domingo, janeiro 12, 2025

Quando ser cristão é crime: histórias de perseguição religiosa da Síria à Nicarágua (Expresso)

Por todo o mundo, o exercício da fé cristã chega a ganhar contornos de crime. Seja porque os crentes vivem sob a alçada de regimes que admitem uma religião só, seja devido à intolerância de sociedades nacionalistas, seja porque “califados oportunistas” substituem-se aos Estados, não faltam exemplos de perseguição aos cristãos. Aquele 8 de abril de 2021 tinha tudo para ser um dia normal no Hospital Civil de Faisalabad, na província paquistanesa do Punjab. Como muitas outras vezes, as enfermeiras Mariam Lal, de 54 anos, e Nawish Arooj, de 21, estavam de serviço na ala psiquiátrica. A descida aos infernos destas paquistanesas começou quando um paciente lhes deu para a mão um autocolante rasgado que tinha arrancado de um armário de medicamentos. O papel tinha impressa uma passagem do Alcorão. Na manhã seguinte, um grupo de pessoas em fúria confrontou as duas enfermeiras e acusou-as de blasfémia. Mariam e Nawish eram cristãs e aquele autocolante rasgado era a prova de um ato de “profanação do Alcorão”. No Paquistão, acusações de blasfémia, muitas vezes falsas, motivam atos de vingança e manifestações de ódio que, amiúde, resultam em linchamentos. Um número desproporcionalmente elevado de casos envolve cristãos. Das 1550 pessoas acusadas de blasfémia desde 1986, quando o código penal foi alterado para incluir o crime de “profanação do Alcorão”, os cristãos surgem implicados em cerca de 15% dos casos, ainda que correspondam a menos de 2% da população.

A partir do seu esconderijo, Mariam e Nawish partilharam a sua história com a fundação pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), que destacou o caso no relatório “Perseguidos e Esquecidos?”, divulgado em novembro passado. Esta instituição pontifícia, com sede na Alemanha e representação em Portugal, trabalha com base em dados que são do domínio público e, em especial, informações recolhidas junto da Igreja local. As duas mulheres foram levadas e colocadas sob proteção policial. Numa decisão sem precedentes no Paquistão, dado os casos de blasfémia serem, frequentemente, punidos com pena de prisão, ambas foram libertadas sob fiança. É uma liberdade relativa, já que Mariam e Nawish passaram a viver em local secreto, temendo pela vida o tempo todo.

O relatório, que se publica desde 2004, conclui que hoje os cristãos são “vítimas de assédio por motivos religiosos, desde abusos verbais a assassínios, em mais países do que nunca”, lê-se. “Em muitos casos, se não na maioria, esta deterioração não afetou todo o país, mas apenas regiões específicas”, onde a presença de cristãos é expressiva.

Na última edição, pela primeira vez, o relatório destaca a situação na Nicarágua, onde o regime liderado por Daniel Ortega e sua mulher, Rosario Murillo, tem visado a Igreja Católica, seja expulsando membros do clero do país, obrigando ao encerramento de organizações geridas pela Igreja ou restringindo atividades religiosas, como impedir padres de entrarem em hospitais, mesmo que a pedido de doentes, para dar o sacramento da unção.

A 11 de fevereiro de 2023, D. Rolando Álvarez, o bispo de Matagalpa, foi destituído da cidadania e condenado, sem julgamento, a 26 anos de prisão, por um tribunal de Manágua, que o considerou “traidor à pátria”. O bispo é uma voz crítica do regime e nunca cedeu às pressões para se exilar. Acabou por ser expulso para o Vaticano, em janeiro de 2024, juntamente com outro bispo, 15 sacerdotes e dois seminaristas. Seguiu-se a anulação do estatuto jurídico de inúmeras instituições ligadas à Igreja e o confisco de bens. A pedido das autoridades de Manágua, a Santa Sé encerrou a sua representação diplomática na Nicarágua, na sequência da expulsão do país do núncio apostólico.

Califados oportunistas

Noutras latitudes, os cristãos sofrem às mãos dos chamados “califados oportunistas” que se tornaram uma grande preocupação, em particular na região do Sahel. As tradicionais estratégias de grupos jiadistas de matança e pilhagem deram lugar a uma tendência de imposição de sistemas fiscais e comerciais ilegais ao estilo de ‘um Estado dentro do Estado’ que, muitas vezes, visa as populações cristãs.

Nos últimos anos, em especial após o autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh) ter sido derrotado no Iraque e na Síria, o epicentro da violência militante islamita deslocou-se do Médio Oriente para África. Na Nigéria, na véspera de Natal de 2023, mais de 300 cristãos foram mortos após extremistas da etnia fulani (muçulmana) invadirem mais de 30 aldeias, no estado de Plateau (centro). Dispararam armas de fogo, incendiaram localidades inteiras e destruíram reservas de alimentos. Jalang Mandong, que perdeu dez familiares no massacre, relatou à AIS que os ataques tiveram por objetivo “perturbar a celebração do Natal” e roubar terras às comunidades.

Os cristãos representam quase metade da população da Nigéria. Em especial no norte do país, onde continuam ativos grupos terroristas como o Boko Haram e o autoproclamado “Estado Islâmico da Província da África Ocidental”, são muitas vezes objeto de discriminação e acusações de blasfémia decorrentes da imposição da sharia (lei islâmica) em pelo menos 12 dos 36 Estados do país.

No Paquistão, acusações de blasfémia, muitas vezes falsas, motivam vinganças e linchamentos. Um número desproporcional envolve cristãos, implicados em cerca de 15% dos casos, ainda que sejam menos de 2% da população. Na mesma área geográfica, o Burquina Fasso é um caso recente de agravamento da perseguição aos cristãos, que são minoritários no país. Um dos primeiros episódios que fez soar os alarmes aconteceu em outubro de 2023, quando, na região de Débé, dois escuteiros foram executados no interior de uma igreja por extremistas islâmicos — um em frente ao altar, o outro junto à estátua da Virgem Maria. Os jovens tinham por hábito escoltar crianças até uma escola na localidade vizinha de Tougan, onde estava estacionado o exército burquinense. Os terroristas tinham encerrado as escolas nas zonas onde estavam. Após este incidente, mais de 340 cristãos receberam um ultimato de 72 horas para abandonar as suas aldeias.

Os limites do Irão

“Os ataques de grupos islamitas afetaram vários grupos religiosos, incluindo os muçulmanos tradicionais”, lê-se no relatório, que cita o bispo burquinense Justin Kientega, de Ouahigouya, segundo o qual os cristãos são mais visados pelos jiadistas e enfrentam um controlo mais rigoroso e punições mais severas do que os seus vizinhos muçulmanos. “Não há liberdade de culto. Em algumas aldeias, [os jiadistas] permitem que as pessoas rezem, mas proíbem o catecismo; noutros locais, dizem aos cristãos para não se reunirem na igreja para rezar.”

A predominância da lei islâmica é fator de discriminação também no Irão, um Estado teocrático que tem um “grande ayatollah” no topo da pirâmide do poder. Nos últimos anos, os cristãos têm sofrido na pele a mão de ferro do regime que silenciou os gigantescos protestos populares que se seguiram ao “caso Mahsa Amini”, a muçulmana que foi detida e mortalmente agredida, em 2022, pela polícia de costumes, que fiscaliza nas ruas se a indumentária dos cidadãos respeita os preceitos da República Islâmica. No caso de Mahsa, consideraram que não levava o véu na cabeça, de uso obrigatório para as mulheres, corretamente colocado.

Em 2024, Laleh Saati, iraniana convertida ao cristianismo, foi levada de casa dos pais e confrontada com fotos e vídeos da sua participação em eventos cristãos na Malásia, onde vivera anos antes e fora batizada. Foi condenada a dois anos de prisão

Os cristãos também não escapam. A 13 de fevereiro de 2024, Laleh Saati, uma iraniana de 46 anos convertida ao cristianismo, foi levada de casa dos pais, nos arredores de Teerão. Durante o interrogatório, na prisão de Evin, foi confrontada com fotografias e vídeos da sua participação em eventos cristãos na Malásia, onde viveu anos antes e onde foi batizada. Levada a um tribunal revolucionário, foi-lhe perguntado porque tinha regressado se tinha “feito essas coisas fora do Irão”. Foi condenada a dois anos de prisão, acrescidos de mais dois de proibição de viajar.

Os cristãos detidos no Irão aumentaram de 59, em 2021, para 166, em 2023. “As autoridades têm cada vez mais como alvo pessoas que distribuem Bíblias”, diz o relatório da AIS. As confissões cristãs são reconhecidas, oficialmente, mas a leitura da Bíblia em língua farsi não é permitida.

Na Índia, onde o nacionalismo hindu tem originado perseguições às minorias cristã e, sobretudo, muçulmana, pelo menos 12 estados adotaram leis anticonversão. Essas medidas potenciam atos de hostilidade, como negar aos cristãos o acesso à água de um poço, o enterro de um ente querido ou atos de vandalismo, agressões ou assassínios. A 24 de junho, Bindu Sodi, de 32 anos, foi morta à machadada e à pedrada por um tio, na aldeia de Toylanka, no estado de Chhattisgarh, no centro do país. Duas semanas antes, o homem e um filho tinham invadido terrenos pertencentes à família de Bindu e cultivado uma parcela. O tio defendia que aquela família não tinha direito às terras porque se tinha convertido ao cristianismo. Foi apresentada queixa na polícia, mas antes que se apurasse de que lado estava a lei, Bindu pagou com a vida a intolerância do tio.

A incógnita síria

O ano de 2024 terminou com uma grande incógnita no mapa-mundo. O fim da era dos Assad na Síria colocou no poder um grupo sunita salafita jiadista (Hayat Tahrir al-Sham) liderado por um antigo aliado da Al-Qaeda. Os receios relativamente à perseguição de minorias religiosas (e mesmo de outras sensibilidades dentro do Islão além dos sunitas) manifestam-se perante episódios como o ocorrido a 23 de dezembro, na região de Hama (centro). Na localidade de Suqaylabiyah, de maioria cristã, um grupo de homens encapuzados deitou fogo a uma grande árvore de Natal, montada numa praça. No dia seguinte, véspera de Natal, centenas de pessoas saíram à rua nas zonas cristãs de Damasco em protesto contra o ataque. Nesse mesmo dia, quando decorreram as cerimónias natalícias na Igreja da Senhora de Damasco (católica), havia no exterior pickups com homens afetos ao grupo islamita no poder... a garantir segurança. O tempo dirá se a nova Síria será tolerante em matéria de religião (Expresso, texto dos jornalistas Margarida Mota e Cristiano Salgado e ilustração de Carlos Esteves, jornalista infográfico)

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