sábado, junho 12, 2021

Portugueses mais disponíveis para líderes autoritários

 

Os portugueses rejeitam cada vez menos um líder autoritário que não responda perante o Parlamento ou o voto popular. Esse indicador tem vindo a descer desde 1999, ano em que metade considerava ‘mau’ ou ‘muito mau’ ser governado por um líder deste tipo. Em 2008 eram 41% os que avaliavam negativamente este perfil e no ano passado a percentagem era ainda mais baixa: 37%. O recuo na rejeição de formas não democráticas de governação também se verifica quando os portugueses equacionam cenários como a tomada de decisões por especialistas, que não são eleitos, e não por governantes (em 1999 eram 40%, agora são 28% os que avaliam negativamente esta possibilidade) ou um regime militar (em 2020 eram 66% os que rejeitavam este cenário face aos 75% de 1999).

De acordo com o estudo “Os valores dos portugueses”, conduzido pelos investigadores Alice Ramos e Pedro Magalhães, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, a maior disponibilidade dos portugueses para regimes autoritários, tecnocráticos ou militares coexiste, por outro lado, com uma avaliação crescentemente positiva da democracia. Quase nove em cada dez dos inquiridos afirmam que ‘ter um sistema político democrático’ é uma maneira boa ou mesmo muito boa de governar o país. A hipótese avançada pelos investigadores para este desencontro entre a adesão robusta à democracia e o recuo da rejeição de formas não democráticas de governação é existir uma definição imperfeita de democracia entre os inquiridos. O estudo da Fundação Calouste Gulbenkian é um retrato nacional feito a partir da quinta edição do European Values Study, realizada entre 2017 e 2020 num total de 34 países.

A tendência de retração na rejeição de formas não democráticas não é um exclusivo de Portugal, mas estamos agora mais próximos das democracias — e até de alguns regimes autoritários — do leste europeu. Do conjunto de países europeus estudados, Portugal surge na 10ª posição, depois da Macedónia, Azerbaijão ou Arménia e consentindo mais as autocracias do que, por exemplo, a Lituânia, a Bósnia-Herzegovina ou a Croácia. “Não somos a única democracia ocidental onde isto está a acontecer. O caso mais evidente e estudado em todo o mundo é o americano”, diz Pedro Magalhães ao Expresso. Nos EUA o fenómeno estará relacionado com “o aumento da polarização ideológica” e um número crescente de pessoas que “trocam a democracia pela defesa de posições muito extremas”. Mas o sistema político português é “muito diferente” do americano, sublinha o investigador, que não apresenta respostas definitivas para explicar o fenómeno.

SISTEMA PERDEU CAPACIDADE DE AUTOCORREÇÃO

Miguel Poiares Maduro, professor universitário e ex-ministro de Passos Coelho, partilha com o Expresso a sua leitura. “As pessoas ainda têm uma visão idealizada da democracia que preferem e acham que essa não é a democracia que estão a viver”, o que contribuirá para explicar o “paradoxo” da coexistência de posições muito positivas relativamente ao regime democrático com a progressiva menor rejeição de autocracias. “Há a ideia de que o que têm não é uma verdadeira democracia”, concretiza, acrescentando que os 63% de portugueses que consentiriam um líder forte sentem que “o sistema democrático perdeu a capacidade de se autocorrigir e está controlado por um conjunto de interesses, sejam estes as elites políticas ou financeiras”.

“Os sistemas políticos em geral estão bloqueados” e este problema “não é apenas português”, diz o antigo governante, para quem as pessoas continuam a participar politicamente mas já não o fazem através dos partidos porque estes “são vistos como parte da captura do regime”. A cultura política em Portugal é, ela própria e desde logo, “muito disponível para versões autoritárias do poder”, diagnostica ainda Poiares Maduro. E dá exemplos como a desvalorização das entidades independentes e a visão muito centralizada do poder pela generalidade dos líderes, que não lidam bem com a existência de poderes alternativos. Esta cultura política, insiste o ex-ministro, limita a qualidade e o pluralismo da própria democracia.

Ora, limitando-se o pluralismo da democracia e mostrando-se esta incapaz de corrigir o que está mal, a disponibilidade para líderes autocráticos torna-se mais atrativa porque estes, pelo menos, são percebidos como eficazes — veja-se o caso da China, exemplifica. Os dados do estudo revelam uma perceção de que as duas grandes vantagens da democracia relativamente a outros sistemas falharam: ser o único regime político que se autocorrige (“se as coisas não correm bem, podemos tirar quem está no poder e substituir por outro”) e a correlação forte entre democracia e desenvolvimento económico e social. No caso português, este segundo valor da democracia tem vindo a ser especialmente posto em causa porque, “na prática, houve uma estagnação da economia nos últimos 25 anos”, aponta o antigo ministro.

FASCÍNIO POR HOMENS PROVIDENCIAIS

Daniel Oliveira, colunista do Expresso, também defende que “a democracia é inviável sem um mínimo de progresso económico e sem níveis mínimos de igualdade”, pelo que o falhanço nestes dois vetores ajudará a explicar os resultados do estudo. “É interessante e perturbante ver como estamos como os países de leste. Não estamos no mundo ocidental”, sentencia. Mais: “Estamos a um nível de países que são democracia há menos 20 anos do que nós e que tiveram uma participação democrática a seguir à queda da ditadura muito inferior à nossa”. De resto, as pessoas associam a democracia à liberdade e não exatamente a uma forma de governo e aí, diz, “continuamos a ter um fascínio por homens providenciais”.

FICHA TÉCNICA

O trabalho de campo da ronda mais recente do EVS foi levado a cabo pela GfK-Metris e decorreu entre 11 de janeiro e 31 de março de 2020. De uma amostra inicial de 3032 lares, obtiveram-se 1215 entrevistas que representam uma taxa de resposta de 41% e um erro amostral de ± 2,8% para um intervalo de confiança de 95% (Expresso, texto do jornalista HÉLDER GOMES e infografia de JAIME FIGUEIREDO)

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