"O general Garcia
dos Santos (oficial do 25 de Abril e do 25 de Novembro; chefe da casa militar
do Presidente Ramalho Eanes) relata aqui as reuniões entre Ramalho Eanes e os
partidos (1976-1979). No prefácio, Joaquim Aguiar afirma que estes relatos têm
o dom olímpico da neutralidade e o odor da inocência. Com o devido respeito,
não compro a tese. Ninguém é neutro, ninguém é politicamente virgem, essa maçã
é sempre comida até ao talinho. Sim, é verdade que Garcia dos Santos apresenta
um relato sequíssimo, quase em modo excel, de factos e declarações. Também é
verdade que ninguém pode fugir a esta lista de dados concretos. Porém, qualquer
encadeamento de factos já tem em si mesmo uma visão pessoal. Não existe
neutralidade olímpica, existe apenas honestidade intelectual. Neste sentido, Apontamentos
Políticos - Eanes e os Partidos é um contributo honesto para a compreensão
dos primeiros anos deste regime.
E
apetece dizer que os anos fundadores não foram muito diferentes do tempo que
estamos a viver, o tempo que está a mostrar a falência de uma maneira de fazer
política. Ou seja, a semente do diabo que estamos a sentir em 2013 já estava
plantada em 1976-1979. Que semente é essa? A prevalência absoluta do cálculo
táctico. Ao longo destes quatro anos de reuniões, há uma coisa que salta à
vista: ninguém estava muito interessado em discutir os problemas do país; o
permanente jogo palaciano entre os partidos abria um abismo entre o sistema
partidário e a realidade financeira, económica e social de Portugal. É como se
a nação concreta fosse uma questão secundária para os partidos. Perante este
divórcio quase cómico entre partidos e realidade, confesso que apanhei uma
espécie de susto retroactivo: o país andava ao deus dará, em roda livre, porque
ninguém queria assumir o ónus das escolhas governativas que poderiam evitar o
colapso. As raras conversas sobre a governação concreta eram rapidamente
remetidas para slogans vagos. Cunhal não era o único a usar a cassete.
Estes
primeiros anos criaram assim o absurdo paradoxo que marcou até hoje a vida da
III República: aqueles que deviam ser os primeiros a percepcionar os problemas
concretos são, na verdade, os primeiros a recusar ver esses problemas. Em
consequência, a entrada do FMI em 1977 (e depois em 1983) foi apenas a
conclusão óbvia deste estado de coisas. O país tornou-se ingovernável, porque a
governação não era o business dos partidos. O seu business era a
sobrevivência eleitoral, a conquista da posição-charneira dentro do sistema
partidário (não se percebe o PS sem esta ideia em mente ) e a
captura do aparelho de estado. E, importa frisar este terceiro factor, porque
os partidos precisavam do estado para sobreviver. Porquê? Num livro fundamental, Carlos Jalali explicou que, ao
contrário dos seus congéneres europeus, os partidos portugueses tinham uma
reduzida base social, não eram emanações da sociedade civil . O seu
poder advinha da infiltração e duplicação das estruturas do estado. Para mal
dos nossos pecados, os partidos aprofundaram este adn ao longo das décadas
seguintes. Com prazer e proveito, os aparelhos partidários aprenderam a
responder apenas às ansiedades do estado, afinaram os ouvidos para ouvir
somente a frequência emitida pela despesa, a sua mãe" (texto
de Henrique Raposo, Expresso com a devida vénia)