terça-feira, julho 26, 2022

Venezuela: BES emprestou mais de 3400 milhões a empresas públicas venezuelanas

Despacho do Ministério Público mostra como os empréstimos serviram de trampolim para a PDVSA e outras grandes empresas venezuelanas financiarem o próprio GES. Quando, nos idos de 2008, Portugal e a Venezuela estreitaram os laços comerciais, embalados por uma viagem de governantes e empresários portugueses à capital venezuelana, o Banco Espírito Santo (BES) agarrou a rota Lisboa-Caracas com as duas mãos. Até ao colapso, no Verão de 2014, o banco então dirigido por Ricardo Salgado desenvolveu uma relação privilegiada, assente em três vértices, com uma série de entidades públicas venezuelanas, como a petrolífera PDVSA ou a eléctrica nacional Corpoelec: as empresas aplicavam a tesouraria na sucursal do BES na Zona Franca da Madeira (ZFM); o BES concedia empréstimos e aprovava linhas de apoio para se concretizarem pagamentos a fornecedores; e o banco conseguia que essas empresas financiassem o Grupo Espírito Santo (GES), comprando valores mobiliários do grupo que controlava o banco. Ao todo, entre 2008 e 2014, o BES concedeu a entidades venezuelanas mais de 3500 milhões de dólares em empréstimos (cerca de 3400 milhões de euros ao câmbio actual) e, em paralelo, nesse mesmo período, o GES financiou-se junto do núcleo de grandes clientes venezuelanos em mais de 3000 milhões de dólares.

O retrato simplificado dessas relações comerciais – sobre a forma como as empresas estatais foram um trampolim para um “ciclo de investimentos” no próprio GES — é descrito no despacho de acusação emitido pelo Ministério Público português, este mês, na sequência de uma investigação criminal ao último aumento de capital do BES.

Na decisão a que o PÚBLICO teve acesso, assinada a 15 de Julho, a equipa do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) refere que a relação que o BES iniciou com as empresas públicas da Venezuela “foi directamente assumida por Ricardo Salgado”. Do outro lado estavam elementos da “nomenclatura política local, incluindo o Presidente do país [então, Hugo Chávez] e o ministro dos petróleos, Rafael Ramirez”, também presidente da PDVSA.

Salgado “logrou canalizar para o BES aplicações de tesouraria de bancos públicos venezuelanos, de empresas subsidiárias da PDVSA, de empresas ligadas a electricidade e de fundos de desenvolvimento local que operavam com receitas petrolíferas”. Conseguiu que, em 2011, as “principais contas” da PDVSA ficassem centralizadas na discreta sucursal que o banco abrira, mais de 20 anos antes, na Zona Franca da Madeira para actuar com clientes não residentes em Portugal.

Uma outra investigação anterior do DCIAP, sobre a queda do BES/GES, já confirmara, em 2020, que as empresas venezuelanas chegaram a ter depositados no GES quase 7000 milhões de dólares em 2013, montante que, apesar de ter baixado no ano seguinte, o da derrocada da instituição financeira, ainda superava nessa altura os 3100 milhões.

Agora, no recente despacho do Ministério Público, a procuradora Olga Barata confirma os factos aí descritos: “Além dessa relação de depósito que se estabeleceu com as empresas venezuelanas”, a área de negócio internacional do BES “também vendeu serviços de crédito documentário (ou trade finance)”, operações de crédito documentário, em que o BES concedia financiamento que permitia às empresas avançar com pagamentos aos fornecedores.

“Estas operações de crédito, concedidas pelo BES ao grupo PDVSA, garantiam fornecimentos internacionais de bens e serviços a petrolífera venezuelana nas quais as contrapartes desta exigiam garantias irrevogáveis de pagamento para mitigação do risco de país Venezuela. O BES emitia cartas de crédito de garante irrevogáveis, antecipando pagamentos mediante determinadas condições prévias ao fornecimento que, na realidade, funcionavam como financiamento ao grupo PDVSA para pagamento antecipado de encomendas feitas a operadores mundiais”, explica o Ministério Público. A abertura e o funcionamento destas linhas “passava pelos circuitos comuns de concessão de crédito do banco com o apoio da área de negócios internacionais”, em Lisboa, e da Sucursal Financeira Exterior (SFE) da Madeira, “a quem estes clientes estavam alocados”.

Entre 2008 e 2014, o BES concedeu crédito à PDVSA, à subsidiária Bariven (uma espécie de “central de contratação de bens e serviços”, ao Banco Deltesoro, ao banco de desenvolvimento local Bandes, ao Banco Ex, à Electricidad de Caracas e à Corpoelec (empresa estatal na qual se fundiram as eléctricas regionais)

O Ministério Público destaca quatro exemplos que mostram como esses empréstimos superaram os 3500 milhões de dólares: “cartas de crédito para a importação à PDVSA/Bariven a 9 de Janeiro de 2012, no valor de 750 milhões de dólares”; a “linha ‘hidrocarburos’ à PDVSA, a 10 de Janeiro de 2013, no valor de 1150 milhões de dólares; a “operação de 834 milhões de dólares, contratada a 24 de Setembro de 2013 e a 21 de Abril de 2014, para apoio ao desenvolvimento de uma refinaria, que envolveu as estruturas Wison e Oak Finance, e o BES Luxemburgo; e a “linha de apoio a fornecedores da PDVSA e Bariven, contratada a 10 de Janeiro de 2014, no valor de 800 milhões de dólares”.

Garantir “proveitos”

Para o Ministério Público, Ricardo Salgado “posicionou esta linha de negócios do BES para com ela obter proveitos de financiamento para as entidades do GES” — algo que fundamenta com o facto de, pelo menos, a partir de Dezembro de 2011, a PDVSA ter iniciado um “ciclo de investimentos” em obrigações da Espírito Santo International (ESI), a principal holding do grupo, sediada no Luxemburgo, ao aplicar 500 milhões de dólares em obrigações.

As entidades públicas venezuelanas investiram 3108,2 milhões de dólares “em valores mobiliários do GES, quer da área financeira, quer da área não financeira” de 2008 a 2014.

Foi — segundo o Ministério Público — por “decisão última” de Ricardo Salgado que o banco “passou a aceitar, como garantia para os financiamentos concedidos em trade finance com empresas públicas venezuelanas, que estas apresentassem títulos de dívida GES em vez de depósitos cativos em dinheiro a favor do banco”. Com que consequências? “Esta perspectiva depravava a lógica inerente a actividade bancária, que, assim, via escoada liquidez de depósitos, necessária ao desenvolvimento do seu negócio de concessão de crédito a clientes, em benefício do financiamento do GES não financeiro, accionista de referência do banco. Esta realidade, por outro lado, expunha a actividade de crédito do BES a qualidade dos colaterais recebidos, que, no caso da ESI, como se viu, estava comprometida”, lê-se no despacho.

Se Salgado foi, alegadamente, o responsável último, quem concretizou esse tipo de actuação foram quadros que a ele estavam subordinados.

De acordo como o Ministério Público, as indicações eram dadas por Amílcar Morais Pires, braço direito do ex-presidente do BES, por Isabel Almeida, directora do Departamento Financeiro, Mercados e Estudos (DMFE), e por José Manuel Espírito Santo, que tinha a tutela da sucursal da zona franca e que era “responsável por avalizar as propostas” que esta unidade da Madeira “apresentava à apreciação do CDFC [conselho diário e financeiro de crédito] para concessão de crédito documentário”. As orientações eram alegadamente dadas a João Alexandre Silva, director-geral da sucursal da Madeira, ao seu adjunto, Paulo Jorge, e “aos administradores com assento” no conselho diário e financeiro de crédito do BES.

Articulação interna

“Na corrente actividade de concessão de crédito, o BES exigia a prestação de garantias, colaterais, ou a mobilização de dinheiro em contas caucionadas. Tal como no demais negócio das entidades corporativas sul-americanas, para o acompanhamento destes concretos clientes na actividade do crédito documentário, Ricardo Salgado posicionou João Alexandre Silva, o adjunto deste, Paulo Jorge, e a equipa destes dependente, em acumulação de funções, na área da banca internacional e dos grandes negócios internacionais do BES, em Lisboa”. As questões de tesouraria relacionadas com esta actividade eram “articuladas com a equipa de Isabel Almeida”, no departamento financeiro, diz o Ministério Público.

Apesar de a sucursal da zona franca ter ficado mais conhecida na recta final, a sua história é longa. A SFE foi criada em Março de 1990 e, ao longo dos anos, assumiu o atendimento de clientes privados de África, América Latina e Europa. Actuava com dois tipos de clientes: os privados, a quem o BES prestava serviços “associados a poupança e ao investimento em produtos financeiros”; e os clientes empresariais, “caracterizados pelas operações típicas das empresas comerciais e industriais (recebimentos de clientes, pagamentos a fornecedores, operações de trade finance, etc.)”.

Em 2013, quando o BES constituiu o Departamento de International Banking and Private Banking (DIBPB), os funcionários da SFE da Madeira “passaram a estar igualmente afectos” a esse novo departamento, que assumia o negócio internacional do BES e acompanhava os “clientes institucionais e de outra dimensão que por razões fiscais foram domiciliados na Sucursal da Madeira, designadamente clientes oriundos da América do Sul e Angola”, refere o despacho do DCIAP.

Na decisão agora conhecida, centrada no processo do aumento de capital do BES realizado entre Maio e Junho de 2014, o Ministério Público acusou Ricardo Salgado, José Manuel Espírito Santo, Amílcar Pires, Rui Silveira e Isabel Almeida da co-autoria dos crimes de manipulação do mercado e burla qualificada (Publico, texto do jornalista Pedro Crisóstomo)

Sem comentários: