quarta-feira, junho 02, 2021

Sequelas pós-covid podem ser a próxima crise sanitária


Portugal ultrapassou, no passado dia 18, o marco de 4,5 milhões de vacinas administradas contra a covid-19. Apesar de ainda estar longe da imunidade de grupo, que a task force acredita poder atingir entre o final de julho e início de agosto, este era um cenário inimaginável há um ano. O esforço mundial na investigação e desenvolvimento desta arma de prevenção surtiu efeito, mas há ainda muito sobre a doença que falta conhecer. “Penso que com o tempo, e sobretudo com a experiência, abordaremos estes doentes cada vez com maior facilidade, mas não deixo de achar engraçado ver que numa doença tão recente já tenhamos estado tão certos e tão errados”, comenta Marta Jonet, especialista em medicina interna do Hospital Fernando Fonseca.

Embora existam diferentes formas de tratar os doentes, não está disponível nenhum medicamento especialmente desenhado para combater o SARS-CoV-2. “Chamo a atenção para a enorme ameaça que paira sobre o sistema de saúde, nomeadamente o risco de estarmos face a duas outras pandemias: a pandemia das doenças não-covid e a pandemia das consequências a longo prazo da doença covid”, alerta o médico e consultor da Direção-Geral da Saúde (DGS) António Diniz.

Contudo, o desconhecimento inicial relativo à pandemia, aos seus perigos e às suas consequências foi sendo progressivamente diminuído com a experiência de campo vivida nos hospitais. Também nos laboratórios, investigadores procuraram densificar o conhecimento sobre esta ameaça invisível. “Não duvido que, na generalidade, nos hospitais portugueses as pessoas com covid-19 foram assistidas e tratadas de acordo com o melhor conhecimento científico existente em cada momento”, adianta António Diniz. E refere uma evolução particularmente acentuada nas enfermarias e nos cuidados intensivos, em especial na utilização de medicamentos e terapêuticas com “reflexos positivos na letalidade intra-hospitalar e na morbilidade associada”.

No Hospital de Guimarães foi criada uma estrutura integrada com uma enfermaria avançada e uma unidade intermédia, locais para onde são encaminhados doentes com eventual necessidade de ventilação respiratória. “Este planeamento, que utilizou a capacidade de suporte dos doentes mais graves por médicos de diferentes especialidades, permitiu oferecer cuidados eficientes e reduzir significativamente o número daqueles que necessitavam de transitar para camas de cuidados intensivos”, explica Pedro Cunha, envolvido na coordenação deste projeto. Esta capacidade de adaptação dos serviços de saúde às exigências da pandemia faz parte daquilo a que o médico de medicina interna chama “uma revolução silenciosa”.

Responsável pelos cuidados intensivos polivalentes do Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa, Pedro Póvoa concorda e especifica que, além da constituição de equipas médicas e de enfermeiros, foi ministrada “muita formação”, realizadas “obras em tempo recorde”, desenhados protocolos de atuação e adaptados espaços hospitalares. Sublinha, porém, as consequências da expansão das zonas dedicadas aos doentes covid. “Estes alargamentos foram feitos à custa do encerramento de outras áreas funcionais, como blocos operatórios e recobros cirúrgicos”, afirma, aludindo ao adiamento de intervenções cirúrgicas verificado durante a crise sanitária.

Para António Diniz, a reação dos profissionais e dos serviços mostra que o “SNS é a base e a chave de todo o edifício da saúde em Portugal”, mas deixa também a descoberto a “necessidade do seu redimensionamento em termos de recursos humanos e, sobretudo, de modelos de gestão desses recursos”. Pedro Cunha exemplifica com a “estratégia de ação comum com os serviços de ação social e apoio comunitário”, que permitiu retirar doentes recuperados ou em melhoria substancial dos hospitais e, assim, libertar camas para casos de doença aguda. “Se há lição particularmente valiosa a reter, é a deste empenho conjunto para uma causa comum, exemplo a repetir e a amplificar no futuro”, defende.

AS PANDEMIAS DA PANDEMIA

O adiamento de 1,2 milhões de consultas e de mais de 150 mil cirurgias preocupa António Diniz, que diz que seria evitável, em parte, com mais “planeamento e organização”. Esta dificuldade na prestação de cuidados assistenciais pode refletir-se em maleitas por diagnosticar ou doenças detetadas em fases mais avançadas e, consequentemente, mais gravosas para os doentes. A recuperação célere deste atraso é por isso essencial. “Hoje estamos mais equipados e preparados, o que espero que também signifique que não voltaremos a deixar abandonados os doentes não-covid”, diz Vítor Papão, diretor-geral da Gilead Sciences.

“É urgente a criação de uma estratégia nacional de abordagem às consequências a longo prazo da covid-19”, refere o consultor da DGS, dando como exemplo impactos pulmonares, cardiovasculares, neurológicos ou renais. Estes efeitos prolongados no tempo, mesmo após a recuperação da infeção, são conhecidos como síndrome pós-covid (ver P&R). “Ainda não é certo que as sequelas sejam permanentes, no entanto, pela morbilidade associada, esta síndrome tem levado à necessidade de seguimento específico”, detalha Marta Jonet. O esforço de combate, em particular no pico da crise, em janeiro, não deve ser descurado e deve, defendem, servir para reter lições que permitam tornar o sistema de saúde mais resiliente a ameaças futuras (Expresso, texto do jornalista Francisco de Almeida Fernandes)

Sem comentários: