Portugal
ultrapassou, no passado dia 18, o marco de 4,5 milhões de vacinas administradas
contra a covid-19. Apesar de ainda estar longe da imunidade de grupo, que a
task force acredita poder atingir entre o final de julho e início de agosto,
este era um cenário inimaginável há um ano. O esforço mundial na investigação e
desenvolvimento desta arma de prevenção surtiu efeito, mas há ainda muito sobre
a doença que falta conhecer. “Penso que com o tempo, e sobretudo com a experiência,
abordaremos estes doentes cada vez com maior facilidade, mas não deixo de achar
engraçado ver que numa doença tão recente já tenhamos estado tão certos e tão
errados”, comenta Marta Jonet, especialista em medicina interna do Hospital
Fernando Fonseca.
Embora existam diferentes formas de tratar os doentes, não está disponível nenhum medicamento especialmente desenhado para combater o SARS-CoV-2. “Chamo a atenção para a enorme ameaça que paira sobre o sistema de saúde, nomeadamente o risco de estarmos face a duas outras pandemias: a pandemia das doenças não-covid e a pandemia das consequências a longo prazo da doença covid”, alerta o médico e consultor da Direção-Geral da Saúde (DGS) António Diniz.
Contudo,
o desconhecimento inicial relativo à pandemia, aos seus perigos e às suas
consequências foi sendo progressivamente diminuído com a experiência de campo
vivida nos hospitais. Também nos laboratórios, investigadores procuraram
densificar o conhecimento sobre esta ameaça invisível. “Não duvido que, na
generalidade, nos hospitais portugueses as pessoas com covid-19 foram
assistidas e tratadas de acordo com o melhor conhecimento científico existente
em cada momento”, adianta António Diniz. E refere uma evolução particularmente
acentuada nas enfermarias e nos cuidados intensivos, em especial na utilização
de medicamentos e terapêuticas com “reflexos positivos na letalidade
intra-hospitalar e na morbilidade associada”.
No
Hospital de Guimarães foi criada uma estrutura integrada com uma enfermaria
avançada e uma unidade intermédia, locais para onde são encaminhados doentes
com eventual necessidade de ventilação respiratória. “Este planeamento, que
utilizou a capacidade de suporte dos doentes mais graves por médicos de
diferentes especialidades, permitiu oferecer cuidados eficientes e reduzir
significativamente o número daqueles que necessitavam de transitar para camas
de cuidados intensivos”, explica Pedro Cunha, envolvido na coordenação deste
projeto. Esta capacidade de adaptação dos serviços de saúde às exigências da
pandemia faz parte daquilo a que o médico de medicina interna chama “uma
revolução silenciosa”.
Responsável
pelos cuidados intensivos polivalentes do Hospital São Francisco Xavier, em
Lisboa, Pedro Póvoa concorda e especifica que, além da constituição de equipas
médicas e de enfermeiros, foi ministrada “muita formação”, realizadas “obras em
tempo recorde”, desenhados protocolos de atuação e adaptados espaços
hospitalares. Sublinha, porém, as consequências da expansão das zonas dedicadas
aos doentes covid. “Estes alargamentos foram feitos à custa do encerramento de
outras áreas funcionais, como blocos operatórios e recobros cirúrgicos”,
afirma, aludindo ao adiamento de intervenções cirúrgicas verificado durante a
crise sanitária.
Para
António Diniz, a reação dos profissionais e dos serviços mostra que o “SNS é a
base e a chave de todo o edifício da saúde em Portugal”, mas deixa também a
descoberto a “necessidade do seu redimensionamento em termos de recursos
humanos e, sobretudo, de modelos de gestão desses recursos”. Pedro Cunha
exemplifica com a “estratégia de ação comum com os serviços de ação social e
apoio comunitário”, que permitiu retirar doentes recuperados ou em melhoria
substancial dos hospitais e, assim, libertar camas para casos de doença aguda.
“Se há lição particularmente valiosa a reter, é a deste empenho conjunto para
uma causa comum, exemplo a repetir e a amplificar no futuro”, defende.
AS
PANDEMIAS DA PANDEMIA
O
adiamento de 1,2 milhões de consultas e de mais de 150 mil cirurgias preocupa
António Diniz, que diz que seria evitável, em parte, com mais “planeamento e
organização”. Esta dificuldade na prestação de cuidados assistenciais pode
refletir-se em maleitas por diagnosticar ou doenças detetadas em fases mais
avançadas e, consequentemente, mais gravosas para os doentes. A recuperação
célere deste atraso é por isso essencial. “Hoje estamos mais equipados e
preparados, o que espero que também signifique que não voltaremos a deixar
abandonados os doentes não-covid”, diz Vítor Papão, diretor-geral da Gilead
Sciences.
“É
urgente a criação de uma estratégia nacional de abordagem às consequências a
longo prazo da covid-19”, refere o consultor da DGS, dando como exemplo
impactos pulmonares, cardiovasculares, neurológicos ou renais. Estes efeitos
prolongados no tempo, mesmo após a recuperação da infeção, são conhecidos como
síndrome pós-covid (ver P&R). “Ainda não é certo que as sequelas sejam
permanentes, no entanto, pela morbilidade associada, esta síndrome tem levado à
necessidade de seguimento específico”, detalha Marta Jonet. O esforço de
combate, em particular no pico da crise, em janeiro, não deve ser descurado e
deve, defendem, servir para reter lições que permitam tornar o sistema de saúde
mais resiliente a ameaças futuras (Expresso, texto do jornalista Francisco de
Almeida Fernandes)
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