"A primeira
declaração é que conheço e sou amigo de Miguel Sousa Tavares, desde que ambos
éramos jovens jornalistas. O facto de ele ter reconhecido que se excedeu ao
chamar "palhaço" a Cavaco por se tratar do Chefe do Estado só lhe
fica bem. Como sei que diz a verdade, porque ele é assim, quando afirma que
foi atrás da pergunta.
Mas
o que me importa aqui não é tanto o facto. Não me parece ser passível de
punição o facto de alguém chamar palhaço a outrem, mesmo que outrem seja
Presidente. A sociedade portuguesa tem de saber distinguir entre o não se deve
fazer com medo de represálias e o que não se deve fazer por imperativo ético.
E eu penso que chamar "palhaço" ao Chefe do Estado deve repousar
neste segundo imperativo. Sobretudo para pessoas que têm bastante audiência no
espaço público.
"Palhaço",
chamado em sentido depreciativo, significa, segundo o dicionário, alguém que
não é levado a sério, bobo, pessoa que não merece consideração, pessoa que muda
constantemente de opinião. É por isso que chamar palhaço não é o mesmo que
chamar funâmbulo ou animador de pista ou outra qualquer profissão própria de um
circo. Embora o uso repetido de qualquer outra destas profissões, com um
sentido metafórico, ou seja diferente da literalidade, possa vir a resultar num
insulto. Imagine-se que se chamava sistematicamente ao político A
"equilibrista". Em breve a palavra teria o significado de um insulto.
Também
não valem argumentos, como já vi, segundo os quais cada um é livre de pensar o
que quiser do Chefe do Estado. A proteção do nome e da honra não visa
permitir que cada um diga o que pensa, mas justamente limitar a utilização de
palavras e de conceitos até ao admissível, de modo a não colocar em causa o
outro, ou o que o outro simboliza. A ideia não pode ser "eu acho que
fulano é isto ou aquilo", mas sim até onde é admissível que o outro admita
(aqui não entro em linha com acusações que se podem provar factualmente,
claro).
Ontem
mesmo, Alfredo Barroso criticava Sousa Tavares por ele ter afirmado que embora
não tenha consideração política por Cavaco Silva tem respeito pelo Chefe do
Estado. E interrogava se essa admiração em abstrato abrangia Américo Thomaz, o
último Presidente antes do 25 de Abril. É lamentável que um fundador do PS e
ex-chefe da Casa Civil de um PR confunda presidentes legitimamente eleitos em
regimes democráticos com pessoas não eleitas de regimes ilegítimos. É este
tipo de raciocínio em que os símbolos e os deveres dos cidadãos são
malbaratados por pessoas que se julgam donos do regime, ou morgados da pátria,
que vai destruindo o que resta da credibilidade do regime.
A
somar a isto há a radicalização que resulta da despersonalização das
relações. Já chegava parte da esquerda tornar monstruosos os seus
adversários (a direita faz o mesmo, mas em muito menor escala). Ou seja, os
adversários nunca são pessoas de bem, que têm uma ideia diferente, mas sempre
seres estranhos que pretendem espalhar o mal, como nas bandas desenhadas
infantis. É pena que o debate, muitas vezes, não passe deste nível. Mas a
somar a esta espécie de desumanização do adversário, a Internet veio
possibilitar que, por detrás do anonimato, se torne cada vez mais comum
insultar a eito.
O
resultado desta forma de estar só pode ser mau. Acho que ninguém de bom senso
tem dúvidas" (texto de Henrique Monteiro,
Expresso com a devida vénia)