O chanceler alemão denunciou publicamente a
insustentabilidade do Estado social nos moldes atuais. O objetivo passará por
cortar despesa sem aumentar impostos, mas os parceiros de coligação exigem
‘soluções criativas’.
Há cerca de um século e meio, o icónico chanceler
alemão Otto von Bismarck plantava a semente daquilo a que hoje conhecemos como
Estado social ou Estado-providência moderno. «[A verdadeira questão] é se o
Estado – e por Estado refiro-me sempre ao império – […] tem o direito de
abandonar ao acaso o cumprimento de uma responsabilidade do Estado,
nomeadamente, proteger o trabalhador contra acidentes e necessidades quando ele
se lesiona ou envelhece», dizia o ‘Chanceler de Ferro’ ao Reichstag quando se
discutia a lei de indemnização por acidente de trabalho em 1884. «No entanto,
assim que o Estado se preocupa com estas questões – e acredito que é dever do
Estado preocupar-se», continuava, «deve procurar a forma menos dispendiosa e
não tirar proveito disso e, acima de tudo, não perder de vista o benefício para
os pobres e necessitados». Três anos antes, o kaiser Guilherme I, influenciado
por Bismarck, enviara uma carta ao Parlamento onde notava que «aqueles que
estão incapacitados para o trabalho devido à idade e invalidez têm um direito
bem fundamentado a receber cuidados do Estado».
Após estas iniciativas e várias contendas parlamentares, foi estabelecido aquele que vários historiadores consideram o primeiro Estado social da era moderna. Como pode ler-se no arquivo da Segurança Social dos Estados Unidos, a «Alemanha tornou-se o primeiro país do mundo a adotar um programa de segurança social para idosos em 1889». Laurence Reed escreveu que se alguém é o pai das versões modernas do Estado social, «[e]sse homem é Otto von Bismarck».
Hoje, 136 anos depois, é também um chanceler alemão que volta a colocar decisivamente a questão do Estado social em cima da mesa. Não para o expandir, mas para lhe desferir um duro golpe. «O Estado social que temos hoje não pode mais ser financiado com o que produzimos na economia», foram as palavras de Friedrich Merz num comício da CDU em Osnabrück, uma cidade no noroeste da Alemanha. O debate sobre a insustentabilidade deste modelo que assenta sobretudo no princípio da redistribuição não é novo. Mas é a primeira vez que um líder europeu declara a sua falência de forma perentória.
A estagnação e a despesa
A Alemanha é o grande motor económico da Europa.
Mas os indicadores dos últimos anos não são animadores. Desde 2021, ano de
recuperação após o início da pandemia, que a taxa de crescimento do PIB alemão
tem vindo a decrescer. De 3,7% em 2021 para 1,4% em 2022 até chegar à contração
em 2023 (-0,3%), de acordo com os dados do Banco Mundial. Em 2024, a taxa de
crescimento do PIB ficou-se pelos -0,2%. A recessão era praticamente inevitável
e acabou por ser confirmada no segundo trimestre de 2025, quando o PIB caiu
mais 0,3%. Ao mesmo tempo, a despesa do governo em percentagem do PIB tem
registado um crescimento mais ou menos constante: de acordo com previsões da
Statista, chegará aos 52,05% em 2030. Também a dívida pública apresenta uma
trajetória ascendente, podendo chegar, ainda de acordo com as previsões da
Statista, aos 74,85% do PIB em 2030. O desemprego também vindo a crescer,
situando-se agora nos 6,3%. E o crescimento da despesa em benefícios sociais
básicos chegou aos 46,9 mil milhões de euros em 2024, um aumento de 4 mil
milhões de euros em relação ao ano anterior, reportou a agência de notícias
alemã Deutsche Welle (DW).
A Alemanha, tal como a generalidade dos países da Europa ocidental, depara-se com um problema de envelhecimento populacional. E é aqui que o problema da insustentabilidade se cristaliza. De acordo com a AARP International, que utiliza dados da UN Population Division, a «população alemã com 65 anos ou mais deverá crescer 41%, atingindo 24 milhões até 2050, o que representa quase um terço da população total. Ao mesmo tempo, a população entre 15 e 64 anos diminuirá 23%, passando de cerca de 53 milhões em 2015 para cerca de 41 milhões em 2050». Analisando todos estes dados, as declarações de Merz são mais fáceis de compreender. O que não implica que sejam facilmente aceites, especialmente pelo SPD – o Partido Social Democrata que sustenta a governação dos democratas-cristãos da CDU.
Os custos políticos
O SPD, que sofreu uma pesada derrota nas eleições
legislativas de fevereiro, já se havia comprometido a colaborar numa reforma do
sistema. Mas independentemente da vontade política de trabalhar em conjunto
numa reforma, é no caráter desta última que reside a diferença fundamental
entre os dois partidos tradicionais da democracia alemã. Enquanto Merz quer
cortar despesas sem aumentar impostos, o SPD salientou, segundo a DW, «a
necessidade de soluções criativas, em vez de apenas cortes para os trabalhadores»
e não descartou «a possibilidade de aumentos de impostos para os rendimentos
médios e elevados». «Continuaremos a ser um país que ajuda as pessoas que
passam por dificuldades, que adoeceram e precisam de ajuda», garantiu o
vice-chanceler social-democrata Lars Klingbeil ao Funke. Mas, para o chanceler,
o aumento nas tributações, principalmente a empresas, parece fora de questão:
«Não haverá qualquer aumento do imposto sobre o rendimento das empresas de
média dimensão na Alemanha com este governo federal sob a minha liderança».
Assim, Merz não deverá conseguir executar a
reforma que planeia na sua totalidade e o problema poderá continuar a
arrastar-se e os custos políticos podem assumir várias formas, sendo que a
pior, para o chanceler e para a CDU, seria o desmembramento da coligação entre
CDU e SPD e uma eventual vitória dos nacional-populistas da AfD nas próximas
eleições – algo que as mais recentes sondagens mostram ser possível. A taxa de
aprovação do chanceler caiu de 43% em junho para 29% em agosto e, de acordo com
uma sondagem recente da Forsa, a CDU (24%) foi ultrapassada nas intenções de
voto pela AfD (26%). O declínio do SPD continua, conseguindo apenas 13% das
intenções – o mesmo que os verdes e apenas mais 2% que o Linke, partido da
esquerda radical. Por tudo isto, o panorama económico, financeiro e político da
Alemanha é preocupante e os partidos doc entro terão uma árdua tarefa nos
próximos tempos.
Um problema generalizado
Mas o problema da insustentabilidade do Estado
social, dos impasses políticos e do crescimento de partidos que se
autointitulam antissistema não é exclusivo à Alemanha. As duas outras grandes
potências europeias, a França e o Reino Unido, navegam por águas igualmente
turvas.
Em França, o desequilíbrio fiscal foi identificado
pelo primeiro-ministro François Bayrou como um «perigo mortal», acrescentando
que o país está na «última paragem antes do precipício», antes de ser «esmagado
pela dívida». Estão previstos cortes na função pública, uma «contribuição de
solidariedade» imposta aos mais ricos e o congelamento das pensões públicas.
Também o corte de dois feriados está em cima da mesa. Bayrou vai submeter-se a
uma moção de confiança no Assembleia que está destinada a fracassar. E se na
Alemanha a AfD já está em primeiro nas sondagens, o Rassemblement National em
França já venceu umas eleições europeias e continua a liderar as sondagens com
uma margem confortável.
No Reino Unido, a situação é semelhante ou ainda pior. O Telegraph View, uma secção do jornal britânico The Telegraph, resumiu a questão: «[P]ode argumentar-se que a Grã-Bretanha está numa posição ainda pior do que qualquer economia ocidental, incluindo a Itália, onde, apesar da elevada dívida, foram implementadas medidas para reduzir os gastos. Aqui, uma tentativa pouco convincente do governo de reduzir os gastos com assistência social foi bloqueada pela ameaça de uma rebelião dos deputados trabalhistas, e os ministros parecem não ter ideia do que fazer a seguir, além de aumentar os impostos e piorar a situação». «O Tesouro emprestou 20,7 mil milhões de libras em junho, dos quais 16,4 mil milhões foram apenas para pagar os juros da dívida anterior», pode ainda ler-se no artigo que acaba com uma frase forte: «Como disse o chanceler Merz: isto simplesmente não pode continuar» (Sol, texto do jornalista Gonçalo Nabeiro)
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