domingo, junho 26, 2022

Quem acabou com as parcerias público-privadas na saúde?


O primeiro-ministro, António Costa, disse esta semana que os privados não quiseram renovar os contratos das PPP hospitalares, ao que o presidente da APHP, Óscar Gaspar, respondeu: “A história não se reescreve”. Eis como começaram e acabaram as atribuladas PPP da saúde. Esta é uma viagem que nos leva até 1995. Ao contrário do que o líder parlamentar do PS, Eurico Brilhante Dias, disse, na quarta-feira passada, dia 22 de junho, na Assembleia da República, a direita lançou, sim, uma parceria público-privada (PPP). No último ano do governo de Cavaco Silva arrancou a experiência piloto de uma PPP na saúde no Hospital Professor Fernando Fonseca (conhecido por Amadora-Sinta). Em 1996 o hospital entrou em funcionamento e o Grupo Mello foi o pioneiro como parceiro do Estado. Portanto, a afirmação de que o PSD lançou “zero parcerias” não se verifica, mas constata-se, porém, que todas as PPP de saúde acabaram durante governos socialistas.

Em relação às afirmações do primeiro-ministro, António Costa – proferidas no mesmo dia no parlamento –, que colocou o ónus do fim das PPP do lado dos privados, o presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (APHP), Óscar Gaspar, é pragmático. “Não sou comentador político e não vou entrar em qualquer tipo de resposta político-partidária. Até porque a história não se reescreve, está escrita”, afirmou o responsável no final da Cimeira Ibérica de Hospitais Privados, que decorreu esta quinta-feira, dia 23 de junho, em Lisboa.

Sem se alongar sobre o assunto, Óscar Gaspar citou um despacho dos ministérios da Saúde e das Finanças, de 4 de agosto de 2017, sobre a PPP de Braga, onde era dito que devia ser aberto um novo concurso para adjudicar a gestão daquela unidade, já que o modelo PPP havia sido benéfico para o Estado.

“O fim das PPP foi um erro, um erro claro. Todos os estudos demonstram que as PPP foram positivas para o Estado: Tribunal de Contas, Administrações Regionais de Saúde (ARS), Universidade Católica, Ministério das Finanças, Entidade Reguladora da Saúde. Todos comprovam que as PPP cumpriram os contratos que foram assinados, ou seja, foram feitos dentro do prazo, sem quaisquer derrapagens, quatro hospitais novos. E a prestação de cuidados de saúde resultou numa poupança muito significativa na ordem das centenas de milhões de euros para o erário público”, refere o ex-secretário de Estado da Saúde de Ana Jorge, durante o segundo Governo de José Sócrates.

Na sua opinião, “os utentes entendiam que a PPP era uma boa resposta às suas necessidades. Não havia qualquer motivo para se terminar com as PPP na saúde”.

O documento a que Óscar Gaspar fez referência é o relatório intercalar de acompanhamento do Hospital de Braga que é referido pelo Governo como “exaustivo e rigoroso”, que “apresenta de modo fundamentado a metodologia de avaliação que aplica ao Hospital de Braga, avaliando o modelo de PPP, e aprecia o exercício da faculdade contratual de renovação do Contrato de Gestão”. Alude ainda à conclusão desse relatório intercalar de que “estão reunidas as condições para, no caso específico do Hospital de Braga, se recomendar a adoção de um modelo de PPP, em detrimento de um cenário de internalização, e que se verificam, inclusive, os requisitos necessários a uma decisão de renovação do Contrato de Gestão”.

Todavia, a ARS do Norte (entidade pública contratante em representação do Estado) identificou um conjunto de modificações desejáveis no futuro contrato de PPP, “que, no seu conjunto, recomendam o relançamento de um concurso público para estabelecimento de nova PPP para a gestão clínica daquele Hospital do SNS, modificações estas que foram consideradas necessárias, por despacho do Senhor Secretário de Estado da Saúde, datado de 2 de junho de 2017”.

“Foi lançado algum concurso? Não, nem em Braga [cuja PPP terminou em agosto de 2019], nem no Hospital de Loures [os privados saíram em janeiro deste ano]”, sinaliza Óscar Gaspar.

SEIS PPP LANÇADAS, APENAS A PARCERIA DO HOSPITAL DE CASCAIS PERMANECE

A primeira parceria a cair foi a do Hospital Amadora-Sintra, em 2008, por decisão do então primeiro-ministro, José Sócrates. O contrato de gestão clínica do hospital com a José de Mello Saúde (agora CUF) tinha várias falhas e a relação do privado com a tutela foi difícil, incluindo processos em tribunal por causa de divergências sobre pagamentos de despesas.

Em 1995, último ano do governo de Cavaco Silva, foi lançada a experiência piloto de uma PPP na saúde no Hospital Professor Fernando Fonseca e em 1996 o hospital entrou em funcionamento com o Grupo Mello como pioneiro na qualidade de parceiro do Estado no sector público dos cuidados de saúde.

Em 2008, o Governo estabelece que a gestão da unidade passa para o SNS a partir do ano seguinte, situação que permanece até hoje.

Entretanto, foram precisos vários anos e um governo socialista, liderado por António Guterres, com António Correia de Campos na saúde, para serem lançadas as novas PPP no início da década de 2000.

O Governo de Durão Barroso que, entretanto, toma posse, leva por diante a primeira vaga de unidades de saúde e é definida uma segunda vaga de unidades hospitalares, constituída pelos Hospitais de Évora, Vila Nova de Gaia, Póvoa de Varzim/Vila do Conde, Algarve e Guarda (hospitais de substituição). Luís Filipe Pereira, então ministro da Saúde, grande entusiasta das PPP na saúde, queria lançar os dez concursos na sua legislatura.

As únicas cinco PPP que viram a luz do dia foram o Centro de Medicina de Reabilitação do Sul e os hospitais de Braga, Cascais, Loures e de Vila Franca de Xira.

A segunda ‘vítima’ foi o Centro de Medicina de Reabilitação do Sul, que iniciou a atividade em abril de 2007 e foi gerido até 2013 em regime de PPP pela GPSaúde, então integrada no Grupo Galilei (a holding que ficou com os ativos da Sociedade Lusa de Negócios). O contrato de gestão acabou em novembro de 2013, o mesmo mês em que entrou em funções o primeiro Governo de António Costa. As negociações para a continuidade da PPP, que tinham sido iniciadas com o Executivo de Pedro Passos Coelho, acabaram por não ser retomadas e a unidade passou a ser gerida de forma ‘transitória’ por parte da ARS do Algarve, permanecendo a gestão pública até ao momento atual.

CAI O ACORDO EM BRAGA, A MAIOR PARCERIA DE TODAS

Em 2019 ocorreu a reversão para o Estado da gestão do Hospital de Braga e, em 2021, aconteceu o mesmo no Hospital de Vila Franca de Xira, ambas PPP celebradas com os Mello – não houve acordo entre o Ministério da Saúde (via administrações regionais de saúde) e o parceiro privado para prorrogação dos contratos.

A CUF não esteve disponível para continuar a ter prejuízos, em particular no Hospital de Braga, e o Estado alegou que aquilo que lhe era pedido pelos Mello para continuarem na gestão alterava o contrato inicial e que isso não é possível à luz do direito administrativo público.

Para se manter mais tempo no Hospital de Braga, a José de Mello Saúde pediu ao Estado a revisão do contrato, nomeadamente no que se refere às despesas com o HIV e esclerose múltipla que, a partir de 2016, deixaram de ser pagas pela ARS do Norte, mas o Estado não aceitou mudar as regras antes de ser lançado um novo concurso para a gestão clínica do Hospital de Braga, que, entretanto, nunca avançou.

A operação de Braga foi muito impactada por estes custos não assumidos pela administração pública e o diferendo foi decidido em tribunal arbitral, com o privado a ser ressarcido pelo Estado em 16 milhões de euros, relativos ao período entre 2016 e agosto de 2019.

Por sua vez, a parceria no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, terminou em janeiro passado, após dez anos de gestão da Luz Saúde (que venceu o concurso quando ainda era Espírito Santo Saúde e pertencia ao universo BES). Também a Luz Saúde teve desacordos com a tutela, nomeadamente em relação ao HIV, esclerose múltipla e despesas com a formação de internos. A pandemia teve um impacto muito significativo nas contas do hospital gerido pela participada do Grupo Fidelidade.

A Luz Saúde exige ao Estado, relativamente a 2020, 2021 e primeiros dias deste ano, entre 45 e 48 milhões de euros por prejuízos provocados pela covid-19 (a unidade foi uma das mais fustigadas com a doença). E também os grupos Lusíadas e CUF fizeram pedidos de reequilíbrio financeiro em relação a Cascais e Vila Franca de Xira, respetivamente.

A única PPP de saúde que persiste é a do Hospital de Cascais, gerido pela Lusíadas Saúde. Decorre um novo concurso público para adjudicação da gestão (apenas uma empresa espanhola está na ‘corrida’) e, por essa razão e porque estavam os restantes meios alocados à mudança em Loures, a ARS de Lisboa e Vale do Tejo voltou a pedir ao Grupo Lusíadas Saúde para ficar mais um ano na unidade.

O Grupo Lusíadas Saúde é detido pelo gigante norte-americano United Health e está em processo de venda que, apurou o Expresso, deverá estar concluído muito em breve.

O contrato de gestão do Hospital de Cascais foi assinado, em 2008, com a Hospitais Privados de Portugal (HPP), do Grupo CGD (a empresa foi vendida, em 2012, à brasileira Amil, que, nesse mesmo ano passa a ser do universo do colosso norte-americano United Health Group). É o primeiro contrato feito à luz das novas PPP da saúde. E também o primeiro a acabar, em finais de 2018. Altura em que o Governo de António Costa, com Adalberto Campos Fernandes na pasta da saúde, decide prorrogar a PPP. O máximo seriam três anos de prolongamento acordado com os Lusíadas, mas já vamos no quatro ano após o fim do contrato inicial por dez anos (Expresso, texto da jornalista Ana Sofia Santos)

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