A Colecção Berardo vai entrar na sua terceira vida, quando o museu inaugurado há 15 anos em Lisboa mudar de nome este domingo, conforme previsto, devido ao fim do protocolo com o Estado que fará regressar o Centro de Exposições, o chamado “módulo 3”, à gestão do Centro Cultural de Belém (CCB). Os mais novos podem não se recordar, mas o Museu Colecção Berardo teve uma primeira vida e um outro nome, quando a colecção conheceu, entre 1997 e 2006, a sua primeira apresentação em formato museológico no Sintra Museu de Arte Moderna. A ambição do projecto museológico sonhado pelo empresário e coleccionador José Berardo fê-lo apostar, logo desde o início da criação do museu em Sintra, numa aproximação estratégica ao CCB. Com a inauguração do centro cultural em 1992, o CCB passou a simbolizar o país europeu e moderno, e detinha o maior e mais prestigiado espaço expositivo em Portugal — com mais de 6300 metros quadrados de galerias. Logo em 1997 a Colecção Berardo foi o ponto de partida para a organização de uma grande retrospectiva dedicada à pop art com curadoria do britânico Marco Livingstone.
Esses pequenos grandes passos em direcção a Belém — que incluíram o armazenamento de muitas obras de arte da colecção no CCB e novas exposições temporárias dedicadas ao acervo do coleccionador — prepararam o acordo de comodato assinado em 2006 com o Governo e levaram à inauguração a 25 de Junho de 2007 do Museu Colecção Berardo no módulo 3, entre os protestos daqueles que não concordavam com o modelo de “um museu em leasing”, como lhe chamou o crítico francês Harry Bellet, citado no novo catálogo da colecção lançado na semana passada (e a que recorremos abundantemente neste artigo), que assinalou o último acto público de José Berardo como presidente do conselho de administração da instituição que leva o seu nome desde 2007.
Aberto todos os dias da semana desde a sua inauguração, o Museu Colecção Berardo conseguiu cerca de onze milhões de visitantes nestes 15 anos de vida, com o ano de 2016 e 2019 a ultrapassarem um milhão de visitantes. Os onze milhões que deverão ser atingidos no final de Dezembro, segundo previsões do museu, explicam-se, em parte, pela entrada gratuita que vigorou até 2017, uma originalidade no panorama museológico nacional negociada pelo próprio coleccionador, que sempre quis que a sua colecção fosse vista pelo maior número de pessoas, como disse em várias entrevistas.
“O acesso permanentemente livre nos primeiros dez anos do museu pode ter favorecido a captação dos visitantes, incluindo os que estavam de passagem pela zona de Belém em passeio ou em visita a um monumento histórico ou outro museu naquela área”, reconhece Teresa Duarte Martinho, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, sublinhando que, mesmo depois de 2017, o bilhete de cinco euros continuou a ser dos mais baratos, quando comparado com outros museus, tendo-se mantido a entrada gratuita aos sábados.
Mas há outros factores que explicam este volume de visitantes em 15 anos. “A questão da localização apresenta-se crucial”, continua a investigadora numa conversa com o PÚBLICO por email. Não só por causa do excepcional património cultural concentrado em Belém — do Mosteiro dos Jerónimos à Torre de Belém, jóias da arquitectura associada aos Descobrimentos, inscritas na lista do Património Mundial da UNESCO —, mas também devido à oferta cultural e de lazer que o próprio complexo do CCB permite desfrutar, desde a programação de espectáculos aos espaços de restauração e às lojas. O Mosteiro dos Jerónimos tem sido o espaço cultural mais visitado em Lisboa, em anos sucessivos, “maioritariamente por estrangeiros”.
“A inscrição da Colecção Berardo, dedicada à arte do século XX, num lugar como este demonstra a vontade de potenciar o valor da colecção num cenário já marcado pela riqueza simbólica e histórica, pela oportunidade especial de obter projecção internacional.” Logo na primeira vida da colecção em Sintra foi possível observar a mesma lógica, “a instalação do acervo na proximidade de uma ‘jóia’ consagrada na história e mais gravada no interesse dos turistas, o Palácio da Pena e os espaços em redor”.
O PÚBICO não conseguiu obter junto do CCB os números de visitantes relativos ao Centro de Exposições anteriores a 2007, ou seja, antes da sua transfiguração em Museu Berardo. Com uma programação regular de exposições temporárias entre 1993 e 2006, houve mostras no CCB, como a dedicada à artista mexicana Frida Kahlo, que ultrapassaram os 100 mil visitantes.
Preservar trabalho feito
“O mais importante é preservar a Colecção Berardo, que permite ter uma visão do século XX num dos maiores espaços expositivos em Portugal, para lá das contendas. Terão razão para estar na Justiça, e haverá uma solução com certeza para isso, mas a solução deve preservar o trabalho que foi feito”, diz o curador João Silvério ao PÚBLICO, a propósito do futuro da colecção arrestada desde 2019 como garantia no processo movido ao empresário por um consórcio de três bancos. “Do meu ponto de vista, não há museu sem uma colecção residente para ser trabalhada. A colecção, numa dupla perspectiva nacional e internacional, é a base do trabalho a ser desenvolvido num futuro museu. As obras de alguns artistas de renome internacional com valor histórico, se houver verbas e vontade política, podem ser moeda de troca, uma mais-valia, para organizar exposições internacionais que não temos tido em Portugal.”
Pedro Neves Marques, artista que representou Portugal na última Bienal de Arte de Veneza e que em 2017 teve no Museu Berardo a sua primeira exposição em espaço museológico em Portugal, considera a presença da Colecção Berardo em Lisboa “uma referência importantíssima por causa da escala e do detalhe”. “É vital, muito rica, e nesse sentido foi muito formativa. Para mim, foi muito importante a existência dos núcleos surrealista e de arte pop. É importante que seja perpetuado.” Destaca também a energia injectada pela direcção de Pedro Lapa, entre 2011 e 2017, que sucedeu ao primeiro director, o francês Jean-François Chougnet. São deste período as exposições internacionais dedicadas a Stan Douglas, Hélio Oiticica ou Christian Marclay.
Para a historiadora de arte Raquel Henriques da Silva, o balanço é muito positivo. “Vi grandes exposições, usei sempre a colecção, que é um recurso fundamental para a investigação e para o ensino. Ainda agora considero que a exposição do Julião Sarmento, sob a direcção de Rita Lougares, é excelente. Confesso que não distingo direcções. Havia mais dinheiro no início, menos depois, mas aí a arte portuguesa beneficiou, porque teve mais destaque. Houve mais artistas portugueses que tiveram oportunidade de expor. Gostei muito, por exemplo, da exposição da Cristina Ataíde e achei excelente a exposição conjunta de Pedro Calapez e André Gomes.”
Em 2010, a transferência do Estado para o Museu Berardo totalizava quatro milhões de euros; em 2012 baixou para 2,1 milhões, valor que se tem mantido inalterado e deverá agora a ser gerido pelo CCB.
O essencial da vida deste museu a que a professora universitária está tentada a dar nota máxima é, para “os públicos em geral e para os estudantes, incluindo os universitários, a colecção permanente com uma síntese qualificada da arte ocidental no século XX”.
Raquel Henriques da Silva é “absolutamente favorável” à intenção do ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, anunciada em Maio, de fazer um museu de arte contemporânea no CCB, “sem Belém no nome, por favor”, que incluirá também a Colecção Ellipse, comprada recentemente pelo Estado à comissão liquidatária do BPP, falido.
“Essa linha de actuação do ministro é fundamental. A razão interna é que os públicos tenham em Portugal uma colecção de um nível muitíssimo bom de arte ocidental. Externamente é uma afirmação de Lisboa através de um museu com uma colecção internacional onde há obras excepcionais que são sempre solicitadas, quando os respectivos autores são objecto de uma exposição.”
A mesma relevância dada à colecção internacional é apontada por Ângela Ferreira, uma das primeiras artistas portuguesas a que o Museu Berardo dedicou uma exposição individual. “É uma colecção bastante boa e que tem servido para ajudar muito no processo de dar aulas de Escultura na universidade. Por essa razão estou grata ao Museu Colecção Berardo.”
“Colecção tem direitos de autor”
Para o crítico de arte Alexandre Pomar, que acompanhou desde os primeiros tempos a discussão à volta do projecto museológico da Colecção Berardo, “é intolerável que o museu perca o nome Berardo”, mesmo com um “anexo” da Colecção Ellipse.
“O país deve-lhe isso, como uma homenagem ao criador desta colecção e deste museu único, como reconhecimento. Não sei, aliás, se é possível legalmente descartar o nome ‘Berardo’ do museu, ainda que as obras venham a ser identificadas nas tabelas como Colecção Berardo. Se perder os direitos patrimoniais a favor dos bancos (permanecendo como activos), ele não perde os direitos morais, e uma colecção tem direitos de autor”, defende numa conversa por email, em que destaca a primeira direcção de Chougnet.
O crítico de arte lamenta a atitude “de despeito” de Francisco Capelo, o coleccionador a quem se deve os principais contornos da colecção de Berardo e que entrou em ruptura com o empresário no final dos anos 90, que considera alimentar uma campanha, nomeadamente através da publicação de um artigo recente no jornal Expresso intitulado “Avaliações mágicas, a inércia dos bancos e a reabilitação em curso de José Berardo”, a propósito da edição do novo catálogo da colecção no final de Dezembro.
“Há que separar as questões financeiras, de um lado, da entidade Colecção e Museu, do outro. A questão das dívidas aos bancos — justificadas pela compra de acções do BCP e não referentes a aquisições de obras — tem contornos nunca bem esclarecidos, de carácter político (Governo Sócrates) e de política bancária. Só a indigência cultural reinante e o desprezo pela arte justificam a hostilidade ao Museu e à Colecção e o não reconhecimento do seu criador.”
O coleccionador Francisco Capelo não quis prestar declarações a propósito do balanço dos 15 anos do museu.
A programar o museu de arte contemporânea que surgirá a partir de Janeiro no CCB deverá estar Delfim Sardo, que dirigiu o Centro de Exposições entre 2003 e 2006. Foi nomeado como administrador do CCB com o pelouro da programação em Janeiro de 2020, seis meses depois de os tribunais terem decretado o arresto da Colecção Berardo a pedido de três bancos, quando decidiram igualmente que esta deveria continuar em exposição pública até haver uma decisão judicial definitiva sobre a sua propriedade (Publico, texto da jornalista Isabel Salema)
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