sexta-feira, setembro 22, 2023

Freguesia nos Açores tem mais camas turísticas do que habitantes

A freguesia de Santo Amaro tem sido um dos locais mais procurados pelos investidores na ilha do Pico. É um reflexo de um arquipélago que se debate entre os prós e os contras do turismo. Debruçada à beira-mar, aconchegada pelo verde da serra, a freguesia de Santo Amaro é uma pitoresca freguesia da ilha do Pico, nos Açores. Nos últimos anos, com o aumento do turismo, a terra que em tempos foi o principal estaleiro naval do arquipélago viu nascer dezenas de empreendimentos turísticos. Uma turistificação que está a preocupar a população da freguesia que já é inferior ao número de camas.

Santo Amaro tem 255 habitantes (tinha 288 em 2011), segundo os últimos Censos, e 264 camas turísticas, distribuídas por 51 unidades em todo o tipo de tipologias. É expectável que o número aumente nos próximos meses, uma vez que existem 24 projectos aprovados ou em apreciação que, no total, representam 178 camas. A onda turística tem gerado alarme nos residentes, preocupados com a descaracterização da terra e com o aumento do custo de vida. A partir de Santo Amaro, Duarte Neves, 26 anos, criou uma petição, subscrita, até ao final da semana passada, por 848 pessoas, a denunciar o “desenvolvimento turístico desequilibrado” e a “especulação imobiliária insustentável nos Açores e no Pico”. “Está-se a caminhar para uma monocultura do turismo. Tudo o que abre e se incentiva é relacionado com o turismo. A minha geração está a voltar para aqui, ao contrário da anterior, mas é toda para trabalhar para o turismo”, afirma ao PÚBLICO.

O tema é sensível e divide opiniões: há sempre quem olhe para o crescimento do turismo como o “caminho do desenvolvimento”. No caso de Duarte, que viveu cinco anos em Lisboa antes de voltar à ilha-mãe, o turismo descontrolado já está a “descaracterizar muito” Santo Amaro.

“Santo Amaro, com a serra atrás, é como um anfiteatro em volta do mar. Qualquer pequena alteração é uma alteração gigantesca”, explica o jovem, funcionário da única mercearia da freguesia, um local de resistência, um “ponto de encontro e de ajuda”.

O caso de Santo Amaro é paradigmático devido à vivência comunitária e à identidade vincada da freguesia. Um legado em risco de ser esvaziado à conta do turismo. “Somos uma freguesia muito orgulhosa, mas cada vez mais nota-se as coisas a serem transformadas apenas em produtos para serem vendidos a quem vem de fora”, lamenta Duarte Neves, alertando, também, para as várias casas de férias “fechadas o ano inteiro”. “Está-se sempre a construir casas que acabam por descaracterizar não só a nível arquitectónico e urbanístico, mas ao nível da identidade cultural.”

A situação gera “preocupação” na junta de freguesia, que procura atender às diferentes perspectivas. “Ninguém está contra certos empreendimentos bem enquadrados e que recuperaram património”, mas o “desenvolvimento da freguesia não pode acontecer a qualquer custo”, defende Marta Matos, a presidente da junta.

Uma sociedade “fracturada”

É em Santo Amaro que estão localizados, por exemplo, os espaços Lava Homes (inaugurado em 2019) e uma parte das casas da Adegas do Pico. Muitos dos empreendimentos foram erguidos com capital estrangeiro com investimentos impossíveis de acompanhar pelos residentes, fazendo disparar o preço dos terrenos e das casas. Um relato extensível a várias zonas do país.

Se, para uns, os efeitos do turismo são perversos, para outros, são benéficos. “Comecei a sentir a freguesia a fracturar-se entre aqueles que são a favor e os que são contra este caminho”, explica Marta Matos, descrevendo uma tensão transversal aos Açores. O arquipélago confronta-se com um debate sobre o rumo do turismo, dividindo-se entre os que defendem os benefícios económicos do sector (argumentando, por exemplo, com a valorização do património e a criação de emprego) e os que apontam para a possibilidade real de uma massificação turística.

No caso de Santo Amaro, as consequências são bem reais: os residentes já sentem um congestionamento na circulação rodoviária e na gestão de resíduos e um “disparar dos preços de bens, serviços e habitação”, constrangimentos que “dificultam a fixação” dos naturais, alerta a autarca, também deputada regional do PS.

Existem igualmente problemas no abastecimento de água, um problema recorrente em São Roque do Pico. “No Verão passado foi complicado. Não há água para abastecer todas essas unidades turísticas, para mais com a previsão de construção de piscinas em quase todas elas.”

Entre os empreendimentos em análise, existe um resort projectado para a zona do Cabo das Casas que prevê a construção de 104 camas distribuídas por 26 casas, um restaurante com capacidade para 100 pessoas, uma piscina e estacionamento para 60 viaturas.

Não “bastam palavras” para garantir a sustentabilidade do destino, defende a presidente da Junta de Santo Amaro, que propõe a definição da “capacidade de carga de cada comunidade”. A situação está “fugir ao controlo”. “A preocupação maior da junta é que seja afectada permanentemente a nossa vivência comunitária perdendo-se este nosso modo de vida que nos faz gostar de ser de cá e de estar cá.”

O caso de Santo Amaro é o símbolo de uma região cada vez mais dependente do turismo – para bem e para o mal. Em Julho, os Açores registaram cerca de 495 mil dormidas, mais 14,1% do que em Julho de 2022, que, por sua vez, já tinha batido os valores do mesmo mês de 2019 (433.772 e 391.201 dormidas, respectivamente). O recorde de 3,2 milhões de dormidas obtido em 2022 promete ser batido este ano.

“A região já não está em harmonia com o ambiente. Basta ir aos pontos mais turísticos para ver que não há sustentabilidade nenhuma”, atira o arquitecto açoriano Jorge Kol de Carvalho, que tem sido uma das vozes mais recorrentes a chamar a atenção para a situação de Santo Amaro.

O antigo presidente da Ordem dos Arquitectos nos Açores (2003 a 2008) levou o caso da freguesia ao 16º. Congresso da Ordem dos Arquitectos, realizado em Março em São Miguel, cujo tema foi, precisamente, a sustentabilidade. “Quando o tema do congresso era o futuro, perguntei se é este é o futuro que nós queremos.”

Para Kol de Carvalho, os Açores estão a caminhar para a massificação e pede para que o turismo na região não seja medido “com os mesmos parâmetros” do continente porque as ilhas não são um território contínuo. “Quem aluga um carro em Lisboa pode aparecer no Algarve. Aqui, não.” Por isso, é preciso reflectir sobre o futuro do turismo nos Açores e pensar num ordenamento do território “que não se baseie apenas em construir mais parques de estacionamento”. “Quando temos este excesso de automóveis e de camas, não temos infra-estruturas que aguentem.” (Publico, texto do jornalista Rui Pedro Paiva)

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