domingo, janeiro 03, 2021

Uma chuva de milhões como vacina para um “vírus estrutural”

 


O acordo final para a recuperação europeia da crise covid-19 foi fechado em dezembro e a ‘bazuca’ está carregada. Mas serão os tiros disparados no sentido certo? E poderá este arsenal financeiro, a par da vacina, salvar 2021 e os anos que se seguem? Augusto Mateus, ex-ministro da Economia de António Guterres, confessa ao Expresso não apreciar o léxico bélico: afinal, trata-se de “construir e não de destruir” após “o terramoto económico e social” da pandemia. E aponta “o grande desafio pela frente”: “Sermos suficientemente ousados, inovadores, decentes e transparentes para acelerarmos a criação de riqueza” e “os nossos filhos e netos não terem dificuldades em pagar a fatura”.

“Muitos valorizam, e bem, o progresso científico na produção tão rápida de uma vacina, mas não há o mesmo raciocínio para a criação de uma economia muito mais equitativa, dinâmica e produtiva”, distingue Augusto Mateus. Como direcionar então os fundos comunitários? “É melhor o que permite inovar mais depressa, gerar mais empregos, trazer mais felicidade e boas condições de vida à população”, sintetiza. Na economia como no futebol, “a inovação é um jogo aberto em que, de repente, pode aparecer alguém melhor do que o Ronaldo ou o Messi”. Augusto Mateus concretiza: “De tanto louvarmos a sua excelência, não criamos regimes suficientemente abertos para que outros possam surgir rapidamente e substitui-los.”

A reestruturação do parque de habitação social, a descarbonização da indústria e a transição digital das empresas são alguns dos principais investimentos financiados a 100% com subsídios europeus, de acordo com a versão preliminar do Plano de Recuperação e Resiliência apresentado pelo Governo à Comissão Europeia (ver infografia). “Temos de correr riscos controlados, poder rever muitas vezes as prioridades e aproveitar esta oportunidade para mudar a especialização da economia”, sugere o antigo ministro e especialista em fundos comunitários. Caso contrário, “a economia portuguesa, uma das mais afetadas por uma assimetria colossal, pode soçobrar”, alerta. Pior: “Não teremos futuro se agora virarmos a economia para dentro.”

A excecionalidade do momento será “conjuntural e progressivamente anulada com a retoma da confiança ligada à eficácia da vacina”, prognostica Eduardo Catroga. “O que me preocupa é a crise estrutural dos últimos 20 anos, a nossa falta de pedalada no ritmo de reformas”, diz ao Expresso o ex-ministro das Finanças de Cavaco Silva. A prioridade deve ser a “renovação da estrutura produtiva, os apoios às empresas”, defende. “Temos de vencer o vírus da inação estrutural antiempresas que grassa há muitos anos na economia e sociedade”, apela ainda, advertindo que “seguindo os critérios tradicionais, não chegaremos lá”. Mas poderá “a qualidade de alocação de recursos na economia” ser diferente desta vez? “Isso exigirá um clique de mudança que não vejo no discurso dos partidos políticos e das elites”, lamenta. Para Catroga, o “grande desafio coletivo” é duplo: “Vencer o vírus conjuntural pandémico e o vírus estrutural que nos tolhe e impede de progredir.”

“DESPEJAR DINHEIRO”

A economista Susana Peralta confessa-se “bastante preocupada” por não termos “uma grande tradição de transparência” nem sequer “uma capacidade técnica para produzir informação útil no apoio à decisão”, quando está em causa um pacote financeiro de €14 mil milhões. “A maneira infantil de olhar para a ‘euromesada’ acaba por nos desresponsabilizar do trabalho de casa que ainda não fizemos acerca da maneira inteligente de usar esse dinheiro”, acrescenta ao Expresso. “Devíamos ter uma relação muito mais adulta com a UE e perceber que aquilo é muito mais do que um livro de cheques”.

O presidente do Conselho Estratégico Nacional (CEN) do PSD, Joaquim Miranda Sarmento, descreve os fundos como “uma condição necessária mas não suficiente”. Isto porque “têm de ser acompanhados por reformas estruturais que permitam mitigar os estrangulamentos da competitividade da economia”. “Despejar dinheiro nos problemas não os resolve”, sublinha, apontando um paradoxo na utilização da ‘bazuca’. Esta devia ser uma resposta à crise, que afetou sobretudo a saúde, a educação, a economia e as empresas, diz. “O grosso do dinheiro não vai para estas áreas”, antes para a transição energética, “embora aí seja uma imposição europeia”, e para a Administração Pública. “Isso é um erro. A ‘bazuca’ devia estar direcionada para um reforço do Serviço Nacional de Saúde e da escola pública, mas também para o reforço do tecido empresarial e da competitividade da economia”, corrige. O presidente do CEN receia que “o programa sirva sobretudo para fazer investimentos públicos que não foram feitos no passado porque não havia margem orçamental. Isso obviamente não será transformador da economia portuguesa”, sentencia. E 2021 será só o começo. Há esperança enquanto forem chegando os milhões?

FRASES

- “Temos de ser suficientemente ousados, inovadores, decentes e transparentes para acelerarmos a criação de riqueza”. Augusto Mateus, Ex-ministro e especialista em fundos comunitários

- “Receio que sirva sobretudo para fazer investimentos públicos que não foram feitos no passado”, Joaquim Miranda Sarmento, Presidente do Conselho Estratégico Nacional do PSD (Expresso, texto do jornalista Helder Gomes)

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