"O advogado norte-americano Lee Buchheit começou a reestruturar dívidas de Estados no fim dos anos 70, na América Latina. Para ele, não é só um trabalho: envolve-se emocionalmente. Os adversários dizem que ele é brilhante. E brutal. Num dia quente de Julho de 2011, Lee C. Buchheit embarcou numa nova aventura. Tinha recebido um telefonema do ministro das Finanças grego, Evangelos Venizelos, a pedir-lhe que, naquele fim-de-semana, se deslocasse a Washington para conversarem. O famoso advogado, especialista em reestruturação da dívida, adivinhava o tema da conversa. Desde que rebentara a crise soberana, Lee C. Buchheit farejava um novo negócio. Em Julho de 2010, o advogado e outro colega anteciparam a discussão, ao publicar um artigo sobre como a Grécia poderia reestruturar a sua dívida pública. Um ano depois, o ministro grego estava do outro lado do telefone. Hoje, apesar de ter conseguido reduzir em 50% os 206 mil milhões de euros de dívida helénica nas mãos de credores privados, Lee Buchheit considera que a reestruturação ocorreu demasiado tarde, quando a Grécia já tinha a maior fatia da sua dívida nas mãos dos credores oficiais, como a União Europeia (UE), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Central Europeu (BCE). O mesmo é válido, agora, para Portugal. Se o advogado norte-americano fosse consultor do ministro das Finanças português, desaconselharia vivamente que este enveredasse por um perdão da dívida. Mas não exclui que, mais tarde ou mais cedo, Portugal venha a precisar de outra forma de reestruturação: o chamado reprofiling (reescalonamento), que consiste em alongar a maturidade da dívida. Neste caso, dos prazos do empréstimo da troika. Formado na Universidade de Cambridge, Lee Buchheit juntou-se à firma de advocacia Cleary Gottlieb Steen & Hamilton em 1976, mesmo a tempo de se estrear na crise da dívida da América Latina. O ministro das Finanças do México foi o primeiro a contratar a firma. Em pouco mais de um ano, os outros países da região - Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia ou Argentina - anunciaram reestruturações da dívida. Com a ajuda de Lee Buchheit, estes Estados apagaram da sua história vários milhares de milhões de euros de dívida. Mas nada o tinha preparado para ver a história dos países emergentes repetir-se nas economias desenvolvidas. O primeiro sinal de alarme surgiu logo em 2010. "Estávamos a observar cuidadosamente o que estava a acontecer e, a certa altura, pareceu-me que a situação iria requerer alguma espécie de tratamento sobre a dívida", conta, em entrevista ao PÚBLICO, numa visita recente a Portugal. Em Julho desse ano, Lee Buchheit assina com o colega da Faculdade de Direito de Duke, Mitu Gulati, o artigo Como reestruturar a dívida grega. Dois meses antes, a Grécia tinha acabado de pedir um resgate de 110 mil milhões de euros à UE e ao FMI. O objectivo era, precisamente, dar dinheiro ao país para pagar aos seus credores a tempo e horas e evitar uma penosa reestruturação. Um ano depois, o objectivo era assumido como falhado e Evangelos Venizelos pedia um encontro em Washington. Em Outubro, o Governo toma a decisão de avançar para uma reestruturação da dívida helénica. O acordo com os credores privados ficou fechado em Março de 2012. Foi a maior reestruturação da História: de uma só vez, foram "perdoados" 103 mil milhões de euros de dívida. "Ter feito isto entre Outubro e Março é impressionante", diz o advogado. Ainda para mais quando, desta vez, o processo era bem mais complexo.
"Já faço isto há 20 anos, por todo o mundo, e o padrão era sempre o mesmo: há o país devedor e os credores, que podem ser detentores de obrigações ou bancos comerciais e, ao lado, havia o FMI a controlar", recorda. Desta vez, porém, além dos credores e do devedor, havia o sector oficial, a chamada troika - a Comissão Europeia (CE), o BCE e o FMI. "Não era uma discussão bilateral, mas uma discussão tripartida e isso torna tudo muito mais complicado, porque nem mesmo os credores oficiais concordavam entre eles", recorda, dando o exemplo do banco central, que sempre se opôs à reestruturação da dívida grega.
O que correu mal?
Lee Buchheit acompanhou o processo da Grécia sobretudo a partir dos EUA, mas teve a seu lado colegas em Londres, Paris, Roma, Frankfurt e um advogado da firma residente em Atenas. Ao contrário do que aconteceu em vários países emergentes, o advogado teve aqui o trabalho facilitado, desde logo porque o instituto responsável pela gestão da dívida grega era muito mais "sofisticado" do que aquilo a que Lee Buchheit estava habituado. "Gostei muito dos gregos", confessa. Hoje, é com semblante triste que constata que, mesmo depois de ter protagonizado a maior reestruturação da dívida da História, a Grécia continua à beira do precipício. Em 2012, o país estará em recessão pelo sexto ano consecutivo e as metas orçamentais acordadas com a troika têm sido sucessivamente furadas. O que correu mal? "Nada correu mal com a reestruturação, a não ser ter acontecido demasiado tarde", resume Lee Buchheit. Em vez de o país e de a zona euro terem optado logo por renegociar a dívida, avançou para um resgate financeiro. "Na altura em que concluíram que este caminho foi o errado, no Verão de 2011, já uma proporção significativa da dívida tinha migrado das mãos dos credores privados para os credores oficiais [UE e FMI], deixando nas mãos dos primeiros apenas 206 mil milhões de euros", explica. Ou seja, mesmo depois do corte de 50% (que, para os credores, significou uma perda nominal perto dos 80%), a Grécia continuava a ter um nível elevado de dívida, junto dos credores públicos. Para Lee Buchheit, a solução seguida pelos líderes europeus para lidar com o problema grego não foi a melhor, muito menos a sugerida pela História. "Nas últimas crises da dívida, não tivemos o sector oficial a pagar aos credores privados, mas sim estes a serem forçados a aceitar perdas", recorda. Por que foi diferente desta vez? Por três razões. Em primeiro lugar, os líderes europeus temiam que, se enveredassem por uma reestruturação da dívida, houvesse um efeito de contágio a outras economias do euro, como Portugal, Irlanda, Espanha ou Itália. Em segundo lugar, qualquer perdão da dívida helénica iria infligir perdas nos balanços dos bancos do Norte da Europa, com destaque para os alemães, os franceses e os holandeses. "Perante isto, os governos só tinham duas opções: ou emprestar dinheiro à Grécia ou recapitalizar os seus bancos. A opção politicamente mais viável era a primeira", refere.
A estes argumentos juntou-se um terceiro, que era esgrimido sobretudo pelo BCE. "Havia a ideia de que a reestruturação da dívida era uma aflição exclusiva dos países emergentes", explica Lee Buchheit. O medo do estigma prevaleceu durante quase dois anos. Agora, com a economia ainda em profunda recessão e uma dívida pública que chegará quase aos 190% do PIB em 2014, há cada vez mais vozes a defender que será necessário superar um novo estigma: uma reestruturação da dívida nas mãos dos credores oficiais. O advogado norte-americano considera provável que tal venha a acontecer. "A questão é saber quando, e isso é mais uma questão política do que financeira", conclui.
O exemplo do Uruguai
Se a Grécia será de novo cliente ou não, Lee Buchheit não sabe. Mas sabe quem são os outros potenciais candidatos: Chipre, Espanha, Itália e Portugal. Só que, aqui, a solução não pode ser uma reestruturação da dívida ao estilo helénico. Ao contrário do que aconteceu no início da crise, neste momento, a dívida destes países está sobretudo nas mãos de bancos e outras instituições financeiras nacionais, devido à fuga dos investidores estrangeiros. "A maior parte dos credores privados portugueses são agora os bancos nacionais, pelo que qualquer reestruturação obrigaria a uma recapitalização da banca", avisa Lee Buchheit. Esta situação é válida, também, para Espanha e Itália. Além disso, o facto de Portugal estar ao abrigo de um resgate fez com que acontecesse aqui o mesmo que na Grécia: o grosso da dívida nacional está progressivamente a transferir-se dos credores privados para os oficiais, devido ao empréstimo da troika. Ou seja, um perdão da dívida nas mãos dos credores privados aliviaria pouco o país. "Não aconselharia o Governo português a avançar com uma reestruturação da dívida neste momento", defende o advogado, destacando que Portugal é beneficiário de um resgate, tem financiamento garantido e, se não conseguir voltar aos mercados no próximo ano, terá um novo programa de ajuda. A solução da reestruturação da dívida tem sido defendida pelos partidos da esquerda e por vários economistas, face à crescente deterioração da economia e ao avolumar do endividamento público. Na última avaliação da troika, o próprio FMI admitiu que os riscos à sustentabilidade da dívida pública nacional tinham aumentado, enquanto a CE considerou a dívida externa insustentável. Qual seria, então, o conselho que Lee Buchheit deixaria a Vítor Gaspar? "Preparar uma estratégia de reescalonamento da dívida, ou seja, alongar os prazos de pagamento", conclui. O advogado recorda que o Governo já deu um primeiro passo nesse sentido, ao realizar uma operação de troca de dívida (cerca de 3,8 mil milhões de euros), que vencia em 2013 por títulos que vencem em 2015. A técnica de reescalonar a dívida foi usada de forma bem-sucedida pelo Uruguai em 2003 e implica, apenas, um prolongamento do prazo de reembolso da dívida. Contudo, Buchheit admite que, à medida que o tempo passa, uma reestruturação deste tipo se torna menos atractiva. É que o Uruguai deu-se ao luxo de alongar a maturidade de títulos que tinham uma taxa de juro muito baixa. No início da crise, os países periféricos estavam numa situação semelhante, mas agora já não estão. A desconfiança dos investidores fez subir as taxas de juro nos mercados e, consequentemente, encareceu o stock de dívida. Ou seja, mesmo prolongando os prazos de pagamento, os países teriam agora de pagar juros mais caros do que antes por essa dívida. Mesmo assim, defende Lee Buchheit, o reescalonamento é a única solução viável para os países periféricos do euro. Qualquer que seja o seu próximo cliente, o advogado sabe que gerir uma reestruturação da dívida é sempre "muito mais do que um trabalho". "Envolvo-me sempre emocionalmente no que faço", confessa, justificando-se com o facto de os processos de reestruturação da dívida se prolongarem, geralmente, por vários anos ou mesmo décadas. "Envolvemo-nos com um país quando ele está no ponto mais baixo da sua vida económica e somos a sua última esperança", resume. Mas, neste processo, também há um preço a pagar: a impopularidade junto dos credores. "Ele é brilhante e brutal", resumiu uma vez Hans Humes, da Greylock Capital Management, um dos detentores de dívida grega que teve de sentar-se à mesa de negociações com Lee Buchheit.
"Espero que [os credores] achem que sou justo e profissional, mas, no final, estamos sempre a falar de perdas financeiras e qualquer pessoa que esteja envolvida em executar isso não será popular", admite o advogado. Mas não deixa de fazer a "defesa da honra": "Não somos nós os autores do problema, a nossa missão é tentar resolvê-lo" (texto dos jornalistas do Publico, Ana Rita Faria e Luís Villalobos, com a devida vénia)