quarta-feira, julho 20, 2022

Entrevista de JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA ao Público: “Só temos verdadeiramente mãos, mãos livres, quando as damos”

Mais do que com a solidão, José Tolentino de Mendonça está preocupado com o isolamento e apela a que os mais jovens não sejam “analfabetos” nas relações. Tal como o Papa Francisco, o cardeal, poeta e teólogo coloca a sua esperança no presente. Depois de alguns anos, o PÚBLICO reencontra-se com José Tolentino de Mendonça em Roma, em Março, altura em que lhe pede uma entrevista. O pedido é aceite pelo arquivista do Arquivo Apostólico do Vaticano e bibliotecário da Biblioteca Apostólica Vaticana, na Cúria Romana, mas adiado para o início de Junho, por ocasião de um encontro de formação para jornalistas portugueses promovido pelo Opus Dei, em Roma, no qual será orador. Entretanto, a organização do curso esclarece os participantes que o convite é para um “seminário de formação, que não foi pensado como um seminário de informação”. Por isso, “os oradores podem falar mais livremente e não têm o compromisso de prestar declarações ou entrevistas”. Nada do que ali ouçamos poderemos reproduzir, esclarece repetidamente Pedro Gil, do gabinete de comunicação da prelatura.

No dia de Portugal, depois de terminada a sua intervenção sobre “Memória, Cultura e Fé”, na Pontifícia Universidade de Santa Cruz, o cardeal — que poderá presidir ao Dicastério para a Cultura e Educação, uma espécie de ministério da Santa Sé, segundo avança o site especializado em religião 7 Margens, mas que, para já, foi nomeado membro do Dicastério dos Bispos —, é rapidamente rodeado pelos jornalistas que insistem numa entrevista. José Tolentino de Mendonça recusa-se, lembra que estivera nas festas do Senhor Santo Cristo, em Ponta Delgada, momento em que falou com a comunicação social portuguesa. Nada tem a acrescentar, justifica. Acaba por concordar em tirar uma fotografia de grupo, tão-só, e despede-se.

Cumprindo as regras, o PÚBLICO e o cardeal adiam a entrevista por mais umas semanas. Esta não será presencial como desejado, mas por escrito, acordam. E o poeta e escritor pede que não lhe sejam feitas perguntas que fiquem presas à actualidade; o seu desejo é que esta seja uma entrevista que possa ser lida daqui a uns anos, sem perder prazo de validade. O desafio é aceite. Por isso, não vamos falar aqui sobre a possibilidade de Francisco renunciar ou de o entrevistado poder vir a ser Papa — ​vamos pensar sobre o ser humano, um ser que precisa de cultura e arte.



O desafio é fazer uma entrevista que não perca o prazo de validade. Contudo, é impossível não falar da pandemia. Foi o acontecimento das nossas vidas, afectou e teve impacto em toda a humanidade. Esperava-se que, como sociedade, nos tornássemos mais solidários, mais unidos, mais fortalecidos, mas, quando saímos das nossas casas, percebemos que estamos mais egoístas, somos menos empáticos. Porquê?

Estamos ainda longe de compreender o impacto da pandemia e a dimensão do custo histórico e existencial que lhe está associado. Descobriremos aos poucos, ao longo dos próximos anos. Aquilo que para já parece claro é que a pandemia veio pôr a descoberto uma vulnerabilidade que colectivamente não queríamos ver. Para usar palavras do Papa Francisco, “estávamos doentes e não sabíamos”. Afinal, como indivíduos e como sociedades, somos mais frágeis do que as várias representações até aqui mostravam.

Pensemos, por exemplo, no poder messiânico que as nossas sociedades atribuem à tecnologia ou à ciência. Pensemos, por exemplo, na coincidência que à força pretendemos que exista entre as palavras communitas e immunitas. No ideal de comunidade, projectamos uma suposta imunidade, isto é, a concretização do desejo de nos sentirmos protegidos, intocáveis, salvaguardados do mal. A pandemia coloca esse modelo em discussão. Precisamos de reler a comunidade não como uma garantia que resolve automaticamente a nossa necessidade de protecção, mas como um lugar aberto (e nesse sentido também frágil), sempre em construção, onde nos reinventamos. O futuro pede-nos, por isso, uma capacidade de ler com maior realismo o que somos e o que podemos ser. E exige seguramente uma maior consciência do limite.

Nos seus últimos textos, tem reflectido sobre a solidão, sobre o individualismo, temas sobre os quais outros autores, ultimamente, têm escrito. Os pensadores são os primeiros a auscultar o mundo e a diagnosticar os seus males? Qual é o seu diagnóstico?

Mais até do que a solidão, um problema cada vez maior é o isolamento. Há um verso de Emily Dickinson, em que ela escreve: “Talvez estarei mais só/ sem a minha solidão.” Sim, temos de estar atentos à solidão, mas esta, de qualquer forma, ainda se define em relação ao outro, ao desejo ou à nostalgia de uma presença... Podemos estar ainda mais sós do que na experiência de solidão, diz Dickinson. E é isso que está a crescer. O isolamento é a solidão negativa, o sentimento de uma desagregação que nenhuma relação redime, é o mundo sem o outro, sem qualquer possibilidade de transcendência. Este isolamento pode ser gerado por factores diversos: desde o desenraizamento humano, espiritual e cultural à interiorização da exclusão naqueles que se sentem alvo de abandono (penso nos idosos, nos pobres, etc.). Mas este isolamento pode ser igualmente gerado pela imobilidade diante de um ecrã. E penso nas gerações mais jovens. Num quotidiano sempre mais obsidiado pela tecnologia, tornamo-nos rapidamente analfabetos de relação.

E a cura?

Permitam-me que recorra a uma imagem. Considerámos muito cómodo o telefone sem fios ou o modo mãos livres. Ora, o “sem fios” e o “mãos livres” funcionam para os telefones, não para a vida. Precisamos como sociedade de aprender a valorizar os fios que nos ligam e entrelaçam, os fios sem os quais nós não somos. E descobrir que só temos verdadeiramente mãos, mãos livres, quando as damos.

Nos últimos anos, o mundo editorial tem apostado em livros que revelam “os segredos” para se ser feliz? Existe uma fórmula?

A felicidade não é um segredo fechado a sete chaves, mas é um horizonte acessível a todos. Não está revelado no último best-seller, mas cada pessoa o traz inscrito como possibilidade no seu coração. E por mais voltas que se dêem, o ponto central é sempre o mesmo: realizar com autenticidade uma experiência de amor, seja ela qual for; descobrir como a gratuidade, a dádiva e o serviço nos ensinam tanto, mas tanto! São Paulo usa um paradoxo interessante. Diz: “Jesus Cristo, sendo rico, tornou-se pobre por vossa causa, para que fôssemos enriquecidos pela sua pobreza.” A felicidade está mais no dar do que no receber, no consolar do que ser consolado, no servir do que no ser servido.

Muitos autores, sobretudo europeus, alertam para os riscos de uma busca artificial pela felicidade, nomeadamente para a nossa saúde mental — a espanhola Victoria Camps ou a holandesa Joke J. Hermsen, por exemplo — e vão à Antiguidade, a Aristóteles e a Platão. Temos de regressar ao passado para redescobrir que o segredo da felicidade está numa vivência comunitária? No bem comum?

A iliteracia sobre o humano é um dos grandes problemas das sociedades contemporâneas. Recordo uma frase de Ingmar Bergman num dos seus filmes: “Não somos outra coisa que analfabetos do ponto de vista emocional. Ensinaram-nos tudo, mas não nos ensinaram uma única palavra sobre a nossa alma. A ignorância sobre nós mesmos é praticamente total.” Ora, este vazio é preenchido por cada um como pode, mas não deixa de pesar.

Precisamos de um novo humanismo, de uma sabedoria de viver, de uma gramática do humano, de uma educação integral que não esqueça a arte de ser. O bem comum primário não é o que temos mas o que somos. Descurar esta dimensão é hipotecar a possibilidade de vivermos uns com os outros de uma forma feliz.

Esse humanismo não fica comprometido por uma política que aposta cada vez mais na formação em ciências exactas — estamos obcecados com a programação, a computação, a quarta revolução industrial —, em detrimento das ciências humanas e da arte? Estas fazem falta para quê?

O futuro mostrar-nos-á sempre mais a necessidade de passar do paradigma da substituição ao da integração e complementaridade. A ciência ocupa-se da esfera do vivente, isto é, do ser humano enquanto vivente e de tudo o que se relaciona com ele. O humanismo ocupa-se do campo do vivido, entra no interior daquilo que é o ser humano, relata a sua história. A transdisciplinaridade é, por isso, a escolha civilizacional mais sensata. A ciência desligada da cultura humanística desumaniza-se. As humanidades sem o conhecimento científico integrado são um discurso abstracto. A ciência procura individuar o verdadeiro. As humanidades procuram assinalar o autêntico. Há complementaridade entre ambas. Só os modelos dialógicos nos servem.

Há políticos que oferecem curas milagrosas e que, frequentemente se colam à Igreja, como é que identificamos os falsos profetas?

Instaurar equivalências directas entre anúncio evangélico e mensagem política é sempre um erro. O pluralismo político dos cristãos é uma riqueza a tutelar, como ficou explicitado no Concílio Vaticano II, e ninguém pode reclamar o privilégio da exclusividade de representação. Por outro lado, a tentação de apresentar respostas simplistas para problemas complexos não produziu, como se sabe, grandes resultados em termos de civilização. Critérios irremovíveis permanecem, a convergência para o bem comum, o reconhecimento da dignidade da pessoa humana, a protecção dos mais vulneráveis, a justiça social, a co-responsabilidade no cuidado do mundo, o empenho nessa coisa laboriosa e nunca garantida que é a paz...

Como apostar num caminho de conhecimento, de beleza, quando as pessoas vivem com dificuldade?

A educação e a cultura não são um luxo: são um bem de primeira necessidade. Não é porque temos as dificuldades aplanadas que podemos dedicar tempo à procura de conhecimento ou às artes, por exemplo. É para ajudar a pensar e a resolver os problemas que a educação e a cultura servem.

Em momentos de crise, o povo sai à rua. A história mostra-nos que, muitas vezes, os jovens tomam a dianteira. Há uns anos que se manifestam por causa da crise ambiental — ​está a resultar?

O Papa Francisco na [encíclica] Laudato Si’ diz que temos todos de agradecer aos jovens que exigem uma mudança em relação ao cuidado da casa comum e aos modelos de desenvolvimento. Nas novas gerações, vemos uma consciência mais clara do dramatismo da situação actual. Isso é uma janela de esperança. As Jornadas Mundiais da Juventude, por exemplo, que decorrem daqui a um ano em Lisboa, serão um momento para se sentir como os jovens tomam a dianteira, como a juventude é um laboratório de futuro. O mundo precisa de ouvir os jovens.

Vivemos mais tempo, uma longevidade que se traduz em mais anos de trabalho, o que nos coloca num dilema: quando é que damos lugar aos novos? Até que ponto estes não têm as suas vidas adiadas por causa das gerações que os antecedem? Onde se pode encontrar um equilíbrio?

No mundo, há lugar para todos, velhos e novos, mas precisamos querer isso efectivamente. Não se está a encarar, com coragem política necessária, uma questão que salta aos olhos: a precarização extrema das condições de vida dos jovens adultos. Tantos não deveriam viver já na dependência dos pais, mas são obrigados a isso. Não têm condições para criar uma família, para suportar a sua autonomia, para pensar em ter filhos. É um problema muito sério. E há um défice de pensamento sobre esta questão, que é remetida para o deixa andar. Tem de haver um pacto intergeracional.

Na Praça de São Pedro, em 2019, o Papa inaugurou uma escultura que representa os refugiados num barco. No fundo, representa a humanidade, porque de um momento para o outro podemos ser nós. Além de nos questionar, a arte é uma forma de oração?

Tem um forte impacto essa escultura do artista canadiano Timothy P. Schmalz, que foi buscar a sua inspiração a um passo da Carta aos Hebreus: “Não vos esqueceis da hospitalidade, pois através dela muitos, sem saber, acolheram anjos.” A peça interroga-nos, de facto, sobre a nossa abertura (ou fechamento) às práticas de hospitalidade. A arte amplia o horizonte das nossas perguntas e recorda-nos que, como dizia a escritora Clarice Lispector, nós próprios somos uma pergunta. E, sim, dá-nos a ver o invisível, coloca-nos em contacto com o mistério. Também através dela, sem saber, acolhemos anjos.

Quer dar exemplos de outras peças que nos possam ajudar a reflectir? Precisamos da imagética para o fazer? Os evangélicos, por exemplo, só precisam da palavra de Deus?

Estive recentemente em Veneza e pude ver a exposição que Anselm Kiefer tem no Palácio Ducal. É uma meditação sobre o que se vê da condição humana depois das grandes tragédias, cancelamentos, destruições. E o que a obra de Kiefer mostra é que o fracasso porventura não nos tira tudo, pois como que nos aguça o olhar para perfurar a evidência impenetrável. Neste ciclo monumental de pinturas, regressa um elemento recorrente na reflexão de Kiefer, a escada, que é a escada de Jacob, a escada para subir e voltar a descer, degrau a degrau, possuídos por um outro tipo de conhecimento.

Sempre em Veneza, na bienal de arte, estão as incríveis esculturas da norte-americana Simone Leigh que nos obrigam a reler o Livro do Êxodo em chave contemporânea. E numa Igreja visitei também a instalação de Pedro Cabrita Reis. É uma espécie de mapa do actual estado das coisas. Um caos de detritos, demolições, restos, materiais desconexos. Mas na peça não há um juízo definitivo. Há ao mesmo tempo uma expectativa disseminada, tubos de LED acesos, como se se esperasse ainda alguém. Recordei-me ali daquela parábola de Jesus, em que as virgens estão com as lâmpadas acesas aguardando o ingresso do esposo.

Temos um Papa que é um homem de acção. É um sinal de esperança numa Igreja que, ao longo dos séculos, tem sido tolerante com casos que, mais do que causar escândalo, causam dor?

Não separaria o escândalo da dor, pois ambas as realidades estão dramaticamente associadas. Sobre os erros e violências cometidos por membros da Igreja, a Igreja tem feito um necessário caminho de aprofundamento que continua em curso. O Papa João Paulo II, que no começo do novo milénio fez uma série de pedidos de perdão, dizia: “É necessário que também a Igreja, à luz de quanto disse o Vaticano II, reveja por própria iniciativa os aspectos obscuros da sua história, avaliando-os à luz dos princípios do Evangelho.” A Igreja é chamada a viver numa dinâmica de conversão. Ela sabe que deve cantar o Magnificat, mas também o Miserere, e é importante uma coisa como outra. Desde a primeira hora do seu pontificado, o Papa Francisco tem desafiado a Igreja a isso mesmo, insistindo em que ela se tornará sinal de esperança, na medida em que aceitar uma renovação inadiável. Francisco traz à Igreja e ao mundo do nosso tempo um sopro profético. E ajuda-nos a olhar o presente como um lugar onde a esperança é possível.

Quer acrescentar algum tema que sinta que faz falta? Uma palavra de esperança?

Queria reforçar a honra e a oportunidade que representa para Portugal ser o palco de realização das Jornadas Mundiais da Juventude, já em Agosto de 2023. Em Lisboa, o Papa Francisco falará não só às largas centenas de milhares de jovens que acorrerão dos cinco continentes, mas deixará uma palavra de ânimo a todos, implicando-nos na responsabilidade de gerar um futuro melhor. É importante que Portugal inteiro se active para este acontecimento ímpar, acolhendo como sabe acolher e acompanhando de coração aberto o encontro dos jovens com o Papa (Publico, texto da jornalista Barbara Wong)

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