comissariado para as Migrações (ACM), “dos quais 542 já foram realojados e 161 já estão integrados no mercado de trabalho”.
Em outubro de 2022, no final de um encontro com o Presidente de Timor‑Leste, José Ramos‑Horta, em que se abordou a situação dos imigrantes timorenses noticiada dias antes, Rebelo de Sousa negou ter incentivado a imigração de timorenses para Portugal durante a sua visita a Díli, em maio desse ano.
O Presidente da República explicou que, em Díli, tinha proferido aquelas declarações em contexto universitário e não dirigidas a “trabalhadores indiferenciados”. E sublinhou: “Fui muito preciso, falei para estudantes universitários e até acrescentei: ‘mas não venham muitos, venham em fatias moderadas’. Eu até disse, ironicamente, se não criasse um problema em Portugal, financeiro, económico.”
Na mesma conferência de imprensa, Ramos‑Horta sublinhou que essa imigração de timorenses resulta de “atos ilegais de grupos sem escrúpulos” que fazem “promessas falsas aos jovens” e “vendem ilusões” sobre a vida em Portugal ou no Canadá.
“André Ventura afirmou, em junho, que o Chega não se vendia, pois tinha princípios, porque Portugal tinha que ser um país sem corrupção, um país limpo, e por isso diziam não ao Governo de Miguel Albuquerque (na Região Autónoma da Madeira). Mas menos de um mês depois o partido de extrema‑direita ajudou a viabilizar o Programa do Governo de Miguel Albuquerque”, destacava‑se numa publicação de 6 de julho no Facebook.
Realçavam‑se também algumas citações atribuídas a Ventura datadas de 11 de junho, nomeadamente: “Não nos vendemos… Nem nos deixamos comprar!”; “Albuquerque não tem condições para ser presidente nem na Madeira nem em lado nenhum de Portugal e nós não lhe daremos o nosso apoio”; “Ao apoiar Governos como este, como o de Albuquerque, até se pode ganhar votos… Mas vamos perder futuro”; “Portugal tem que ser um país sem corrupção! Nós vamos dizer ‘não’ a este Governo de Albuquerque porque no Chega os princípios não estão à venda, nunca estarão!”
De facto, estas citações foram transcritas de um vídeo difundido pelo próprio Ventura no X/Twitter (e outras redes sociais) no dia 11 de junho. Aliás, no tweet em causa, a par do vídeo, escrevia o seguinte: “O Chega vai votar contra o Programa do Governo de Miguel Albuquerque!” E reforçava a promessa: “Apesar das possíveis repercussões, o Chega não compactua com a corrupção! Estamos firmemente comprometidos em limpar Portugal. Pelos portugueses, sempre!”
No entanto, em 4 de julho, o Programa do XV Governo Regional da Madeira, liderado por Albuquerque (do PSD-Madeira), foi aprovado na Assembleia Legislativa com 22 votos a favor (de deputados do PSD, do CDS‑PP e do PAN) e 21 votos contra (de deputados do PS, do JPP e de uma deputada do Chega).
Para a aprovação foram decisivas as abstenções de três deputados do Chega e um deputado da Iniciativa Liberal. Ao contrário do que Ventura prometera, o Chega (com a exceção de uma deputada, num grupo de quatro) não votou contra.
Antes de ser conhecido o Programa Eleitoral do Chega das legislativas de 2024, em entrevista ao jornal “Público”, questionado sobre se continuava a defender medidas como a castração química de condenados por abuso sexual de menores e a pena de prisão perpétua para crimes graves (inscritas no Programa Eleitoral de 2022), André Ventura garantiu que “sim, absolutamente”.
“Este Programa é mais extenso do que o outro e nós também o assumimos por uma razão: em 2022, o Chega era candidato a um grupo parlamentar maior; em 2024, o Chega é candidato a vencer as eleições, segundo dizem as sondagens. O Programa não está ainda completamente encerrado, mas do ponto de vista da justiça nada mudou no nosso Programa. Apenas foram aprofundados alguns temas, também fruto do contexto. Por exemplo, para nós, como referiu, a prisão perpétua continua a ser fundamental, porque a maior parte dos países da Europa têm prisão perpétua”, afirmou o líder do Chega.
Confirma‑se que “nada mudou”? O Programa Eleitoral de 2022 tinha um capítulo específico dedicado ao sector da justiça sob o mote: “Contra os socialismos, reformar a justiça manietada pelos partidos do sistema.”
E nessa missão “contra os socialismos”, do ponto de vista da justiça, o partido de Ventura propunha as seguintes medidas:
• “O Chega reformará o sistema de justiça pela conjugação entre o princípio do poder dissuasor das leis, traduzido no agravamento de penas, e o princípio da simplificação e desburocratização das leis e da sua aplicação. Esta conjugação gera confiança dos cidadãos na justiça e celeridade no seu funcionamento.
• O Chega promoverá o aumento da moldura penal máxima, designadamente a prisão perpétua para crimes violentos, homicídios, terrorismo e crime organizado, corrupção e crimes sexuais contra menores.
• O Chega combaterá o excesso de garantismo pela redução do atual sistema ultrapermissivo de expedientes dilatórios.
• O Chega impossibilitará que um arguido indiciado por abuso sexual de menores e reincidente possa aguardar julgamento em liberdade, como acontece na maior parte dos casos.
• O Chega defenderá a aplicação da prisão preventiva a suspeitos de crimes de colarinho branco e criminalidade económico‑financeira organizada, nomeadamente quando existem bases e ramificações internacionais que auxiliem à fuga ou à ocultação de capitais.
• O Chega defende, para incendiários responsáveis por mortes, penas de prisão efetiva e nunca penas alternativas.
• O Chega revogará quer o efeito suspensivo de recursos para o Tribunal Constitucional de processos‑crime particularmente gravosos, para evitar a fuga de arguidos para o estrangeiro, como aconteceu com João Rendeiro, quer as exceções ao cumprimento da pena de prisão efetiva, como a que permitiu a Armando Vara sair em liberdade.”
Entretanto, no Programa Eleitoral de 2024, apesar da garantia expressa por Ventura de que “nada mudou”, a verdade é que a proposta de “aumento da moldura penal máxima, designadamente a prisão perpétua” para uma série de crimes (versão de 2022), mudou para uma formulação mais vaga e moderada em 2024: “Introduzir a pena de prisão perpétua com possibilidade de revisão depois de cumprida uma parte da pena.”
Por sua vez, não se identifica vestígio da proposta de “penas de prisão efetiva e nunca penas alternativas” para “incendiários responsáveis por mortes”. O mesmo se aplica à “prisão preventiva a suspeitos de crimes de colarinho branco e criminalidade económico‑financeira organizada”.
Quanto à “castração química”, mantém‑se no Programa Eleitoral de 2024, mas com uma denominação mais branda de “tratamento para a inibição da libido”.
Em suma, além de propostas que deixaram de constar no Programa de 2024, a medida sobre a “prisão perpétua” foi substancialmente refreada com a “possibilidade de revisão depois de cumprida uma parte da pena”, algo que não estava inscrito no Programa de 2022. Há mudanças nas propostas do Chega para o sector da justiça, ao contrário do que garantiu Ventura na referida entrevista.
Em entrevista à CNN Portugal, o líder do Chega foi confrontado com a seguinte pergunta: “Em 2019, o André Ventura defendia o fim dos serviços públicos de saúde e de educação. Não vai manter essa proposta eleitoral do Chega, ou vai? Já mudou de ideias?”
“Repare, já passaram as eleições de 2022, já passaram as presidenciais de 2021, para além de que isso não é verdade como está escrito assim”, respondeu prontamente Ventura. “O Chega tem um património de que eu me orgulho. Que é, nós somos provavelmente o partido da Assembleia da República que mais propostas fez para defender o Serviço Nacional de Saúde. Na Assembleia da República.”
“Portanto, mudou de ideias”, insistiu a jornalista. “Não, não mudei de ideias. Não mudei de ideias porque isso é falso. E sabe porque é que é falso? Eu entrei no Parlamento em 2019. Vá ver as nossas propostas desde o dia 1”, sublinhou.
Afinal, quem tem razão? De facto, no Programa Político do Chega referente às eleições legislativas de 2019, mais concretamente na página 45, em alínea dedicada às “funções reguladoras e arbitrais” do Estado, defendia que “ao Estado não compete a produção ou distribuição de bens e serviços, sejam eles serviços de educação ou saúde, ou sejam os bens vias de comunicação ou meios de transporte”.
Mais à frente, na página 49, tratando especificamente do sector da saúde, estabelecia‑se que “o Estado não deverá, idealmente, interferir como prestador de bens e serviços no mercado da saúde, mas ser apenas um árbitro imparcial e competente, um regulador que esteja plenamente consciente da delicadeza, complexidade e sensibilidade deste mercado”.
Nesse sentido, propunha‑se “concentrar a atuação do Estado, neste caso por intermédio do Ministério da Saúde, numa função essencialmente de arbitragem, de regulação e de inspeção”, ou “promover a gestão privada dos hospitais públicos, com demonstração pública do benefício obtido e redução de custos para o contribuinte”, entre outras medidas.
Quanto ao sector da educação, a medida mais emblemática do Programa Político do Chega era mesmo “a extinção do Ministério da Educação”, literalmente.
“O Estado manterá nas suas mãos uma função arbitral, de regulação e de inspeção sediada em organismo dependente da Presidência do Conselho de Ministros. Essas funções seriam exercidas sobre todos os graus de ensino não superior (planos de estudo, exames, etc.). As instalações escolares passariam, num primeiro momento, para a tutela da Direção‑Geral do Património, que, de seguida, as ofereceria a quem nelas demonstrasse interesse, dando‑se prioridade absoluta aos professores nelas lecionando nesse momento. Os professores que pretendessem assumir a posse do seu estabelecimento de ensino criariam uma empresa ou uma entidade cooperativa para a qual transitaria a propriedade desse estabelecimento”, lia‑se na página 30 do documento.
Recorde‑se que, pouco tempo depois, o Programa Político em causa deixou de estar disponível no site do Chega. Em agosto de 2021 acabou por surgir uma nova versão, quase dois anos depois de Ventura ter anunciado uma “clarificação inversa” do Programa Político do partido.
“Em 2020, éramos o 15º país da União Europeia em PIB per capita em poder de compra, […] com 85% da média da União Europeia. Em 2022, éramos o 21º, ou o 22º se considerarmos a Roménia, com 77% da média da União Europeia. Pior do que nós só a Letónia, a Croácia, a Grécia e a Bulgária. Senhor Primeiro‑Ministro, tenha vergonha, tenha vergonha de nos pôr atrás de países que há uns anos nem linha de comboio tinham”, acusou o deputado André Ventura, em 30 de outubro de 2023, no Parlamento, em debate sobre a proposta de Orçamento do Estado para 2024 (OE 2024), na primeira interpelação do líder do Chega ao então primeiro‑ministro António Costa.
“E vêm aqui dizer que estamos a convergir? Mas estamos a convergir com quem? Com os Camarões? Com o Azerbaijão? Estamos a convergir com quem, com o Botswana? É com esses que estamos a convergir? É que eu queria convergir com a Alemanha, com a França, com a Itália… Agora, o senhor Primeiro‑Ministro parece querer convergir com a Índia, com o Bangladexe, com Moçambique e com os Camarões! Essa é que é a diferença”, sublinhou.
É verdade que Portugal não tem convergido no PIB per capita com países como a Alemanha, França e Itália? De acordo com os dados compilados pelo Eurostat, em matéria do Produto Interno Bruto (PIB) per capita, em Paridades de Poder de Compra (PPC), Portugal baixou de 78% da média da União Europeia (com 27 Estados‑membros, excluindo desde logo o Reino Unido, que deixou de ser membro em 2020) em 2015, quando António Costa assumiu o cargo de primeiro‑ministro, para 77% em 2022.
Entre os atuais 27 Estados‑membros, Portugal ocupava a 17ª posição em 2015, tendo caído para a 22ª posição em 2022. Neste indicador, foi ultrapassado, de facto, por países como Estónia, Lituânia ou Polónia. Ao dizer que “pior do que nós só a Letónia, a Croácia, a Grécia e a Bulgária”, contudo, Ventura esqueceu‑se de referir a Eslováquia.
Mas o problema é quando o líder do Chega sugere explicitamente que Portugal não tem convergido neste indicador com países como a Alemanha, França e Itália.
Segundo os dados do Eurostat, ao passo que Portugal baixou apenas em um ponto percentual (de 78% para 77% da média da União Europeia) de 2015 para 2022, países como a Alemanha (‑7 pontos percentuais) e França (‑5 pontos percentuais) registaram descidas mais acentuadas. Por seu lado, Itália baixou em um ponto percentual, a par de Portugal.
O que os dados demonstram é que, neste indicador do PIB per capita em PPC, há uma convergência de Portugal em relação à Alemanha e a França — países que registaram descidas mais acentuadas e, como tal, ficaram mais próximos do nível de Portugal.
Para que não restem dúvidas: a diferença entre a Alemanha e Portugal baixou de 46 pontos percentuais em 2015 para 40 pontos percentuais em 2022; a diferença entre França e Portugal baixou de 29 pontos percentuais em 2015 para 25 pontos percentuais em 2022.
Sobre uma imagem que retrata André Ventura a discursar no Parlamento, salienta‑se uma citação atribuída ao mesmo sobre o fenómeno dos incêndios florestais (ou rurais) em Portugal. Ventura garante que “80% dos incêndios têm mão humana. Se acabarmos com as penas suspensas, ajudamos a resolver o problema”.
No que respeita às causas dos incêndios florestais, o líder do Chega tem razão? De acordo com os últimos dados compilados pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), no âmbito do “4º Relatório Provisório: 1 de Janeiro a 15 de Agosto”, “a base de dados nacional de incêndios rurais regista, no período compreendido entre 1 de janeiro e 15 de agosto de 2023, um total de 6085 incêndios rurais, que resultaram em 27.802 hectares de área ardida, entre povoamentos (15.848 ha), matos (10.218 ha) e agricultura (1736 ha)”.
“Comparando os valores do ano de 2023 com o histórico dos 10 anos anteriores, assinala‑se que se registaram menos 31% de incêndios rurais e menos 56% de área ardida relativamente à média anual do período”, indica o relatório do ICNF. “O ano de 2023 apresenta, até ao dia 15 de agosto, o segundo valor mais reduzido em número de incêndios e o quarto valor mais reduzido de área ardida desde 2013.”
Quanto à “análise das causas”, segundo informa o ICNF, “do total de 6085 incêndios rurais verificados no ano de 2023, 4604 foram investigados e têm o processo de averiguação de causas concluído (76% do número total de incêndios — responsáveis por 39% da área total ardida). Destes, a investigação permitiu a atribuição de uma causa para 3291 incêndios (71% dos incêndios investigados — responsáveis por 34% da área total ardida)”.
“Até à data, as causas mais frequentes em 2023 são: incendiarismo — imputáveis (22%) e queimadas de sobrantes florestais ou agrícolas (19%). Conjuntamente, as várias tipologias de queimas e queimadas representam 48% do total das causas apuradas. Os reacendimentos representam 4% do total das causas apuradas, um valor inferior face à média dos 10 anos anteriores (12%)”, especifica‑se.
Ora, Ventura referiu‑se a “mão humana” num sentido de intencionalidade e/ou criminalidade, associando desde logo a questão das “penas suspensas”. Nesse âmbito mais restrito, a categoria de incendiarismo — imputáveis não vai além de 22% do total de incêndios registados em 2023 com uma causa atribuída mediante investigação.
Desde 2013, aliás, a categoria de incendiarismo — imputáveis oscilou entre um ponto máximo de 35% em 2020 e um ponto mínimo de 16% em 2018.
Mesmo assumindo um possível sentido mais lato da expressão de Ventura, somando as categorias de incendiarismo — imputáveis e de uso do fogo (vários tipos de “queimadas”, “queimas” e “realização de fogueiras”), a verdade é que resulta num total de 71%, não de 80%.
Desde 2013, a soma destas categorias nunca atingiu um total de 80%. Por exemplo, em 2020, quando a categoria de incendiarismo — imputáveis ascendeu a um ponto máximo de 35%, a soma com as categorias de uso do fogo resultou num total de 66%.
“O senhor Primeiro‑Ministro prometeu que iríamos ter médico de família para todos. E enfermeiro de família para todos e hospitais para todos e tudo para ganhar eleições para todos também… O que o senhor Primeiro‑Ministro não disse é que já nem era a questão de nem todos terem médico de família, é que alguns iam mesmo perder o médico de família, é que alguns iam mesmo perder o hospital, é que alguns iam mesmo perder o acesso ao cuidado de saúde”, começou por sublinhar André Ventura, deputado e líder do Chega, na sua primeira interpelação ao primeiro‑ministro António Costa no debate sobre o estado da nação, em 20 de julho de 2023, no Parlamento.
“Os utentes sem médico de família subiram 249% em quatro anos. Este número devia envergonhar‑vos, 249%, significa muitos mais portugueses sem médico de família! Batam palmas agora, batam palmas agora a esta realidade”, acusou o deputado do Chega.
A percentagem indicada tem fundamento?
De acordo com os últimos dados disponíveis no portal Transparência do SNS, o número de utentes inscritos em cuidados de saúde primários sem médico de família atribuído fixou‑se em 1.549.062 no final do mês de junho, mais 28.739 por opção, perfazendo assim um total de 1.577.801 utentes.
Há exatamente quatro anos, no final de junho de 2019, registavam‑se 798.861 utentes sem médico de família, mais 25.612 por opção, perfazendo assim um total de 824.473 utentes.
Significa isto que, nos últimos quatro anos, verifica‑se um aumento de 753.328 utentes sem médico de família, mais 94,3%. É uma percentagem muito inferior à evocada por Ventura no Parlamento.
Importa também realçar que, no mesmo período, o número de utentes inscritos em cuidados de saúde primários também aumentou de 10.245.738 em junho de 2019 para 10.622.877 em junho de 2023. Portanto, mais 377.139 utentes inscritos (Expresso, texto do jornalista Gustavo Sampaio)
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