Escreve
o Dinheiro Vivo: "A ideia pareceu-me peregrina e até rimava: e se, a caminho de Tallinn,
fizer escala em Templin, a pequena cidade de Brandenburg-Uckermark, onde a
hamburguesa Angela Merkel se fez mulher? O meu fascínio mórbido pela
chancelerina fez o resto. E foi assim que, hoje com algum eufórico
arrependimento, passei um dos fins de semana mais aborrecidos da minha vida. Para que conste:
localizada 85 quilómetros a norte de Berlim, literalmente no fim da linha
regional que liga à capital federal (RB 12), Templin é uma localidade de 17 mil
habitantes onde só uma meia dúzia falará inglês. Nem por acaso, uma das nativas
que encaixam nesse perfil é a própria mãe de Angela, Frau Herlind Kasner, de 84
anos, professora de Inglês e Latim.
Eles
andam aí
Quem
mo explica é Farrouk, paquistanês e dono do Venezia, o mais cêntrico
restaurante italiano da terra. “Lembro-me de Angela Merkel trazer aqui os pais
há uns dez anos, mais coisa menos coisa...” A conversa com Farrouk é arrancada
a ferros. Como se em Templin houvesse um pacto de silêncio sobre as matérias
directamente relacionadas com a chefe de governo. Outra possibilidade: Templin
não morre de amores pela sua chanceler. Na praça principal, a Marktplatz, a
escassos metros da Berliner Tor e da muralha medieval, pequenita mas intacta,
eis a sede concelhia do SPD. Da CDU, o partido de Angela, nem um único vestígio.
Mais: é sabido que a sua própria mãe, Herlind, foi ao longo da vida uma
apoiante confessa dos sociais-democratas. Quanto ao pai Horst, falecido em
Setembro de 2011, era um dos mais devotos pastores luteranos do Uckermark. Foi
ele quem, em 1957, convenceu a família a mudar-se para Templin, onde dirigiu o
seminário de Waldhof. A verdade é que também nunca morreu de amores pela CDU.
Aqui em Templin rapidamente ficou conhecido por “o Vermelho”. Idealista quanto
baste, conseguiu harmonizar a Igreja e o comunismo.
Lago,
doce lago
O
meu alojamento, esse, fica mesmo encostado ao famoso lago da localidade. O nome
antecipava-o, de resto: Stadtsee Pension Schade. É idílico quanto baste. Não há
biografia de Angela que não sublinhe a sua ligação umbilical ao plano de água.
Nestas margens dóceis apanhava cogumelos, mirtilos e dedicava-se a observar as
carpas que fintam o lodo e as algas. Foi também por aqui que fumou o primeiro
cigarro, aos 14, e deu o primeiro beijo, aos 16. A vítima é desconhecida. Contudo,
e apesar deste radioso domingo de Primavera, não vislumbro vivalma. Um pequeno
aviso na porta que dá para a recepção reencaminha-me para o restaurante do
lado. Uma família, acredito que clientes, e uma cozinheira, que me dá a chave
do quarto n.o 1. Caramba, que privilégio, ou será por estar deserto? Poiso a
trouxa e regresso ao coração de Templin. Hoje há quermesse na Marktplatz. Ou
melhor, uma dúzia de alcoólatras que se dividem entre uma cerveja em copo de
plástico e um wurst amostardado. Os altifalantes debitam um schlager de
qualidade duvidosa, o genuíno pimba teutónico, mas ninguém abana a anca.
Sintomático: estou aqui há uma boa meia hora e a carabina da barraquinha de
tiros permanece estática. Dá-me ideia que os ursos de pelúcia vão dormir
órfãos. Razão têm, pois, a chanceler e o seu segundo marido, Joachim Sauer,
para manterem aqui a sua dacha. Alvíssima e munida de uma horta onde Angela
planta batatas e framboesas. Calma é calma, e vice--versa, embora haja
surpresas: há três anos entrou-lhes um louco pelo batatal adentro. Duas vezes,
aliás, e sempre o mesmo. Afinal só queria entregar-lhes um bilhetinho em mão.
Resquícios
soviéticos
Claro
que me interrogo como foi possível Angela aguentar-se aqui dos 3 aos 19 anos,
quando rumou a Leipzig para cursar Física. Valha-nos a paisagem, que é
florestada quanto baste. Sobeja espaço. E hoje, 24 anos após a queda do Muro de
Berlim, os blocos soviéticos de Templin são residuais e um nadinha mais
disfarçados. Uma ou outra cor, varandas enfeitadas, alguma vegetação envolvente...
Outro resquício desses velhinhos tempos da RDA é a base aérea de Gross Dölln, a
escassos quilómetros. Obra da engenharia soviética, funcionou entre 1952 e o
fim do regime. Dizem os especialistas, era a mais moderna de toda a Europa.
Caças MiG e Yaks descolavam e aterravam e descolavam o dia inteiro. Nas horas
vagas, os militares divertiam--se a roubar bicicletas. Só a Angela surripiaram
três. Hoje, Gross Dölln tem menos de antro. É uma das pistas de testes favoritas
da indústria automóvel. À falta de curvas, o tédio cresce na Marktplatz. É
apenas entrecortado pela descoberta da tarde: o principal restaurante de
Templin é... um grego. Eureka! Acto contínuo, lá me ponho a caminho do Hellas -
“Grécia” no idioma helénico e para que não restem dúvidas -, onde sou recebido
pelos proprietários, uma família da ilha de Corfu. Fica mesmo atrás do hospital
e do lar da terceira idade.
Austeridade
helénica
No
Hellas, sim, noto algum calor humano. Mas curto ou, pelo menos, bastante aquém
das expectativas. Nada como a austeridade para pôr gente a falar. Disparo com a
perfídia possível: “Com que então um restaurante grego na terra de Angela
Merkel...” Pressinto pânico no esgar do empregado de mesa. “Politika, politika,
politika...”, responde-me Iannis, que se diria o mais velho dos três. Prossigo
na moussaka e no polvo, deliciosos, assim como o excelente retsina da casa. Os
relevos em gesso nas paredes, obra de um artista plástico grego radicado em
Brandenburg, gritarão bem mais alto do que os meus interlocutores: ver Zeus a
espezinhar um dragão com a língua de fora como que me tranquiliza. Sim, é
possível. São dez da noite e o Old Bailey, o pub irlandês de Templin, há sempre
um, também já encerrou. O caminho para a pensão tem um nadinha de
fantasmagórico, faço-o em piloto automático. Receio apenas ser o único hóspede
desta Stadtsee Pension Schade, sita no número 22 do interminável Prenzlauer
Allee. Não gosto, pronto. O cansaço, porém, prega-me uma partida. Apago. Ainda
bem. O frühstuck é servido a partir das 07h00 e a ligação a Berlim não é
directa. Dois comboios e um autocarro, mesmo que estejamos a falar de meros 85
quilómetros. A ferrovia está em obras. Lá me despacho e solicito o check-out.
Sem êxito: não aceitam cartões, nem de débito nem de crédito. Na Alemanha odeiam
pagar as comissõezinhas aos senhores da Visa, Mastercard ou American Express.
Cartões?
Nein Danke!
A
frau de serviço indica-me onde posso levantar dinheiro. Parece que há uma
sparkasse a uns 15 minutos a pé dali que tem um multibanco destes. Parece. Explico
que vou perder o comboio, mas ela encolhe os ombros. Tenho o meu momento de
sorte. Um casal berlinês está de partida - pelos vistos tive companhia durante
a noite - e dá-me uma boleia até à dependência bancária. Agradeço, danke sehr,
dois apertos de mão, eles vão passar o dia às termas, hoje o principal chamariz
desta apodada “Pérola do Uckermark”, e noto uma bandeira turca no tecto do
habitáculo do Volkswagen Lupo. Bem me tinha parecido que aquele calorzinho
tinha algo de anatólio. Iniciar-se-ia assim a saga do plástico. Na primeira
sparkasse dizem-me que não, cartões como os meus só no Volksbank, precisamente
na supracitada Marktplatz. Vinte minutos de caminhada e, com a máxima
diplomacia, pergunto novamente onde poderei extorquir dinheiro vivo duma máquina.
É que aquela ali à porta também mo havia negado. “Aqui na cidade os multibancos
apenas aceitam os cartões alemães. Girocard. Se quiser levantar com os seus há
uma bomba de gasolina a dois quilómetros e meio daqui...”, adianta-me o caixa
do Volksbank de Templin. Credo: dois quilómetros e meio? Numa gasolineira? Não
estou motorizado e fazer cinco quilómetros para levantar 50 euros é inglório.
Regresso à residencial, outros vinte minutos, e preparadíssimo para uma valente
peixeirada. Como se o aborrecimento não bastasse, ou a improbabilidade da
comunicação, ou a reduzida densidade populacional, privavam-me de honrar o
compromisso legal de pagar 42 euros. Uma pernoita com frühstuck. Rogo cobras e
lagartos à Merkel, afinal o apelido do seu primeiro marido, ela era Kasner,
corruptela do eslavo Kazmierczak, o avó Ludwik era polaco de Poznan, e vejo-me
enleado no labirinto da minha desbragada curiosidade. “Mas quem é que me mandou
vir enfiar-me nesta terrinha?”, comento mentalmente. Estou por tudo.
Uma
promessazinha
No
entanto, eis que se dá o anticlímax da viagem. A provecta gerente do Stadtsee
Pension Schade, com o cabelo curto à Angela, a marca da terra e outra herança
do socialismo de rosto teutónico, esboça um desarmante sorriso. Empunha a minha
reserva online, ou a sua cópia, e acrescentará num alemão que me vejo obrigado
a compreender: “Deixe estar. Esta aqui é a sua morada em Eestland, certo? Não
se preocupe que nós enviamos-lhe a factura para casa...”. Só espero que não
venha com juros de mora. A verdade é que já se passaram três semanas e na caixa
de correio de Viljandi não aterrou. Fiz inclusive uma promessa às meninas: se
nada entretanto me chegar e em Setembro a Angela perder as eleições, talvez
passemos por Templin só para eu saldar a dívida. Faço questão. E desta vez levaremos
fato de banho e tudo" (texto do escritor,
jornalista e blogger, João Lopes Marques, que vive em Tallin, na Estónia,
Dinheiro Vivo, com a devida vénia)