terça-feira, julho 26, 2022

Zona Franca da Madeira foi a placa giratória do BES para a Venezuela e Angola


Sucursal da zona franca serviu para o banco angariar clientes da América do Sul e África. PDVSA e outras empresas venezuelanas chegaram a ter quase 7000 milhões de dólares no BES. Depósitos eram investidos no GES. O país vivia sob o escudo da troika. A queda dos Espírito Santo parecia inimaginável naquele ano da graça de 2011 e, numa banal segunda-feira 14 de Novembro, Ricardo Salgado faz um gesto trivial para qualquer gestor atarefado. Pega na sua agenda e escreve um pequeno lembrete a lápis: “Falar Schneider Areias 13.” O escrito, tão enigmático quanto inusitado, acabaria por ser apagado daquela página do caderno. Mas a agenda seria apreendida anos mais tarde pela equipa que investigou o caso BES e, mesmo com o rasurado, os procuradores conseguiram juntar as pontas soltas e deslindaram o aparente significado da nota. A chave estava em “Areias”, mas a razão de ser estava numa ilha.

“Areias”, afinal, não era mais do que um código que o histórico presidente do BES usava para se lembrar de ordenar pagamentos de um dos sacos azuis do Grupo Espírito Santo (GES) — a sociedade offshore Enterprises — para contas sediadas no BES do Dubai, relacionados com os negócios do banco com as empresas públicas da Venezuela.

O fio dos acontecimentos não é linear. Mas há um centro de poder que o explica. “Areias” existia, porque existia uma ponte: a actividade do BES na Zona Franca da Madeira (ZFM), onde durante mais de duas décadas esteve licenciada a famosa mas discreta Sucursal Financeira Exterior (SFE), autorizada a actuar com clientes não residentes em Portugal.

A SFE, que resistiu mesmo depois da queda do BES e só encerrou em 2018 já com o Novo Banco, foi um pólo de poder que, segundo o despacho de acusação do inquérito principal do BES conhecido na terça-feira, Ricardo Salgado usou como uma placa giratória das relações comerciais com a Venezuela e com Angola (com ligações que chegam ao paraíso fiscal do Dubai, ao Luxemburgo e à Suíça, onde o grupo tinha actividade). Foi um ramo que serviu para captar depósitos e que, pelo menos entre 2008 e 2014, serviu, por sua vez, como almofada de liquidez para financiar o GES.

Era na sucursal da zona franca que grandes empresas estrangeiras (como a famosa Petróleos de Venezuela, PDVSA) e clientes singulares com algum património (como emigrantes na Venezuela) tinham contas bancárias. Aqui, o BES emprestava e, ao mesmo tempo, obtinha liquidez, pois direccionava as poupanças dos depósitos para investimentos em entidades do GES — da Espírito Santo International (ESI), a principal holding do grupo, à Espírito Santo Financière, ambas sediadas no Luxemburgo.

A acusação elaborada pela equipa do DCIAP mostra como a sucursal funcionou ao longo dos anos como um “núcleo de atendimento” alocado “a diversas geografias, incluindo África e Venezuela”, que actuava com dois tipos de clientes: activos “private, associados à poupança e ao investimento em produtos financeiros” e “corporate, caracterizados pelas operações típicas das empresas comerciais e industriais (recebimentos de clientes, pagamentos a fornecedores, operações de trade finance, etc.)”.

O director-geral

Salgado é descrito na acusação como um líder autocrático, mas não actuou sozinho. E uma das figuras centrais que vai aparecer na história da unidade madeirense é João Alexandre Silva. Entra para a SFE logo em 1994, quatro anos depois da fundação desta sucursal, como subdirector no departamento de particulares da sucursal e, a partir daí, vai subindo na hierarquia até chegar a director-geral em Abril de 2000. Embora reportasse a José Manuel Espírito Santo, respondia directamente a Ricardo Salgado, que, de resto, anos mais tarde o vai indicar para conselheiro da administração do braço do BES no Dubai, o Espírito Santo Bankers Dubai (ESBD).

É na posição de director-geral da SFE que João Alexandre Silva está quando, a partir de meados de 2008, com José Sócrates a alimentar contactos com o Governo venezuelano de Hugo Chávez, o BES inicia uma relação comercial com bancos públicos venezuelanos, empresas subsidiárias da PDVSA, empresas de electricidade e fundos de desenvolvimento que operavam com as receitas das exportações de petróleo, como por exemplo a sociedade Bariven, a Corporation Electrica Nacional (Corpoelec), o Banco Bandes Uruguay, o Bandes Venezuela, a PDV Insurance ou a PDVSA Services.

Será através de João Alexandre Silva que, alegadamente, Ricardo Salgado tinha “acesso directo aos centros de decisão financeira das entidades estatais venezuelanas, designadamente à presidência executiva” da PDVSA, “entidade central nas relações de negócios com os dirigentes das demais empresas públicas desse país”.

João Alexandre Silva acumulava a liderança da SFE com a de director no departamento da banca de transacções  internacionais e, nessas duas funções, acompanhava clientes “oriundos da América do Sul e Angola” cujas contas “por razões fiscais foram domiciliadas” na sucursal madeirense.

O início dos problemas

A partir de 2012, quando já se faziam sentir as dificuldades de tesouraria da Espírito Santo International (ESI), Salgado consegue “direccionar a liquidez dos depósitos bancários” das empresas venezuelanas para a dívida da principal holding do grupo. Algo que, diz a acusação, era alegadamente controlado por João Alexandre Silva, pelo seu adjunto, Paulo Jorge, e pela equipa que estes tinham consigo “na área da banca internacional [no Funchal] e dos grandes negócios internacionais do BES, em Lisboa”.

E para isso – descreve o despacho do Ministério Público — terão tido o alegado “contributo” da directora do departamento financeiro, de mercados e estudos, Isabel Almeida, que um dia contou no Parlamento ter acreditado até ao fim na “viabilidade e sustentabilidade” do BES. Almeida reportava ao número dois de Salgado, o administrador Amílcar Morais Pires, também ele implicado pelo Ministério Público nas operações que passaram pela ZFM.

O que acontecia é que o BES vendia a estes grandes clientes depositários serviços de trade finance (operações de crédito documentário). As empresas da petrolífera PDVSA faziam encomendas a operadores internacionais e, para procederem aos pagamentos, o BES dava linhas de crédito, emitindo cartas de crédito de garante (conhecidas por LC) que eram, na prática, uma antecipação desses pagamentos.

Em contrapartida, o BES exigia que as empresas prestassem garantias, colaterais ou que mobilizassem dinheiro em contas caucionadas. Só que, a partir de 2012, Salgado terá dado orientação para que as empresas da Venezuela, em vez de darem como garantia os depósitos em dinheiro, dessem como garantia obrigações da holding ESI — e com isso estava a desviar liquidez do banco para essa estrutura de topo. Montava assim uma linha de negócios com os investimentos das empresas na unidade da Madeira para “obter proveitos de financiamento para as entidades do GES”.

As empresas venezuelanas chegaram a ter aplicados no GES quase 7000 milhões de dólares em 2013 e ainda tinham mais de 3100 milhões em 2014.

Mas não foram apenas estas entidades que acabaram por perder dinheiro com o colapso do GES. Emigrantes portugueses na Venezuela que confiavam na marca do BES subscreveram obrigações que não viriam a ser reembolsadas.

A acusação conta alguns desses casos. Um deles é o de um cidadão português, “portador do quarto ano de escolaridade”, que trabalhava no ramo da panificação e que, através da sucursal da ZFM, tinha depósitos a prazo numa conta no BES Luxemburgo. Em 2009, foi contactado por uma funcionária do banco que oferecia “segurança” e “taxas de juro superiores”. Investiu na Espírito Santo Tourism Europe. Em 2014, acabou por perder 948,5 mil euros e, diz o Ministério Público, tanto este cliente como a gestora “ignoravam” que os investimentos tinham sido “precipitados”.

Segundo a acusação, foi Ricardo Salgado quem deu indicações ao seu número dois, Amílcar Morais Pires, e à directora do departamento financeiro, Isabel Almeida, para que as unidades comerciais e o departamento de gestão da poupança “continuassem a dinamizar a venda de obrigações ES Tourism Europe no portefólio de ofertas do BES aos seus clientes”, orientações que seguiram para “as áreas private e para a SFE da Madeira”.

Ao fim dos seis anos de investigação, o director-geral da SFE foi acusado por dois crimes de falsificação de documento. Do processo principal do BES saiu, no entanto, uma certidão para ser investigada num processo autónomo a relação GES-Venezuela-Suíça-Dubai-Macau “no contexto das relações de negócio com entidades públicas venezuelanas, seus fornecedores, funcionários e titulares de cargos políticos, ou de altos cargos públicos de países da América Latina, em que se inclui o ex-vice presidente do Banco do Brasil”.

A empresa Enterprises — saco azul que não estava documentado no organograma do GES e que servia para fazer pagamentos a pessoas com dinheiro originário do GES e de uma accionista chamada Zyrcan Harthan — também serviu para pagar um bónus de 150 mil euros ao director-geral da sucursal madeirense, “para contas que estes usava no Banque Privée Espírito Santo com os nomes de ‘Pargo’ e ‘Caramujo’”.

Entre Fevereiro de 2011 e Dezembro de 2012, João Alexandre Silva recebeu em contas no estrangeiro 1,1 milhões de euros. E em 2013 Salgado deu ordem para transferirem 350 mil euros para a sociedade de João Silva no Dubai, a Cronus Enterprises (Publico, texto do jornalista Pedro Crisóstomo)

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