Entendida como o drama de uma geração, a habitação em Portugal é, na verdade, uma crise em toda a linha, percecionada por toda a gente. E cujo principal fator é a falta de habitação pública, a que se junta a falta de regulação do mercado, a falta de oferta privada e o fenómeno do alojamento local. Tanto à esquerda como à direita, os partidos falham em colocar a habitação como ponto central da discussão política. E, no meio da crise política, o primeiro-ministro entendeu elevar a pasta a ministério. Na sondagem feita pelo ICS/ISCTE para o Expresso e para a SIC, os portugueses pedem respostas tanto do lado do património do Estado quanto pela via da propriedade privada. E convidam o poder político a agir. O ano é de escalada inflacionista e de aumento generalizado dos preços, refletidos na sondagem, que mostra um aumento de 9 pontos percentuais da proporção de inquiridos, que diz que a situação económica no país “piorou” ou “piorou muito”. O termo de comparação é setembro de 2022, data do último inquérito, em que havia 67% de respostas nesse sentido (agora há 76%). É um valor expressivo, que só tem paralelo com as sondagens sobre a situação económica do país no primeiro ano de pandemia de covid-19. E que só não é mais expressivo do que a perceção da crise habitacional.
A esmagadora maioria dos inquiridos (90%) “concorda totalmente” ou
“concorda” que há uma crise de habitação em Portugal. Apenas 4% recusam essa
ideia. Divididos os inquiridos em subgrupos sociopolíticos, o resultado é o
mesmo: 91% das mulheres, 90% dos homens; acima dos 90% nas faixas etárias mais
baixas e médias, 87% nos maiores de 65 anos; valores a bater nos 90% também
para os diferentes níveis de instrução; e, nas simpatias partidárias, o valor
desce ligeiramente entre os simpatizantes do PS, mas forma, ainda assim, uma
maioria expressiva (88%) dos que acham que se vive uma crise para ter casa.
Mais do que diferenças, o que a sondagem mostra é que, pelo menos aqui,
formou-se em Portugal um consenso.
FENÓMENO POR EXPLICAR
Identificada a crise, falta saber as causas e como as resolver. E,
também aí, o que a sondagem mostra é mais semelhança do que diferença. A
reabilitação de casas em mau estado, o investimento público em habitação, a
redução de impostos sobre o arrendamento, os limites ao valor das rendas, a
imposição de casas a preços acessíveis em novas construções e as cooperativas
de habitação, por esta ordem, são todas citadas por mais de quatro em cada
cinco inquiridos.
“O que as pessoas estão a dizer é o que está na Lei de Bases da
Habitação”, comenta Helena Roseta, ex-deputada, ex-vereadora da Habitação em
Lisboa e “mãe” da referida lei, aprovada na Assembleia da República em 2019.
Com os direitos agora consagrados, falta passar à ação, travada pela pandemia,
onde “o esforço foi adiar prazos [de pagamentos] e evitar despejos”. O primeiro
passo vai ser dado no Parlamento, quando for aprovado o Plano Nacional de
Habitação, documento-chave para usar o que Roseta chama a “mala de ferramentas”
da habitação.
Arquiteta, Roseta divide a “mala” em quatro, assim cobrindo grande parte
dos problemas e das soluções identificadas na sondagem ICS/ISCTE. Usar a política
fiscal para incentivar ou penalizar determinadas ações, subsidiar soluções de
habitação, seja com os municípios a cobrir parte das rendas, seja com a
cedência de terrenos a cooperativas, por exemplo, e regular os preços do
mercado.
Por fim, das quatro ferramentas, porventura a mais importante: investir
em habitação pública, como responde a larguíssima maioria dos inquiridos da
sondagem (89%). A altura é propícia, e Portugal tem para isso dinheiro como
nunca teve, mais de €2 mil milhões só do PRR, boa parte a fundo perdido. O
sinal a António Costa, com a equipa ministerial agora reformulada, está dado.
A oportunidade de chegar à meta de 5% de habitação pública no país
(atualmente em 2%) não deve, no entanto, fazer esquecer uma “indignidade”
apontada por Helena Roseta. “Há 723 mil fogos vazios no país, é um número
chocante.”
Ao contrário do que foi norma durante muito tempo, há hoje em Portugal
mais casas do que famílias. “Não sabemos porque é que tantas casas estão
vazias”, insiste Roseta. “Tanto podem estar numa aldeia que ninguém quer como
no centro da cidade na mão de um fundo imobiliário.” É um fenómeno por
explicar, agora nas mãos de Marina Gonçalves, que tomou posse na quarta-feira
como ministra da Habitação, pasta que já tinha como secretária de Estado.
SOLUÇÃO INÉDITA
A sondagem foi feita entre os dias 3 e 15 de dezembro, bem antes das mexidas no Governo que levaram à criação de um ministério autónomo para a habitação. É a primeira vez que tal acontece desde a revolução de Abril de 1974. Aliás, em quase 50 anos, a norma foi a de nem incluir o termo habitação nas designações dos ministérios com a pasta. Até à era António Costa, o termo apareceu apenas 11 vezes, e associado a outros, tal como até aqui havia feito o atual primeiro-ministro, com a designação Ministério das Infraestruturas e Habitação. Marina Gonçalves será então a primeira. Um sinal político de que algo está para mudar?
Segundo os inquiridos, há muito por fazer politicamente. Às perguntas
sobre se a esquerda e a direita têm dado a devida atenção ao tema da habitação,
as respostas não variam muito. Menos de um quarto dos inquiridos acha que a
direita faz esse trabalho (“concorda” ou “concorda totalmente”), um valor muito
semelhante para os partidos da esquerda. Do lado oposto estão os 39% de
portugueses que acham que os partidos de direita não prestam atenção ao
problema da habitação e os 35% que respondem o mesmo sobre a esquerda.
Nesta categoria de perguntas, as diferenças só se notam na defesa dos
respetivos partidos e espectros ideológicos. Ou seja, as pessoas de esquerda e
os simpatizantes do PS respondem mais vezes que a esquerda presta atenção ao
problema, como acontece à direita com os simpatizantes do PSD. Mas em nenhum
caso há uma maioria de inquiridos a responder que os partidos fazem o
suficiente sobre o tema.
Grosso modo, o que o inquérito indica é que há mesmo uma perceção de
desinteresse do poder político. Um buraco entre os partidos e o tamanho da
crise identificada pelos portugueses.
FICHA TÉCNICA
Sondagem cujo trabalho de campo decorreu entre 3 e 15 de dezembro de 2022. A sondagem foi coordenada por uma equipa do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS — ULisboa) e do ISCTE — Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE — IUL), tendo o trabalho de campo sido realizado pela GfK Metris. O universo da sondagem é constituído pelos indivíduos, de ambos os sexos, com idade igual ou superior a 18 anos e capacidade eleitoral ativa, residentes em Portugal Continental. Os respondentes foram selecionados através do método de quotas, com base numa matriz que cruza as variáveis Sexo, Idade (4 grupos), Instrução (3 grupos), Região (5 Regiões NUTII) e Habitat/Dimensão dos agregados populacionais (5 grupos). A partir de uma matriz inicial de Região e Habitat, foram selecionados aleatoriamente 83 pontos de amostragem onde foram realizadas as entrevistas, de acordo com as quotas acima referidas. A informação foi recolhida através de entrevista direta e pessoal na residência dos inquiridos, em sistema CAPI, e a intenção de voto em eleições legislativas recolhida recorrendo a simulação de voto em urna. Foram contactados 3010 lares elegíveis (com membros do agregado pertencentes ao universo) e obtidas 809 entrevistas válidas (taxa de resposta de 27%, taxa de cooperação de 39%). O trabalho de campo foi realizado por 42 entrevistadores, que receberam formação adequada às especificidades do estudo. Todos os resultados foram sujeitos a ponderação por pós-estratificação de acordo com a frequência de prática religiosa e a pertença a sindicatos ou associações profissionais dos cidadãos portugueses com 18 ou mais anos residentes no Continente, a partir dos dados da vaga mais recente do European Social Survey (Ronda 10). A margem de erro máxima associada a uma amostra aleatória simples de 809 inquiridos é de +/- 3,5%, com um nível de confiança de 95%. Todas as percentagens são arredondadas à unidade, podendo a sua soma ser diferente de 100% (Expresso, texto do jornalista JOÃO DIOGO CORREIA e infografia de SOFIA MIGUEL ROSA)
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