terça-feira, novembro 13, 2012

O que está numa foto: a definição de um casamento moderno

"Quem está a abraçar quem naquela fotografia dos Obamas que se tornou viral na noite das eleições? A imagem, tirada de baixo para cima e isolando o casal contra um céu nublado, mostra o Presidente abraçado à sua mulher num comício de campanha em Agosto. A primeira-dama é vista de costas, envolvida nos braços do Presidente, que tem os olhos fechados. Divulgada pela conta de Twitter do Presidente na noite de terça-feira, pouco tempo depois das cadeias noticiosas declararem Obama o vencedor da eleição, a fotografia foi imediatamente partilhada por centenas de milhares de pessoas, fazendo dela a imagem mais popular na história do Twitter e gerando uma onda de amor através de uma série de programas das redes sociais.
A fotografia tem todos os ingredientes genéricos de uma imagem política de sucesso. Com o seu céu cinzento e temperamental, encapsula o dramatismo que muitos apoiantes do Presidente Obama sentiram na noite de terça-feira: os Obamas sobreviveram à tempestade. A imagem também alimenta o afecto, por vezes quase um culto, que muitos americanos sentem pelo casal. O facto de se ter multiplicado nas redes sociais normalmente utilizadas para manter o contacto com a família e os amigos, oferecia uma ilusão de intimidade com a família presidencial, como as fotografias das filhas de Obama, Sasha e Malia, ou do cão da família Bo que tanto comovem os mesmos receptores emocionais. Para os democratas, tem ainda uma função alegórica: a ligação amorosa entre Barack e Michelle simboliza uma sociedade saudável. Para os afro-americanos, acrescenta mais uma peça ao repositório de imagens celebratórias do sucesso dos Obamas, por oposição à frequente diabolização das famílias negras supostamente disfuncionais na cultura popular.
Mas a fotografia tem uma notável mensagem latente, muito específica. Ao contrário de muitas imagens de casais políticos, em que o marido reclama a sua mulher num gesto simbolicamente possessivo - tocando-lhe no ombro, levantando a sua mão ou beijando-a -, o abraço entre estas duas pessoas parece mútuo. A primeira-dama é, entre muitas outras coisas, uma mulher alta, famosa pelos seus músculos tonificados, e nesta imagem, o abraço é tanto dela como dele. O Presidente parece precisar deste abraço, parece quase dependente e até vulnerável. Os obrigatórios sinais masculinos de liderança - determinação, auto-suficiência e equanimidade emocional - dissolvem-se, obliterados pela comunhão daquelas duas pessoas perdidas no seu próprio mundo.
É impossível conhecer a realidade por detrás desta imagem, se o Presidente e a primeira-dama estão realmente apaixonados da forma que a fotografia sugere. Talvez esta seja apenas mais uma excelente variação da cuidadosa encenação do amor que é obrigatória para o sucesso político. Mas, independentemente da realidade, é a variação que é significativa. A fotografia sugere fortemente um ideal de mutualidade no casamento, livre das ideias de posse e obediência que ainda vigoram em algumas religiões profundamente tradicionalistas.
Ainda hoje a retórica política mantém o rasto dessas ideias, mantendo-as vivas. É muito comum, entre políticos, dizer que "a minha mulher foi a melhor escolha que já fiz". George W. Bush adorava esta frase, e Mitt Romney recorreu a uma formulação semelhante para o seu discurso de concessão na madrugada de quarta-feira. À primeira vista, o elogio à "cara-metade" dá ideia de ser uma declaração de algum menosprezo ou desvalorização individual. Mas na realidade reforça a ideia de que o casamento é a escolha pelo homem de uma mulher, e do político como um homem que toma decisões. O casamento é sempre descrito como uma acção no presente do indicativo, com o homem como o sujeito da frase.
As cenas do vídeo do comício em Dubuque, Iowa, onde a fotografia foi tirada, revelam vários dos gestos que descrevemos como manifestações tradicionais de amor pelos políticos: o Presidente inclina-se para um beijo, agarra Michelle pelo ombro, caminha de mãos dadas. Mas do espólio (seguramente) de milhares de imagens dos dois juntos, o Presidente escolheu esta fotografia única para o seu Twitter, disseminando uma imagem que não enfatiza nem o poder do homem nem a beleza da mulher. O facto de a imagem se ter tornado viral mostra claramente como ela foi absorvida pelas pessoas, como ela representa um ideal mais moderno de genuína igualdade nas relações emocionais.
E que esta imagem se tenha tornado viral na mesma noite que os eleitores de quatro estados decidiram quebrar o padrão de voto contra o casamento gay e apoiar a igualdade para os casais do mesmo sexo pode não ser inteiramente acidental. Os opositores do casamento de homossexuais muitas vezes falam na necessidade de "definir" o casamento de acordo com os seus moldes tradicionais, e a ansiedade sobre o casamento gay é frequentemente expressa pelo receio mais vasto de que outras normas e categorias de género, há muito vigentes na sociedade, também venham a ser redefinidas. Os autores conservadores produziram livros que condenam a feminização dos machos americanos, descrevendo os homens como uma espécie em risco de extinção.
A fotografia dos Obamas revela uma outra realidade, que poderia ser chamada das possibilidades ilimitadas da verdadeira reciprocidade, de um casamento que desafia as definições mais rígidas. O casamento dos Obamas encanta e atrai tanta gente porque parece tão confortável que ninguém está preocupado com quem usa as calças lá em casa - e essa é a realidade de muitos dos casamentos felizes. Num casamento saudável, os parceiros não interpretam simplesmente os papéis tradicionais do seu género, reproduzindo a trama de obediência e fidelidade: inventam os seus próprios papéis da maneira que melhor serve o interesse de ambos. O casamento é improvisação, e cada caso é um caso único. A variedade abunda, e as pessoas adaptam-se.
Entre as muitas coisas positivas que advêm da maior aceitação do casamento gay pela sociedade está um benefício extraordinário para os homens heterossexuais. Os rigores da masculinidade vão seguramente esbater-se à medida que se enfraquece o medo da homossexualidade, deixando mais espaço para que os homens individualmente definam as suas próprias noções de masculinidade. O facto de esta foto ser tão popular neste momento particular da história indica que ainda vamos analisar as implicações culturais mais vastas desta eleição por muito tempo(texto de Philip Kennicott, publicado no PÚBLICO/The Washington Post, com a devida vénia)