"O discurso que se tornou corrente
no período entre o fim da guerra de 1939-1945, e a crise mundial em que a
comunidade mundial se encontra, deu origem à teoria do Estado espetáculo, uma
expressão que perdeu uso à medida que a euforia desfalecia acompanhando a
quebra de confiança na governação, no contrato social, e no futuro.
Num dos contos de Gabriel García
Márquez, sobre "O afogado mais bonito do mundo", encontra-se o modelo
desaparecido dessa eloquência, quando na miserável aldeia de Esteban desembarca
um comandante inesperado e desconhecido, e "disse ao povo em catorze
idiomas, olhem para ele, onde o vento é agora tão manso que fica a dormir
debaixo das camas, ali, onde o sol brilha tanto que os girassóis não sabem para
onde girar..."
Traduzido para europeu, a versão parece
ter sido reduzida a um breve conceito que espera ver os girassóis naquele
embaraço pelo método, apontado como apoiado em alicerces científicos, da
destruição construtiva. A primeira parte tem sido conseguida com desenvoltura,
mas as gerações vivas parecem cada vez menos esperançosas de que, ao menos as
gerações futuras, vejam nascer os girassóis enlouquecidos pela luz.
A Europa, por enquanto, anda
pretensiosamente dividida entre ricos do Norte e pobres do Sul, agravando o
desastre apoiada em duas hesitações: a de romper a submissão aos indícios de
diretório com péssima crónica secular e exigir um regresso aos fundamentos
estruturais da União, usando o poder da voz dos muitos atingidos pela pobreza
contra a voz do poder dos que necessitam de ser chamados à realidade; e a da
timidez dos fracos, omitindo enfrentar e procurar soluções viáveis e aceitáveis
para gerir a ganância globalista que, no passado, conseguiu dos povos do
terceiro mundo que pagassem em juros mais do que o capital recebido.
É o Conselho Económico e Social da ONU
que pode ver-se na situação de fazer recomendações ao Conselho de Segurança.
Estas considerações não se filiam necessariamente na angústia que vai
crescendo, tomam antes em conta que já no século passado a ONU, que agora
parece evoluir para templo de orações a um Deus desconhecido, foi advertida
para a necessidade de prestar a devida atenção a duas perigosas ameaças para a
paz, que eram a disseminação das armas de destruição maciça e a miséria.
Não é necessário um grande esforço para
reconhecer que as primeiras tiveram uma disseminação que alerta todos os
governos responsáveis e que a segunda mostra um dinamismo que, pelo que toca
aos europeus, já ultrapassou o Mediterrâneo, por enquanto hesitante em saltar
para lá do limes do império romano. Os que, na década de sessenta do século
passado, alertaram a ONU sabiam, por experiência vivida, que a quebra da paz
pode ter início por acidentes banais: a guerra de 1914-1918 começou com o
assassínio de um príncipe, a de 1939-1945 porque subiu ao poder germânico, pela
via democrática, um desequilibrado de pouca estatura e cabelos pretos,
fascinado pelos loiros e ruivos do Norte.
Porque os poderes políticos, como já foi
assinalado, dão mostras, em número crescente, de serem ultrapassados pelos
factos, a sociedade civil agredida movimenta-se independente das formações
partidárias, em busca de uma nova versão do contrato social, porque é
angustiante a necessidade da sobrevivência com dignidade, mesmo reduzida esta à
ambição modesta de ter trabalho e pão na mesa.
Não parece que a atenção dos
responsáveis europeus, sobretudo dos que se consideram abonados de recursos, de
saber certificado e de ambição de poder, tenha sempre na memória os factos de
relevância improvável que frequentemente quebraram a paz.
Há poucos dias, um português modesto
dirigiu-se ao provedor de Justiça, segundo notícias publicadas, invocando o
direito constitucional de resistência, para escolher entre pagar impostos ou
alimentar os filhos. É de esperar que a petição, se existe, esteja a ser
meditada." (texto de Adriano Moreira, DN deLisboa com a devida vénia)