Depois da transmutação de Gaspar esta semana em
Bruxelas (onde invocou os direitos sociais quando o governo se prepara para
rebentar com o que resta deles), o novo ministro Miguel Maduro fez ontem um
discurso em Florença em ruptura total com o servilismo até aqui revelado pelos
primeiros-ministros Passos e Gaspar no que à relação com a Europa diz
respeito.
Maduro coloca as questões onde elas deveriam ter
sido colocadas há muito – a incapacidade de autogoverno dos países europeus
sujeitos a uma tutela não legitimada democraticamente; o falhanço da ideia de
“contrato social” em que se fundou a Europa e até a defesa dos eurobonds,
embora não pronuncie a palavra banida pelo governo para satisfação da senhora
Merkel & amigos. A frase é comprida, mas deve ser citada na íntegra: “A
União Europeia tem de proporcionar algum grau de seguro partilhado
relativamente aos riscos sistémicos decorrentes de uma união monetária e
económica e garantir uma distribuição justa dos custos e benefícios que
naturalmente emergem num tal contexto.” E também “num contexto de crise como o
actual, o processo de ajustamento económico e financeiro, que é necessário,
deve envolver toda a Europa e os seus custos não podem concentrar-se em excesso
em certos estados, sob pena de se tornar social e politicamente insustentável”.
Parece que foi preciso muito penar para que alguma clarividência sobre política
europeia tenha chegado ao governo. A defesa da democratização da união – com os
povos europeus a eleger o presidente da Comissão Europeia, por exemplo – é
outra proposta de Maduro. Parece consensual: não vivemos numa democracia, somos
governados, na prática, por pessoas que não elegemos. Maduro acha essencial
“legitimar os poderes mais fortes que a União Europeia tem adquirido” e
“um contrato social mais alargado que garanta uma distribuição mais justa dos
custos e benefícios da integração”.
A questão é que o governo acordou para a crise
europeia quando a situação já está “social e politicamente insustentável”. Já
não há muito tempo para uma evolução dentro da continuidade. Maduro acaba o
discurso invocando a “Divina Comédia”: “Toda a forma política democrática tem
de saber conjugar elementos de razão e de paixão. A união tem de encontrar esse
equilíbrio sob pena de a sua razão entrar num conflito irresolúvel com as
paixões nacionais.” Infelizmente, esse conflito é o que temos e as perspectivas
de inversão são nulas" (texto de Ana Sá Lopes,
Jornal I com a devida vénia)