domingo, novembro 17, 2019

Saúde: Sintomas de um SNS doente

Governo abriu 866 lugares em hospitais e 398 em unidades de cuidados primários em todo o país no primeiro concurso do ano, em maio, e 345 (27%) ficaram vagos por falta de candidatos. Especialista há um mês e posto a chefiar equipa, médicos de família nas Urgências infantis, pediatra com 100 casos num dia, crise de choro por medo de errar doses por cansaço ou clínico que receita paracetamol e o doente morre são manifestações adversas de um mal maior: uma medicina posta a soro. O Serviço Nacional de Saúde (SNS) está severamente doente e sem tratamento imediato. Os sintomas são evidentes da gravidade do quadro clínico: metade dos médicos tem mais de 50 anos e, por isso, o direito de não fazer escalas nas Urgências e sobram lugares em hospitais e centros de saúde onde ninguém quer trabalhar: 30% das vagas estão por preencher. Quem fica vai aguentando cada vez menos e os episódios de falência são cada vez mais.

PEDIATRA VÊ 70 CRIANÇAS ENTRE AS 8H E AS 20H
O fecho no Hospital Garcia de Orta, em Almada, das Urgências pediátricas todas as noites a partir da próxima segunda-feira, e por meio ano, é uma das recentes manifestações agudas da doença do SNS. “O HGO só tem quatro pediatras que fazem urgência à noite e daqui a seis meses pode não ter nenhum. Uma médica viu 70 crianças entre as oito e as 20 horas e chorava porque não conseguia calcular com segurança a quantidade das drogas a administrar”, conta uma médica amiga da pediatra. “Na maioria das situações são ‘ranhocas’, mas se aparece um caso grave tem-se medo de falhar.”
O hospital da Margem Sul perdeu 13 pediatras em pouco mais de um ano e assim deverá ficar, pois nem as quatro vagas abertas no último concurso, antes do verão, preencheu. E não foi o único. Do total de 18 lugares para pediatras oferecidos em hospitais de Lisboa e Vale Tejo, seis ficaram vazios. No resto do país, das 33 ofertas sete não atraíram candidatos.
Mas a falta de atratividade não ficou pela área da capital. Dados da Administração Central do Sistema de Saúde mostram que no último concurso não foram ocupados cerca de 30% dos postos de trabalho para jovens especialistas nos hospitais. Do total de 866 vagas, 252 assim continuaram: vazias. No Alentejo, a falta de interesse atingiu mesmo os 85%, com 13 escolhas em 86 ofertas, e 50% no Algarve. “A obstetrícia tem mais de 50% das escalas com médicos contratados a 50 euros à hora e ainda num fim de semana recente não havia oftalmologia nem ortopedia”, explica um médico do centro hospitalar algarvio. E denuncia: “Na pediatria, por vezes as pessoas pensam que estão a ser atendidas por um pediatra e é um especialista em medicina familiar.”
“NÃO NOS RESPONSABILIZAMOS PELO QUE OCORRA”
“Nestes hospitais mais pequenos, o que nos oferecem é mais trabalho e temos sempre muita dificuldade em garantir as escalas. Neste momento, cirurgia está abaixo (sem os médicos necessários) e este ano já tivemos de fechar a maternidade durante seis dias por falhas na obstetrícia”, conta um cirurgião da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo. Mais acima, no Litoral Alentejano, não são invulgares notas de chefes de equipa da Urgência como a que foi afixada na passada terça-feira: “A equipa encontra-se fortemente desfalcada a partir das 20 horas, pelo que os tempos de espera serão largamente ultrapassados. Não nos responsabilizamos pelo que possa ocorrer.”
As declarações de escusa de responsabilidade face à falta de segurança na prestação de cuidados, quase sempre por falta de profissionais, começaram por ser estranhas mas agora entranharam-se no SNS, mesmo nos grandes hospitais — recorde-se o caso, no início do mês, de 21 chefes de equipa da Urgência do Santa Maria e do Pulido Valente, do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte. Por exemplo, só na região Centro, a Ordem dos Médicos recebeu este ano 244 documentos, mais 168 do que em todo o ano 2018. “Sempre que estamos dois especialistas de banco durante a semana ou três nos fins de semana entregamos a declaração. E acontece muitas vezes”, diz uma anestesista do Hospital Fernando Fonseca, vulgo Amadora-Sintra.
ANESTESIA atrasou-se. DOENTE MORREU
Uma equipa desfalcada não se resume só a mais trabalho, pode traduzir-se em menos vida. “Os dois anestesistas servem para ir à ‘gastro’ se o doente está a sangrar, para tirar a dor nos enfartes, para ir ao recobro, para a Urgência ou para o bloco de partos. Este ano já tivemos duas situações em que a equipa de anestesia não conseguiu ajudar a cirurgia, a entubar por exemplo, e o doente morreu”, denuncia o mesmo médico.
E recorrer a prestadores de serviços indiferenciados para ter mais batas brancas nas Urgências pode ter efeitos irreversíveis: “A formação de alguns colegas é muito fraca e morrem pessoas. Ainda há pouco tempo, uma senhora foi medicada na Urgência com paracetamol e um dia depois entrou no bloco com uma isquemia intestinal e morreu”, conta um especialista do Amadora-Sintra.
Na grande Lisboa, 50% dos obstetras só fazem privado
Entre as especialidades hospitalares mais deficitárias, tanto em número de médicos como de vagas sem interessados, estão medicina interna (em 159 lugares, 36 não foram escolhidos), obstetrícia (com 17 das 31 vagas em aberto) ou anestesiologia (dos 59 lugares em todo o país, 23 ficaram livres). “O Hospital de Santarém tem mais obstetras no quadro do que o São Francisco Xavier (HSFX) porque nesta área há mais parcerias público-privadas (PPP) e privados. Mais de metade dos obstetras na Grande Lisboa já só fazem privado e os restantes acumulam”, sublinha um obstetra da unidade junto à capital.
Em Leiria, por exemplo, “há três especialistas em medicina interna na equipa de Urgência para 420 mil habitantes, e em Loures — no Hospital Beatriz Ângelo, uma PPP capaz de pagar melhor — há dez para 370 mil pessoas”, conta um profissional. “Houve momentos em que o chefe de equipa era especialista há um mês, apoiado por dois médicos internos”, denuncia um cirurgião da unidade.
Chefes de equipa em prestação de serviços
Sintoma semelhante manifesta-se na Grande Lisboa. “A Urgência de obstetrícia no HSFX devia ter no mínimo cinco especialistas e nas escalas já só aparecem quatro, que na prática acabam por ser três: dois obstetras e um interno ou um médico indiferenciado. Há chefes de equipa que são prestadores de serviços porque naquela escala são os mais diferenciados. Frequentemente, obstetras com ano e meio de especialista são chefes de equipa, aconteceu no verão quando a maioria das Urgências de obstetrícia de Lisboa estava em contingência”, denuncia um obstetra do hospital. E acrescenta: “Ainda esta semana, o atendimento urgente esteve um dia nas mãos de uma especialista, dois internos e um clínico geral porque uma segunda obstetra adoeceu.”
Já no Amadora-Sintra fazem prognósticos muito reservados. “A escala de anestesia de dezembro vai ser catastrófica, tal como em meados de agosto. Estamos proibidos de tirar férias mas a equipa só terá dois especialistas e ninguém vai oferecer-se para ir trabalhar, nem mesmo os tarefeiros, porque não aceitam o valor que pagamos.” Mas não só. “A Urgência de obstetrícia está a ser assegurada por médicos com mais de 55 anos, e se não o fizessem colapsaria como a pediatria do Garcia de Orta.”
A administração do Hospital de Setúbal decidiu avançar com um tratamento de choque: obrigar os médicos a fazer horas extraordinárias além do limite legal. “O hospital alega que não consegue contratar mesmo pagando o máximo”, afirma uma cirurgiã. Resultado, os médicos vão trabalhar: “Há uma condicionante deontológica de ir fazer banco para não deixar o colega sozinho.”
Três dias numa maca
O tempo de espera é o maior problema para quem tem de recorrer às Urgências. “Já é normal esperarmos muito. Mas nos picos de gripe é comum esperar 16 horas e há quem chegue à urgência, faça triagem e fique dois e três dias numa maca porque não há quartos”, descreve Rui Monteiro, membro do Movimento de Utentes dos Serviços Públicos (MUSP). “As dificuldades sentem-se mais nos grandes hospitais das áreas metropolitanas, mas são transversais ao país, com casos também em Tondela e Portimão, por exemplo.”
“Com o aumento do frio, a situação vai piorar. E nestas alturas assistimos a cenários inaceitáveis, com pessoas a esperar dez ou doze horas, por vezes com problemas respiratórios”, critica Paula Borges, da comissão de utentes de Sintra, lembrando que o Hospital Amadora-Sintra foi pensado para 350 mil utentes, mas é procurado pelo dobro das pessoas.
Para quem vive na Margem Sul, encerrar as Urgências pediátricas do Garcia de Orta, em Almada, significa ter de atravessar a Ponte 25 de Abril para recorrer às Urgências do Santa Maria ou Dona Estefânia. “Ponham-se no lugar de uns pais a terem de ir até Lisboa num momento de aflição. Se alguém apanha trânsito numa emergência, a situação pode ser grave. Não aceitamos que isto aconteça”, afirma José Luís Sales, da comissão de utentes do Seixal. “É preciso lembrar que a maioria das pessoas não tem dinheiro para ir para um hospital privado.” Do caos vivido nas Urgências, também os bombeiros se queixam, devido ao tempo que ficam à porta dos hospitais com as macas retidas por causa da falta de camas. “Enquanto ali estão pode haver outras pessoas a precisar de ajuda”, alerta Jaime Marta Soares, presidente da Liga dos Bombeiros.
Fila de madrugada no centro de saúde
Mas na base do problema, sublinham os utentes, também está a falta de capacidade de resposta dos centros de saúde, que obriga muita gente a recorrer aos hospitais por não ter alternativa. “Não é concebível que nos dias de hoje se vejam filas de espera à porta dos centros de saúde logo de madrugada, com pessoas doentes e sem médico de família à procura de uma consulta ou para pedir um atestado”, descreve Paula Borges.
Na verdade, também os lugares nos cuidados primários têm perdido atratividade. Ao todo, dos 398 lugares para médicos de família abertos no último concurso, em maio, 23% mantiveram-se à espera de clínico. Como no caso das vagas hospitalares, o Alentejo foi a localização mais preterida (76%).
ESPECIALISTAS
- 49% dos médicos têm mais de 50 anos. Por lei, estão dispensados de fazer urgência noturna
- 29% das vagas para médicos ficaram por preencher nos hospitais de todo o país
ESCUSAS E DEMISSÕES
URGÊNCIA PEDIÁTRICA DO GARCIA DE ORTA ENCERRA
O Hospital Garcia de Orta, em Almada, vai deixar de assegurar urgências pediátricas à noite a partir desta segunda-feira. Desde o início do mês que já estavam encerradas ao fim de semana. Em setembro, dez chefes de equipa de urgência ameaçaram demitir-se e, um mês depois, pediram ajuda à Ordem dos Médicos, alertando estar no limite da sua capacidade.
ESCUSA DE 21 CHEFES DO SANTA MARIA
No início do mês, 21 chefes de equipa do Serviço de Urgência do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte, onde se inclui o Santa Maria e Pulido Valente, entregaram escusas de responsabilidade, por não haver “condições para a prestação de cuidados de saúde de qualidade e com a necessária segurança”.
ESCUSA DE OBSTETRAS
Mais de metade dos obstetras do Santa Maria também entregaram pedidos de escusa de responsabilidade em caso de falhas e complicações com grávidas ou bebés durante o passado mês de agosto. A tomada de posição deveu-se à incapacidade de garantir condições mínimas de segurança devido à existência de escalas incompletas em vários dias.
DEMISSÕES NAS URGÊNCIAS EM VISEU
Seis chefes de equipa de Medicina Interna do Serviço de Urgência Polivalente do Hospital de Viseu demitiram-se em maio, alegando não poderem manter a acumulação de funções de chefia com a atividade assistencial. A diretora do hospital garantiu que as demissões não afetaram as urgências e a Ordem dos Médicos acusou o hospital de “esvaziamento” do serviço de Medicina Interna.
SITUAÇÃO INSUSTENTÁVEL NO D. ESTEFÂNIA
Em dezembro de 2018, os dez chefes de equipa da Urgência do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, apresentaram a demissão, considerando “insustentável” a situação do serviço de urgência.
DEMISSÕES EM OBSTETRÍCIA NO AMADORA-SINTRA
Os chefes de equipa de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Amadora-Sintra demitiram-se em agosto de 2018, depois de não terem tido resposta ao pedido de contratação de especialistas.
DEMISSÕES NO SÃO JOSÉ
Chefes de equipa de Medicina e Cirurgia do Hospital São José, em Lisboa, demitiram-se em julho de 2018 em protesto contra a degradação do serviço de urgências, por não reunir “os limites mínimos de segurança aceitáveis”.
FALTA DE RECURSOS NO HOSPITAL DE LEIRIA
O presidente do Centro Hospitalar de Leiria demitiu-se em março devido à falta de recursos. A decisão surgiu depois dos chefes de equipa da urgência de Medicina Interna se terem demitido pela mesma razão (Expresso, textos das jornalistas Vera Lúcia Arreigoso e Raquel Albuquerque)

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