domingo, julho 24, 2022

Opinião: "Regionalizar para descentralizar"

Têm estado a funcionar as comissões de coordenação regionais do Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve. São áreas de mera desconcentração administrativa. Porque não transformá-las em áreas de descentralização, com as alterações que forem julgadas convenientes?

1. Com a previsão de regiões administrativas no Continente — que deveriam distinguir-se dos distritos e das províncias das Constituições anteriores — a Assembleia Constituinte de 1975-1976 quereria realizar alguns objetivos. Em primeiro lugar, criadas as regiões autónomas dos Açores e da Madeira, a regionalização deveria estender-se ao resto do país — conquanto sob formas meramente administrativas — por um princípio de unidade nacional, por um princípio de democracia descentralizada e por terem de ser corrigidas no Continente assimetrias paralelas às ditadas pela insularidade. Em segundo lugar, em vários países europeus estavam sendo ensaiados esquemas de organização regional contrapostos às fórmulas do passado. Embora os modos da regionalização e a extensão da autonomia não surgissem idênticos, quase todas essas regiões ocupavam um espaço físico maior e possuíam muitas mais capacidades de intervenção do que os distritos portugueses.

Um terceiro motivo prendia-se com o planeamento regional: enfatizado pela Constituição (arts. 91.0 e 92.0). Ora, para que ele se não tornasse mais um instrumento favorito da tecnocracia ou de burocracia, antes uma instância de democratização do Estado e da sociedade, importaria que os correspondentes órgãos assentassem na participação dos cidadãos, e não se via como esta pudesse dar-se com eficácia sem o emergir de autarquias regionais.

Em quarto lugar, não obstante se querer desenvolver e reforçar a autonomia municipal, entendia-se que muitos dos concelhos só dificilmente poderiam exercer sozinhos todas as suas atribuições, mormente as ligadas a novas tarefas de ordenamento do território, de urbanismo, de transportes e de salubridade pública. Apenas num quadro mais vasto de articulação orgânica as poderiam exercer.

Tudo isto viria, porém, a perder força ao longo dos anos e até hoje as regiões não passaram do texto constitucional para a realidade da vida administrativa, por falta de consenso acerca da divisão regional e pela subsistência de tendências centralizadoras com invocação dos custos financeiros que elas importariam.

2. Em 1998, foi rejeitado, por referendo, um projeto de concretização das regiões administrativas. Foi rejeitado, e bem, por o mapa das regiões ser puramente artificial.

Decorreram mais de vinte anos e, entretanto, têm estado a funcionar, melhor ou pior, e com pouca repercussão pública, as comissões de coordenação e planeamento regionais correspondentes a cinco áreas do continente: Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve.

São áreas de mera desconcentração administrativa. Porque não transformá-las em áreas de descentralização, com as alterações e correções que forem julgadas convenientes? Porque não proceder ao confronto com as regiões que existem, bem perto de nós, na Espanha, na França e na Itália? Proceder ao confronto e estudar essas experiências.

3. Não se trataria de substituir ou enfraquecer os municípios. Tratar-se-ia, sim, de coordenar as atividades dos municípios; tratar-se-ia de os apoiar — sobretudo, aqueles com reduzida população e escassez de recursos — no exercício das suas atribuições; tratar-se-ia de, em vez de eles se dirigirem ao poder central, se dirigirem a instâncias mais próximas e por eles participadas.

Ouve-se tantas vezes dizer que Portugal é um país demasiado centralizado, talvez um dos mais centralizados da Europa que, pode perguntar-se porque não avançar neste sentido.

4. O princípio fundamental é o da subsidiariedade (art. 6.0 da Constituição). Ele joga, logicamente, tanto nas relações entre o Estado e as autarquias locais quanto nas relações entre autarquias de diversos graus. O que a freguesia puder fazer ou fazer melhor não deverá ser cometido ao município e o que o município puder fazer ou fazer melhor não deverá ser cometido à região administrativa.

As autarquias de grau superior não dispõem de nenhum poder de direção, superintendência ou tutela relativamente às autarquias de grau inferior, sem embargo de necessária cooperação decorrente da natureza das coisas e da escassez de recursos. Coisa diferente vem a ser a prevalência das normas regulamentares dimanadas das autarquias locais de grau superior sobre as dimanadas das de grau inferior (art. 241. 0).

Nem os concelhos são simples agregados de freguesias, nem as regiões administrativas simples agregados de municípios. No entanto, segundo a Constituição, existem certas formas de articulação orgânica:

  • a participação nas assembleias municipais dos presidentes das juntas de freguesia (art. 251.0);
  • a participação nas assembleias regionais de membros eleitos pelas assembleias municipais de eleição direta (art. 260.0);
  • a participação nas assembleias das áreas metropolitanas de membros eleitos pelas assembleias municipais (art. 13.0 da Lei n.o 10/2003);
  • a participação, nos Açores, nos conselhos de ilha dos presidentes de câmaras e de assembleias municipais e de quatro membros eleitos pelas assembleias municipais (art. 2.0 do Decreto legislativo regional n.o 21/99/A).

5. A criação na prática das regiões administrativas tem de se efetuar por referendo, a nível nacional e a nível de cada uma das regiões propostas. E o referendo depende (art. 2560 da Constituição):

  • de lei orgânica da Assembleia da República a aprovar por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções (art. 1680, no 5);
  • e de convocação pelo Presidente da República (art. 164.0, alínea c).

Eis, pois, uma problemática em que somente se pode avançar com o entendimento entre os partidos políticos, com a concertação institucional entre a Assembleia da República e o Presidente da República e entre o Estado e os municípios. Não seria, com certeza, um trabalho fácil, mas valeria a pena enfrentá-lo com rigor e sem pressas (Público, artigo de opinião de Jorge Miranda, publicado em 23.7.2022 neste jornal)


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