O Ministério das Finanças calcula em €1,2 mil milhões a despesa aprovada pelo anterior Governo, entre 7 de novembro e o início de abril, sem ter acautelado a afetação desses fundos no Orçamento: algo ilegal e com consequências criminais. Os especialistas em finanças públicas ouvidos pelo Expresso encaram o montante com estranheza, dizem que o debate político se sobrepôs ao técnico e preferem esperar para ver. O Governo mal entrou em funções e partiu com artilharia pesada para cima do seu antecessor. E onde dói mais: no legado de “contas certas” muito estimado por António Costa. Joaquim Miranda Sarmento, ministro das Finanças da AD, fez, na semana passada, diversas acusações ao governo anterior - e graves. Uma das mais notadas foi o anúncio de que o executivo liderado por António Costa tinha aprovado, entre a demissão e a entrada do novo executivo, várias medidas sem cabimento orçamental. Isto é, decretara medidas sem ter reservado as quantias necessárias no orçamento. Um dia depois, o jornal Eco indicava dados mais concretos avançados por fonte governamental. O total de despesas aprovadas e não-cabimentadas do anterior Governo detetadas pelo Executivo atual ascendia, a 3 de maio, aos €1204 milhões, dizendo respeito a 40 resoluções e decretos aprovados entre a demissão de António Costa, a 7 de novembro, e a tomada de posse do novo governo.
Esta terça-feira, num evento da Associação de Instituições de Crédito Especializado, Joaquim Miranda Sarmento, citado pelo Jornal de Negócios, reiterou as contas apresentadas na semana passada. Englobando despesas extraordinárias, o uso de metade da dotação provisional, e as medidas sem cabimentação, "se somarmos estas três parcelas - €1080 milhões de despesas extraordinárias, €240 milhões da reserva provisional e €1200 milhões de resoluções do Conselho de Ministros, estamos a falar de €2,5 mil milhões" em despesa adicional decretada pelo Executivo PS.
A aprovação de despesas extraordinárias, financiadas no quadro dos ministérios, e o uso da reserva do Ministério das Finanças são mecanismos de gestão orçamental usados frequentemente pelos sucessivos governos. Mas o elemento mais “caro”, o da despesa não cabimentada, desperta várias dúvidas. O que significam, na prática, estes €1,2 mil milhões? Segundo Miranda Sarmento, trata-se de “promessas que o [anterior] Governo fez”, mas sem “acautelar a correspondente verba financeira”.
Em suma, gastos aprovados pelo anterior Executivo, mas não declarados oficialmente. O que constitui uma infração que responsabiliza “política, financeira, civil e criminalmente”, segundo a Lei de Enquadramento Orçamental, tanto os responsáveis políticos como os infratores ao nível das instituições. Estará Medina em maus lençóis?
SÉRIAS DÚVIDAS
Os especialistas ouvidos pelo Expresso duvidam que assim seja, dados os controlos existentes para a despesa do Estado. Preferem aguardar pela divulgação de mais dados pelas Finanças para fazerem o seu juízo - mas sugerem que a questão é principalmente política e não técnica.
Para que se perceba como funciona o processo, imaginemos uma decisão do Conselho de Ministros que visa a aquisição de vacinas contra a covid-19. No texto do diploma está definido o montante, a rubrica de onde virão esses fundos, e a entidade que irá executar a despesa.
Definidos estes critérios, são instituições específicas aquelas que têm responsabilidade de solicitar o uso das verbas. No caso de vacinas para a covid-19, seria a Direção-Geral de Saúde (DGS) quem teria de iniciar o processo de cabimentação orçamental. Este processo consiste no pedido, através de uma plataforma informática da Direção-Geral do Orçamento (DGO), de alocação da despesa. Só depois de aprovada é que pode ser executada, isto é, só com o “ok” da DGO é que o gasto pode concretizar-se.
A suposta existência de montantes já despendidos sem a tal cabimentação orçamental (e que ainda por cima ascendem a valores que não são propriamente diminutos) é um detalhe que faz com que os especialistas em finanças públicas ouvidos pelo Expresso torçam o nariz à narrativa do Governo.
Isto porque, como já dito, qualquer despesa prevista nas resoluções de Conselho de Ministros ou nos decretos-leis só é executada depois do pedido formal à DGO – isto é, depois da tal cabimentação. Se esse pedido não foi feito, as verbas não são passíveis de ser utilizadas – o que significa que a despesa adicional aprovada pelo Governo ainda está no plano potencial. O Executivo até pode ter assinado a lei, mas o dinheiro ainda não pode ser, nem foi, gasto.
NÃO SE SABE O QUE SE GASTOU
De acordo com esta interpretação, se os €1,2 mil milhões em medidas não tiveram, de facto, cabimentação orçamental, é o mesmo que dizer que não foram gastos. O Governo atual pode simplesmente, se assim o desejar, revogar as resoluções e os decretos-leis cuja despesa ainda não foi executada, sublinham os especialistas ouvidos pelo Expresso.
Há também o caso de algumas resoluções preverem especificamente a execução da despesa até datas-limite, como 31 de março. Se esse gasto foi efetivamente feito, significa que passou pelo crivo prévio da DGO. Ergo, estava devidamente cabimentada.
O Ministério das Finanças não respondeu às perguntas enviadas pelo Expresso que visavam esclarecer vários pontos ainda sem explicação. Se nenhuma despesa pública pode ser paga sem haver previamente cabimento orçamental, como é que podemos interpretar as palavras do Ministro das Finanças, que alega falta dessa mesma cabimentação orçamental? Se, de facto, a despesa tiver sido executada sem ter sido cabimentada, isto significa que há irregularidades administrativas em todas as instituições do Estado envolvidas, com consequências criminais? E, dos €1,2 mil milhões em despesa não-cabimentada, estes montantes foram todos executados entre 7 de novembro e 2 de abril? O gabinete do ministro manteve o silêncio.
Para ajudar a esclarecer esta confusão, o Expresso contactou as duas entidades fiscalizadoras das contas do Estado, o Conselho das Finanças Públicas (CFP) e a Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO), certamente mais capazes de dizer do que se trata esta despesa não cabimentada. As duas instituições, porém, não se mostraram disponíveis para prestar declarações.
FUNDO DE MANEIO
As resoluções e decretos-leis analisados pelo Expresso, aprovados entre a demissão e a cessação de funções, dizem respeito a medidas variadas dos diferentes ministérios: trata-se de decisões tão diferentes como aprovações de compra de material para as fronteiras aeroportuárias, ou autorizações de despesa para a aquisição de ambulâncias para o INEM.
O texto da lei define especificamente quais os ministérios que financiarão essas medidas e a natureza dos fundos (orçamento setorial, fundos europeus, cativações). Outras despesas, como a contribuição de €100 milhões para a compra de munições para a Ucrânia ou €10 milhões de contribuição voluntária para apoio humanitário na Faixa de Gaza, por serem de caráter único, sugerem outras formas de financiamento.
Nestes dois casos particulares, o Governo definiu que o dinheiro sairia do “fundo de maneio” das Finanças: a tal dotação provisional que Miranda Sarmento também focou na conferência de Conselho de Ministros. De acordo com o Orçamento do Estado (OE) de 2024, esta dotação provisional estava definida nos €500 milhões.
Só sobrarão, segundo o Governo, €260 milhões. Isto porque os seus antecessores terão comprometido “parte substancial das reservas do Ministério das Finanças” já no primeiro trimestre, usadas “normalmente a partir do verão para fazer face a situações inesperadas ou a despesa que não estava prevista”, alegou Miranda Sarmento. Os gabinetes ministeriais do governo Costa terão aprovado, acusou o ministro, “um conjunto de despesa que foi autorizada nos últimos três meses usando reservas que normalmente o Ministério das Finanças usa a partir do verão" (Expresso, texto do jornalista Pedro Carreira Garcia)
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