terça-feira, junho 21, 2022

Grupos de interesse são “mal necessário” e instrumento de controlo “além do momento eleitoral”


O sector financeiro é o mais permeável aos grupos de interesse, as ordens profissionais estão a substituir os sindicatos e os governantes são “o alvo preferencial” dos interesses organizados – estas são algumas conclusões do estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos que alerta para “a captura dos legisladores por interesses privados. Os grupos de interesse são um ator político relevante e não é rejeitando ou desconsiderando que eles existem que a sua atuação fica reduzida. Esta é uma das ideias-chave de “Os Grupos de Interesse no Sistema Político Português”, o mais recente capítulo da coleção Estudos da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), sob a coordenação do professor e investigador Marco Lisi. O estudo propõe-se responder se os grupos de interesse representam um mal para a democracia ou, pelo contrário, se podem ser um instrumento benéfico. A questão fica, no entanto, em aberto, uma vez que “a ação dos grupos reflete, em grande medida, as divisões e os conflitos presentes na sociedade”.

Também uma posição ambivalente relativamente a estes grupos vai perdurando, daí o que se refere como “o paradoxo dos grupos de interesse”: por um lado, podem favorecer a participação e reduzir as desigualdades; por outro, podem ser instrumentos de desmobilização e de injustiça, como se lê no estudo coordenado pelo professor associado no Departamento de Estudos Políticos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e investigador no Instituto Português de Relações Internacionais.

Entre 1999 e 2020 registou-se um aumento expressivo de todas as formas de participação em Portugal, com exceção da participação em manifestações e atividades ilegais de protesto. A maior subida, na ordem dos 37%, diz respeito à assinatura de petições, a que não será alheio o facto de, desde 2005, o Parlamento ter em vigor um sistema de petições eletrónicas. Ainda assim, a pertença associativa portuguesa, qualquer que seja o tipo de associação, empalidece face à maioria dos outros países europeus. Além disso, o perfil de quem integra associações voluntárias não é representativo da população em geral: são “indivíduos com maiores recursos económicos e cognitivos, uma maior integração social e um maior interesse pela política”. E há uma “excecionalidade de Portugal”, onde, ao contrário da maioria dos países europeus e ocidentais, o grau de satisfação ou insatisfação não é “um preditor do envolvimento associativo” – ou seja, a um maior descontentamento com o status quo não corresponde um maior compromisso com associações potencialmente capazes de o alterar.

SECTOR FINANCEIRO, O MAIS PERMEÁVEL À INFLUÊNCIA DOS GRUPOS DE INTERESSE

Prevalece a opinião de que “as organizações de interesse servem sobretudo os seus próprios interesses, em detrimento do pluralismo de interesses e da representação de interesses na arena institucional de grupos ou assuntos que não têm possibilidade de acesso ao Parlamento”. Ainda assim, é nas associações ambientalistas e de solidariedade social que os inquiridos sentem que as suas posições estão mais bem representadas. As organizações de interesse, sobretudo as organizações religiosas ou ligadas à Igreja e os sindicatos, suscitam “pouca confiança” dos portugueses.

O estudo da FFMS apresenta uma grelha de análise para esta ocorrência: “as associações ambientalistas recorrem a estratégias de outsider lobbying, ou seja, preferem utilizar canais externos para influenciar tanto a atividade legislativa como a opinião pública, enquanto as organizações económicas usam tipicamente mais estratégias de inside lobbying, isto é, procuram aceder ao poder através de canais internos na arena institucional, tais como contactos com o Parlamento ou o Governo”.

São, de resto, o Parlamento e o Governo as instituições consideradas mais importantes para os cidadãos portugueses, que percecionam uma pouca influência por parte das associações de interesse ao nível europeu. O sector financeiro é o mais permeável à influência dos grupos de interesse, seguindo-se os sectores da saúde, do trabalho e emprego e das políticas sociais.

AS ORDENS PROFISSIONAIS COMO “CANAL DE REPRESENTAÇÃO ALTERNATIVO AO SINDICAL”

A partir da análise da presença de grupos de interesse nas páginas dos jornais “Público” e “Expresso” entre 1990 e 2019, conclui-se que em Portugal se seguiu a tendência dos sistemas corporativistas da Dinamarca ou dos Países Baixos, “onde os grupos de interesse «materiais» — patronais ou sindicais — perdem terreno para outras tipologias, como os grupos de causa”. Também em linha com o que aconteceu no Reino Unido, em Espanha e, mais uma vez, na Dinamarca, registou-se uma menor variedade no tipo de grupos mencionados em artigos relativos ao mundo do trabalho. Em contrapartida, a saúde, a justiça e a educação ganharam destaque. Há, todavia, um movimento diferenciado nos quatro países: a maior diversidade favoreceu principalmente os grupos de causa no Reino Unido e na Dinamarca e os grupos de identidade em Espanha, enquanto em Portugal foram as organizações profissionais que ganharam relevo.

A Ordem dos Advogados e a dos Médicos assumiram uma centralidade que ajudará a explicar esse maior relevo, ao mesmo tempo que um crescente número de ordens profissionais têm vindo a ser reconhecidas. O estudo antevê mesmo que “o associativismo profissional pode estar a constituir-se progressivamente como um canal de representação alternativo ao sindical, enfraquecendo este último”. Nos dois jornais notou-se, no período em análise, uma presença preponderante das organizações com assento na concertação social, “a par de uma institucionalmente incontornável ANMP [Associação Nacional de Municípios Portugueses]”.

No plano sindical, a maior atenção recai sobre organizações com uma maior base associativa e de potencial mobilização, como ocorre na educação, ou com posições-chave ao nível da separação de poderes, como na justiça. Mas, em linhas gerais, no “Expresso” detetou-se uma maior concentração de referências a sindicatos e associações empresariais, e no “Público” uma maior diversidade e cobertura de grupos profissionais, de causa e de identidade.

GOVERNANTES EM EXERCÍCIO, “O ALVO PREFERENCIAL” DA AÇÃO DOS INTERESSES ORGANIZADOS

Quando os grupos de interesse interagem com o sistema político-partidário, o que sobressai são as ligações dos partidos ao mundo sindical. Acresce que os grupos não se envolvem intensamente nas refregas eleitorais, apostando antes numa “posição pragmática” na relação com os partidos. Tal comportamento é descrito como “pouco surpreendente” num quadro de “alternância partidária no poder executivo” e “no quase contínuo ascendente deste sobre o poder legislativo”. Evidentemente, os grupos não ignoram que os contextos eleitorais são “particularmente propícios” à promoção dos seus interesses, mas abstêm-se de incrementar a sua presença mediática nestas situações de maior partidarização da vida política.

Os governantes que integram o Executivo são “o alvo preferencial” da ação dos interesses organizados, o que, mais uma vez, coloca Portugal ao nível dos seus pares na conclusão de que o foco principal dos grupos de interesse é o próprio Executivo e não a arena parlamentar. Mesmo assim, sobretudo os grupos mais profissionalizados e dotados de mais recursos “dificilmente podem desconsiderar” o Parlamento: “a Assembleia da República não é apenas um ator proeminente no processo legislativo, mas também para a função de legitimação”.

O RISCO DE “CAPTURA DOS LEGISLADORES POR INTERESSES PRIVADOS”. E A REGULAÇÃO DO LÓBI

Daí que os grupos participem “de forma sistemática” na atividade das comissões parlamentares para influenciar o processo legislativo, estando igualmente em contacto com deputados, grupos parlamentares e outros atores da mesma arena para “indiretamente” chegar ao Governo e/ou à opinião pública. Esta presença poderá significar custos para os atores parlamentares envolvidos. Primeiro, porque poderão advir “efeitos negativos em termos de tempo gasto no contacto direto ou indireto com os grupos”. Depois, porque a própria instituição parlamentar poderá sair lesada em termos de credibilidade e legitimidade, “sobretudo quando aparecem casos de evidente captura dos legisladores por parte de interesses privados”.

Para a situação anteriormente descrita concorrem problemas como o conflito de interesses, as sociedades de advogados – as suas implicações e benefícios associados – e a falta de transparência. Estas questões, remata o estudo da FFMS, têm sido uma base de discussão (e discórdia) nas propostas de lei relativas à regulação do lóbi. Ora, a imagem do lóbi poderoso como “o único fator responsável por uma política” encobre “uma realidade muito mais complexa” com vários atores, preferências diversas e variáveis intervenientes importantes que influenciam o resultado final.

Mais se conclui que, ainda que os grupos possam desviar o interesse público em detrimento de interesses específicos, este será um “mal necessário” que deve ser considerado um aspeto intrínseco a qualquer sistema baseado no pluralismo da sociedade e nos mecanismos próprios da democracia representativa. Até porque “é também através das organizações de interesse que a sociedade pode reforçar o controlo sobre os governantes e as instituições públicas, sobretudo além do momento eleitoral” (Expresso, texto do jornalista Hélder Gomes)

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