O acordo final
para a recuperação europeia da crise covid-19 foi fechado em dezembro e a
‘bazuca’ está carregada. Mas serão os tiros disparados no sentido certo? E
poderá este arsenal financeiro, a par da vacina, salvar 2021 e os anos que se
seguem? Augusto Mateus, ex-ministro da Economia de António Guterres, confessa
ao Expresso não apreciar o léxico bélico: afinal, trata-se de “construir e não
de destruir” após “o terramoto económico e social” da pandemia. E aponta “o
grande desafio pela frente”: “Sermos suficientemente ousados, inovadores,
decentes e transparentes para acelerarmos a criação de riqueza” e “os nossos
filhos e netos não terem dificuldades em pagar a fatura”.
“Muitos valorizam, e bem, o progresso científico na produção tão rápida de uma vacina, mas não há o mesmo raciocínio para a criação de uma economia muito mais equitativa, dinâmica e produtiva”, distingue Augusto Mateus. Como direcionar então os fundos comunitários? “É melhor o que permite inovar mais depressa, gerar mais empregos, trazer mais felicidade e boas condições de vida à população”, sintetiza. Na economia como no futebol, “a inovação é um jogo aberto em que, de repente, pode aparecer alguém melhor do que o Ronaldo ou o Messi”. Augusto Mateus concretiza: “De tanto louvarmos a sua excelência, não criamos regimes suficientemente abertos para que outros possam surgir rapidamente e substitui-los.”
A reestruturação
do parque de habitação social, a descarbonização da indústria e a transição
digital das empresas são alguns dos principais investimentos financiados a 100%
com subsídios europeus, de acordo com a versão preliminar do Plano de
Recuperação e Resiliência apresentado pelo Governo à Comissão Europeia (ver
infografia). “Temos de correr riscos controlados, poder rever muitas vezes as
prioridades e aproveitar esta oportunidade para mudar a especialização da
economia”, sugere o antigo ministro e especialista em fundos comunitários. Caso
contrário, “a economia portuguesa, uma das mais afetadas por uma assimetria
colossal, pode soçobrar”, alerta. Pior: “Não teremos futuro se agora virarmos a
economia para dentro.”
A excecionalidade
do momento será “conjuntural e progressivamente anulada com a retoma da
confiança ligada à eficácia da vacina”, prognostica Eduardo Catroga. “O que me
preocupa é a crise estrutural dos últimos 20 anos, a nossa falta de pedalada no
ritmo de reformas”, diz ao Expresso o ex-ministro das Finanças de Cavaco Silva.
A prioridade deve ser a “renovação da estrutura produtiva, os apoios às
empresas”, defende. “Temos de vencer o vírus da inação estrutural antiempresas
que grassa há muitos anos na economia e sociedade”, apela ainda, advertindo que
“seguindo os critérios tradicionais, não chegaremos lá”. Mas poderá “a
qualidade de alocação de recursos na economia” ser diferente desta vez? “Isso
exigirá um clique de mudança que não vejo no discurso dos partidos políticos e
das elites”, lamenta. Para Catroga, o “grande desafio coletivo” é duplo:
“Vencer o vírus conjuntural pandémico e o vírus estrutural que nos tolhe e
impede de progredir.”
“DESPEJAR
DINHEIRO”
A economista
Susana Peralta confessa-se “bastante preocupada” por não termos “uma grande tradição
de transparência” nem sequer “uma capacidade técnica para produzir informação
útil no apoio à decisão”, quando está em causa um pacote financeiro de €14 mil
milhões. “A maneira infantil de olhar para a ‘euromesada’ acaba por nos
desresponsabilizar do trabalho de casa que ainda não fizemos acerca da maneira
inteligente de usar esse dinheiro”, acrescenta ao Expresso. “Devíamos ter uma
relação muito mais adulta com a UE e perceber que aquilo é muito mais do que um
livro de cheques”.
O presidente do
Conselho Estratégico Nacional (CEN) do PSD, Joaquim Miranda Sarmento, descreve
os fundos como “uma condição necessária mas não suficiente”. Isto porque “têm
de ser acompanhados por reformas estruturais que permitam mitigar os
estrangulamentos da competitividade da economia”. “Despejar dinheiro nos
problemas não os resolve”, sublinha, apontando um paradoxo na utilização da
‘bazuca’. Esta devia ser uma resposta à crise, que afetou sobretudo a saúde, a
educação, a economia e as empresas, diz. “O grosso do dinheiro não vai para
estas áreas”, antes para a transição energética, “embora aí seja uma imposição
europeia”, e para a Administração Pública. “Isso é um erro. A ‘bazuca’ devia
estar direcionada para um reforço do Serviço Nacional de Saúde e da escola
pública, mas também para o reforço do tecido empresarial e da competitividade
da economia”, corrige. O presidente do CEN receia que “o programa sirva
sobretudo para fazer investimentos públicos que não foram feitos no passado
porque não havia margem orçamental. Isso obviamente não será transformador da
economia portuguesa”, sentencia. E 2021 será só o começo. Há esperança enquanto
forem chegando os milhões?
FRASES
- “Temos de ser
suficientemente ousados, inovadores, decentes e transparentes para acelerarmos
a criação de riqueza”. Augusto Mateus, Ex-ministro e especialista em fundos
comunitários
- “Receio que sirva
sobretudo para fazer investimentos públicos que não foram feitos no passado”, Joaquim
Miranda Sarmento, Presidente do Conselho Estratégico Nacional do PSD (Expresso,
texto do jornalista Helder Gomes)
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