domingo, setembro 17, 2023

Depois de quatro maiorias, Cavaco é um notável com escasso peso político

No momento em que o antigo primeiro-ministro lança um livro sobre a "arte de governar", António Costa Pinto, Paula do Espírito Santo e Adelino Maltez traçam um retrato do também ex-Presidente da República, que ainda reserva incertezas para o futuro. O peso de Aníbal Cavaco Silva na atualidade é "naturalmente muito escasso". O ex-Presidente da República "é um político a chegar aos 90 anos [tem atualmente 84 anos], cuja influência, mesmo no seu próprio partido, é diminuta", considera o politólogo António Costa Pinto. Com quatro maiorias absolutas - duas como Presidente da República e duas como chefe do Governo -, uma maioria relativa e uma derrota em eleições presidenciais, contra Jorge Sampaio, o também antigo líder do PSD é visto por especialistas como uma figura incontornável que contribuiu para a construção do regime democrático e com ligações indeléveis à integração de Portugal na União Europeia. Mas é também um vulto de um passado que não deve ser esquecido.

O Primeiro-Ministro e a Arte de Governar. É este o título do livro de Cavaco Silva que esta semana chegou aos escaparates, sob a forma de recomendação e de memória para as gerações futuras. A mensagem é clara e, como o próprio autor confessa na contracapa, é com o futuro dos jovens que está "preocupado". Daí também evocar o "cinquentenário da Revolução do 25 de Abril, momento fundacional da nossa democracia".

"Espremido, não ficará na antologia dos breviários de príncipes ou dos teóricos políticos. O que ele costuma dizer são banalidades em tom épico", antecipa ao DN o professor de Ciência Política Adelino Maltez, sobre a mais recente obra de Cavaco Silva, que admite ainda não ter lido. Já sobre a preocupação do antigo governante com o futuro dos jovens, o politólogo socorre-se do passado e diz que "é marketing, pura e simplesmente. Portanto, mesmo que ele não dissesse nada, dizia muito", adianta. No entanto, para Adelino Maltez, Cavaco Silva e Mário Soares são "os dois principais responsáveis pelo regime [democrático], portanto, chegará sempre" às próximas gerações. "É típico do professor Cavaco Silva. Quando escreve uma coisa, aquilo está sempre bem revisto, mas acaba por ser um exercício de estilo, não é uma doutrina política, é uma sugestão a dizer que "no meu tempo eu era um homem justo e de grande alcance. Jovens, reparem que os que agora estão no poder não são como eu era". Conversa, conclui.

"Os políticos gostam sempre de dar uma imagem de serem renovadores, influentes, de terem impacto na juventude, e esse é um aspeto que é uma aspiração", destaca a professora de ciência política Paula do Espírito Santo, salvaguardando que "na maior parte dos casos não será fácil, particularmente para um político que não está em atividade, ter essa influência". Neste sentido, Cavaco Silva lançar agora um livro sobre a sua experiência de governação e dirigido aos jovens, continua a politóloga, é "um argumento de alguma reflexão, porque não terá efeitos na política ativa, mas será mais em torno daquilo que ele entende que o seu discurso poderia ser e não em função daquilo que é efetivamente. Porque o principal público da sua obra não serão os jovens, a menos que esteja a falar para os jovens mais politizados e particularmente do espetro político da Direita", analisa a investigadora.

A mesma ideia é corroborada por António Costa Pinto. "Sob o ponto de vista da elite universitária culta, [a memória de Cavaco Silva] chegará com certeza. Até porque qualquer estudante de ciência política, por exemplo, que estude a democracia portuguesa, terá que passar por essas obras. Mas não vale a pena pensar que vai ser viral nas redes sociais. É normal, o senhor tem 90 anos", considera.

Uma sala cheia

Na sexta-feira passada, o Grémio Literário, em Lisboa, encheu-se com vultos da Direita para receber a última obra de Cavaco Silva. Na fila da frente, duas personalidades sociais-democratas em destaque: o líder do partido, Luís Montenegro, e o presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas. Ao lado deles, em representação do marido, Manuela Eanes assinalava a importância do primeiro Presidente da República eleito por sufrágio universal, em democracia. Porém, o próprio Ramalho Eanes não esteve presente. As outras cadeiras estavam ocupadas por figuras do PSD ou da Direita em geral, como os antigos governantes Manuela Ferreira Leite e Eduardo Catroga. Em pé, num canto, o secretário-geral do PSD, Hugo Soares, de 40 anos, mostrava que ainda há juventude no partido. As várias cadeiras de veludo cumpriram a função de sentar os notáveis do PSD, que não são tão jovens. O antigo primeiro-ministro José Manuel Durão Barroso, que apresentou o livro, atacou aqueles que o criticaram mesmo antes de o lerem. "Pode ser a palavra inveja quando se está perante alguém que conseguiu os mais espetaculares resultados em democracia, mas penso que é mais profundo do que isso, e digo-o como uma certa pena. Penso que em Portugal temos uma certa Esquerda que é muito dogmática, que é intolerante e preconceituosa", afirmou. A mensagem ainda foi estendida a "uma certa Direita, com falta de inteligência e de cultura política, que alimenta o complexo de superioridade de uma certa Esquerda", disse, sem entrar em explicações.

O académico na política

Apesar do percurso único na política, Cavaco Silva foi desde o início um académico. "Em 10 anos, as duas maiorias absolutas representam, em primeiro lugar, um membro da elite económica que, associado a um professor de economia no principal partido de Centro-Direita, é marcante na vida política", lembra António Costa Pinto, salientando que Cavaco Silva "é primeiro-ministro num período duro da economia e da mudança social em Portugal, com a adesão à União Europeia, com as grandes mudanças na cena política europeia, na modernização das relações Estado-sociedade em Portugal". Portanto, continua o professor de ciência política, ao escrever este livro "Cavaco Silva tem, e pelo que conheço pessoalmente, uma cultura política muito significativa, acima da média da elite política portuguesa. O que fez com que ele se destacasse é a chegada ao poder, já numa dinâmica de crise. Mas isto explica um pouco por que escreve estes livros, e a forma como escreveu as memórias. Isso remete, evidentemente, para alguém que pertence de facto à elite técnico-universitária do país", remata.

Sobre o futuro, Paula do Espírito Santos acredita que Cavaco "terá sempre um papel, como é habitualmente o dos ex-governantes, de influência do ponto de vista da reflexão, dos alertas". Cavaco Silva é membro do conselho de Estado, o órgão consultivo do Presidente da República. É nestes termos que ainda ocupa um cargo político, não vinculativo. Porém, realça Adelino Maltez, "o professor Cavaco Silva não precisa de órgãos. Ele fala e ouvem-no. É necessário que os patriarcas falem. Em democracia, os patriarcas falam como patriarcas, já não conduzem o povo. Já entregaram o bordão. É um testemunho vivo", conclui o politólogo.

De governante a Presidente

A primeira governação

Cavaco Silva ganhou as suas primeiras eleições legislativas em 1985, com maioria relativa, no mesmo ano em que foi eleito presidente do PSD, no congresso do partido na Figueira da Foz. O seu primeiro Governo duraria dois anos, até 1987, quando uma moção de censura do Partido Renovador Democrático (PRD) o derrubou.

A primeira maioria

Em 1987, o Presidente da República da altura, Mário Soares, convocou eleições antecipadas e o PSD, ainda sob a liderança de Cavaco, ganhou as legislativas com maioria absoluta (com mais de 50% dos votos), um resultado inédito na democracia. Ficaria para a história como o XI Governo Constitucional.

Europa reafirmada

Em 1991, o PSD repetiria o resultado das legislativas anteriores, com uma maioria absoluta. Os XI e XII Governos Constitucionais, liderados por Cavaco Silva, até 1995, são marcados pela integração de Portugal na Europa, na altura ainda como uma aliança económica, a Comunidade Económica Europeia (CEE). Foi na segunda governação de Cavaco que entraram em vigor mudanças fiscais, como a introdução do IRS e do IRC. Em 1992, Portugal assumiu pela primeira vez a presidência da Comunidade Europeia, tendo Cavaco Silva discursado na assinatura do Tratado de Maastricht, o documento fundador da União Europeia. Foi neste período que a televisão abriu as portas à iniciativa privada.

As presidências

Em 1996, Cavaco candidata-se pela primeira vez à Presidência da República, mas sai derrotado, com 47% dos votos, contra Jorge Sampaio. Voltaria a candidatar-se em 2006, ano em que foi eleito pela primeira vez Chefe de Estado. Repetiria o feito em 2011. É membro do Conselho de Estado desde 2016, quando passou o testemunho a Marcelo Rebelo de Sousa (DN-Lisboa, texto do jornalista Vítor Moita Cordeiro)

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