sábado, maio 25, 2024

Dubai Unlocked: fuga de informação revela como é fácil comprar casas nos Emirados com dinheiro sujo

Uma investigação liderada pelo consórcio OCCRP e pelo jornal norueguês E24, a partir de uma fuga de informação sobre centenas de milhares de imóveis no Dubai, revela como centenas de criminosos e indivíduos com ligações políticas suspeitas têm escolhido a cidade mais cosmopolita dos Emirados para investir o seu dinheiro e para residir. O exemplo de como as autoridades do Dubai são tolerantes na forma como acolhem residentes do mundo inteiro não podia ser mais emblemático. O inquilino de um dos apartamentos do 37.º andar do Burj Khalifa, o arranha-céus mais alto do mundo, é Dženis Kadrić, um alegado membro de um cartel criminoso na Bósnia. O seu senhorio, por sua vez, é Candido Nsue Okomo, ex-CEO da companhia petrolífera estatal da Guiné Equatorial, cunhado do presidente Teodoro Obiang e suspeito de lavagem de dinheiro em Espanha.

Como eles, há muitos a residir ou donos de casas na cidade mais famosa e vibrante dos Emirados. Numa investigação liderada ao longo de meses pelo consórcio OCCRP e pelo jornal económico norueguês E24, com a colaboração de mais de 70 media em todo o mundo, incluindo o Expresso, foram identificados quase 200 proprietários de imóveis no Dubai com perfis questionáveis, quer pelas ligações políticas de muitos deles, quer por terem cometido crimes ou serem suspeitos de os cometer na Europa, em África e noutros continentes.

Batizado de Dubai Unlocked, o projeto tem como base uma fuga de informação relacionada com o registo predial de centenas de milhares de propriedades no Dubai entre 2020 e 2022 e foi lançado esta terça-feira. Dezenas de histórias irão ser publicadas pelos ‘media’ parceiros do OCCRP e do E24 durante esta semana, incluindo pelo Expresso.

A fuga foi obtida originalmente pelo Centro de Estudos Avançados de Defesa (C4ADS), uma organização sem fins lucrativos com sede em Washington, que investiga crimes e conflitos internacionais. Os dados foram depois partilhados com o jornal financeiro norueguês E24 e com o OCCRP (Organized Crime and Corruption Reporting Project), que coordenaram a investigação agora revelada ao longo dos últimos meses.

“Os atores corruptos e os indivíduos politicamente expostos que evitam a responsabilização pública utilizam jurisdições secretas como os Emirados Árabes Unidos para esconder bens à vista de todos”, lamenta Maria Giuditta Borselli, gestora da C4ADS. Denise Sprimont-Vasquez, uma outra gestora desta organização, sublinha que “este tipo de investigações é fundamental para compreender como podemos reforçar a transparência nos casos de governos que permitem atividades ilícitas”.

Kadrić, o inquilino do 37.º andar do Burj Khalifa, foi preso preventivamente em fevereiro na Bósnia por suspeitas de tráfico de droga, associação criminosa e lavagem de dinheiro, mas foi libertado já este mês, apesar de continuar sob investigação.

Outros exemplos de indivíduos perseguidos pela justiça incluem Shwan Mohammad Almulla, um empresário britânico de origem iraquiana indiciado nos Estados Unidos num caso de corrupção ligado a obras públicas no Iraque, e proprietário de um apartamento no Burj Lake Hotel; o holandês Joseph Johannes Leijdekkers, que foi adicionado às listas dos mais procurados dos Países Baixos e da UE em março de 2022 pela sua alegada ligação ao narcotráfico, sendo dono de um apartamento numa das ilhas artificiais em forma de palmeira do Dubai; Danilo Santana Gouveia, empresário brasileiro acusado por fraude, associação criminosa e lavagem de dinheiro em Salvador da Baía, por ter montado um esquema em pirâmide no Brasil com pagamentos em Bitcoin.

Dubaiano, como é também conhecido, foi alvo de um mandado internacional de detenção, emitido pelo juiz de instrução do caso em novembro de 2023, e chegou a estar temporariamente detido nos Emirados, mas as autoridades locais exigiram uma série de burocracia que a justiça brasileira não conseguiu cumprir. Proprietário de uma casa na Palm Tower Dubai, quando saiu da prisão continuou a viver na cidade e começou a dedicar-se à música.

ENTRE O DISCURSO BONITO E A REALIDADE

Nenhum destes quatro residentes e proprietários esteve disponível para falar, mas os dados disponíveis na fuga de informação revelam que não estão em risco no Dubai. Até agora, a investigação coordenada pelo OCCRP e pelo E24 conseguiu confirmar informações sobre 42 proprietários de imóveis que estão sancionados noutros países, 34 criminosos, 31 suspeitos de terem cometidos crimes e 74 indivíduos com ligações políticas que merecem ser olhadas com atenção por poderem envolver algum tipo de conflito de interesses.

As autoridades dos EAU não estiveram disponíveis para responder a uma longa lista de perguntas enviadas pelos jornalistas, mas as embaixadas no Reino Unido e na Noruega enviaram um comentário, assegurando que o país “leva extremamente a sério o seu papel na proteção da integridade do sistema financeiro global”.

Segundo esse comunicado, “os EAU trabalham em estreita colaboração com os parceiros internacionais, numa contínua perseguição aos criminosos globais, para desmantelar e impedir todas as formas de financiamento ilícito”, acrescentou o comunicado. “Mais do que nunca, os EAU estão empenhados em prosseguir com estes esforços e ações — hoje e a longo prazo.”

Apesar do aparente empenho demonstrado nestas palavras, não é isso o que a realidade mostra.

Embora haja muitas outras cidades no mundo onde os perseguidos pela justiça e pessoas politicamente expostas podem adquirir património e passar a residir sem grande problema, incluindo em Portugal, o Dubai tem revelado uma capacidade inigualável para atrair esse tipo de perfis.

O seu crescimento acelerado, a obsessão por ter um número cada vez maior de arranha-céus, muito deles de ‘design’ original, e o surgimento de algumas ilhas artificiais que parecem saídas de um sonho, tornaram a cidade muito cobiçada por quem gosta da combinação entre a vida urbana e a praia. Mas nada disso seria suficiente para convencer fugitivos ou condenados noutros países a adquirir imóveis no mais rico e populoso dos emirados. A maior vantagem está no facto de as autoridades locais dificultarem os pedidos de arresto, detenção e extradição.

A POLÍTICA DO BOICOTE

Os EAU não têm tratados de extradição e acordos de cooperação judiciária com a maioria dos países, incluindo Portugal, e as suas respostas aos pedidos de ajuda são contraditórias. Formalmente dizem que estão dispostos a ajudar, mas na prática levantam obstáculos a quase tudo e acabam por boicotar, assim, essa cooperação.

Um exemplo paradigmático dessa postura pouco recetiva a perseguir criminosos ou suspeitos de crimes aconteceu com o caso dos irmãos Gupta, contra o qual existem mandados de detenção e que estão acusados na África do Sul de se terem apropriado de dinheiro público, num processo que envolve o ex-presidente Jacob Zuma.

Apesar de haver um tratado de extradição assinado entre a África do Sul e os EAU, as autoridades no Dubai recusaram entregar no ano passado os irmãos Gupta, causando uma onda de indignação no meio judicial sul-africano, agravada pelo facto de não ter sido dada uma explicação coerente para essa falta de cooperação.

Radha Sirting, uma advogada e ativista de direitos humanos que faz parte da organização não-governamental Detained in Dubai, explica que a lógica das autoridades locais obedece a princípios e interesses que extravasam as regras estabelecidas em acordos de extradição. “A existência desses acordos entre nações não é necessariamente a chave para saber se as pessoas são extraditadas ou não. O que importa é o que o Dubai quer em troca e se essa nação [que faz o pedido] tem algo interessante para trocar.”

O discurso oficial está nos antípodas desta explicação. Sauod Abdulaziz Almutawa, diretor do departamento de crime financeiro da polícia do Dubai, chama atenção para extradições recentes e argumenta que as coisas não são fáceis, porque esses pedidos de extradição têm de passar pelo crivo de tribunais locais e enfrentar, muitas vezes, equipas de advogados competentes e bem pagas.

As regras de prevenção contra o branqueamento de capitais têm melhorado, sobretudo depois de os Emirados terem sido incluídos em 2022 na lista cinzenta do FATF, o Grupo de Ação Financeira Internacional. A verdade é que, em fevereiro deste ano, o FATF elogiou os “progressos significativos” dos EUA e aliviou a pressão sobre o país, tirando-o da lista cinzenta.

Mas isso não quer dizer que o mercado imobiliário tenha acompanhado esse otimismo.

Numa visita feita de forma encoberta por repórteres da televisão sueca SVT para a investigação Dubai Unlocked a uma das maiores empresas de projetos imobiliários da cidade, a Damac, um agente comercial disse que poderiam comprar o apartamento que andavam à procura com “sacos de notas” ou criptmoedas e que não seriam levantadas questões sobre a origem do dinheiro. “Quem quiser comprar, pode comprar.” Mais tarde, quando a empresa foi contactada formalmente pela equipa de reportagem, um representante da DAMAC disse que os clientes são todos verificados. Não faz parte da política da casa, assegurou ele, recomendar os clientes a comprarem imóveis com dinheiro vivo (Expresso, texto do jornalista Micael Pereira)

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