"A
fotógrafa Taslima Akhter revelou um abraço de um homem e de uma mulher
congelado pela derrocada do edifício Rana Plaza, no Bangladesh. A imagem ameaça
tornar-se um ícone da luta contra as condições de trabalho no sector têxtil
naquele país. Taslima Akhter não sabe quem são nem que tipo de relação
mantinham. Tentou “desesperadamente” encontrar respostas para muitas perguntas
que surgiram a jorros depois de horas e horas a fotografar corpos aprisionados
nos escombros do edifício Rana Plaza, Daca, Bangladesh. Tentou “alguma pista”
que fosse, mas nada. Para já, o homem e a mulher que se abraçam no momento
fatal do colapso de há duas semanas que causou mais de 800 mortos continuam
anónimos. E perseguem o pensamento da fotógrafa que captou esta imagem que
agora se afirma como uma das mais simbólicas da tragédia.
Os acidentes
ligados às condições precárias de trabalho e exploração humana não são novidade
para Taslima Akhter (Daca, 1974). Em Novembro do ano passado, fotografou um
incêndio numa fábrica de confecções que causou mais de 100 mortos, trabalho que
chamou a atenção do Lens, o blogue do jornal New York Times dedicado à
fotografia e ao jornalismo visual. Nessa altura, a fotojornalista declarava-se
“emocionada” e “esmagada” pelo que tinha acontecido, mas não se mostrou
surpreendida - antes desta tragédia já tinha fotografado outras quatro no
Bangladesh em tudo semelhantes. “A história é sempre a mesma”, dizia em
declarações ao Lens. E no dia 24 de Abril a história voltou a repetir-se, agora
com uma escala ainda mais dantesca.
Akhter, que
trabalha sobretudo em temas ligados à denúncia da exploração laboral,
fotografou intensamente o desenrolar dos acontecimentos logo depois da notícia
do colapso do edifício. Passou o dia entre destroços, equipas de resgate e
salvamento e olhares de famílias desesperadas que procuravam entes queridos.
Esses olhares marcaram-na, eram olhares “assustados”. Akhter fotografou,
fotografou, fotografou até ficar exausta física e psicologicamente. Ao início
da tarde (o complexo ruiu por volta das 9h locais), deparou com um casal
abraçado, rodeado de ferros retorcidos e semicoberto por destroços. A reacção da
fotógrafa foi de espanto. Sentiu depois proximidade, familiaridade. “Não queria
acreditar. Senti que os conhecia – senti-os muito próximos de mim. Vi quem eles
eram no último momento em que estiveram juntos e em que tentaram salvar-se”,
disse a fotógrafa num depoimento escrito que enviou ao LightBox, o espaço
online dedicado à fotografia da revista Time. Apesar desta ligação
imediata (e íntima) em relação àquela cena e àqueles dois seres humanos,
Taslima Akhter confessa “desconforto” de cada vez que olha para a sua
fotografia. Sente-se “estremecida" não tanto pelo momento extraordinário
que captou, mas sobretudo pelo seu poder inquisitivo e comovente: “É como se me
estivessem a dizer ‘Não somos números – não somos só mão-de-obra barata com
vidas baratas. Somos seres humanos como tu. A nossa vida é tão preciosa como a
tua e os nossos sonhos também são preciosos’”. Uma das ambições de Akhter, que
já foi bolseira da Magnum Foundation para estudar fotografia e direitos
humanos, é que esta imagem contribua para que os trabalhadores no sector têxtil
do Bangladesh “sejam tratados como seres humanos e não apenas como números”. E
que os responsáveis pelo que aconteceu sejam punidos com as penas máximas
previstas na lei. Contudo, aconteça o que acontecer aos que forem considerados
culpados, a fotógrafa confessa que “não haverá alívio” dos “sentimentos
horríveis” que lhe provocaram as últimas duas semanas em que esteve rodeada de
cadáveres. “Como testemunha desta crueldade, sinto que é urgente partilhar esta
dor com toda a gente. É por causa disto que esta imagem tem de vista”. Também
citado pelo LightBox, Shahidul Alam, escritor, fotógrafo e fundador da escola
de fotografia Pathshala (onde Taslima Akhter estudou fotojornalismo), afirmou
que esta imagem é ao mesmo tempo “altamente perturbante” e “assustadoramente
bela”. Para Alam, a ternura que emana deste abraço “eleva-se acima dos
destroços para nos tocar onde somos mais vulneráveis”. Ao dar-nos este momento
tão pessoal, esta fotografia “recusa passar despercebida”. “É o tipo de imagem
que nos atormentará os sonhos. Sem grande alarido, comunica. Nunca mais.”
A fotografia
como acto político
Para Akhter, o
exercício da fotografia é um acto político. Por isso está envolvida em
organizações de mulheres e de trabalhadores e utiliza as câmaras para denunciar
atropelos à dignidade e exploração humanas no seu país. O Bangladesh é o
segundo maior exportador de têxteis, depois da China, com mais três milhões de
trabalhadores no sector. Na quarta-feira, as autoridades anunciaram o encerramento, numa primeira
fase, de 18 fábricas têxteis por razões de segurança. O último
balanço da tragédia de 24 de Abril dá conta de 803 mortos e desconhece-se o
número exacto de pessoas que estavam no edifício quando as suas estruturas
cederam. No Rana Plaza, situado a cerca de 30 quilómetros da capital, os
trabalhadores já tinham denunciado a existência de fendas no edifício. No
interior estariam mais de cinco mil pessoas, mas esta é apenas uma estimativa.
Entre nove andares, funcionavam cinco fábricas, duas delas a trabalhar para
marcas de roupa como a britânica Primark e a espanhola Mango. Até agora, 12
pessoas foram detidas no âmbito da investigação à derrocada do prédio, entre
elas o proprietário, Mohammed Sohel Rana, que tentou a fuga para a Índia.
Depois de mais
um acidente de grandes dimensões, o Governo do Bangladesh anunciou um reforço
das medidas de segurança no trabalho e das regras de construção. Foi ainda
anunciada a criação de uma nova comissão para coordenar vistorias a perto de
4500 fábricas têxteis. A promessa de mais inspecções já tinha sido feita em
Novembro de 2012, depois de um incêndio numa fábrica ter causado 111 mortos.
Nos meses que se seguiram, esse trabalho revelou ter dado poucos resultados
quanto ao reforço das medidas de segurança.“A história é sempre a mesma” dizia
Taslima Akhter. E foi". (texto de Sérgio B Gomes, Público
com a devida vénia)