domingo, janeiro 12, 2025

Como a tecnologia está a reformular a religião

As aplicações para “smartphone”, as redes sociais e a inteligência artificial estão a tornar a religião mais acessível. Será isso suficiente para travar os recentes declínios nas crenças religiosas? Segundo a empresa de sondagens Gallup, 98 por cento dos norte-americanos acreditavam em Deus em 1952 e apenas 81 por cento mantinham essa crença em 2022. Num estudo realizado em 2023 pelo Pew Research Center, 22 por cento dos americanos identificavam-se como espirituais, mas não religiosos; em 2024, 28 por cento descreviam-se como ateus, agnósticos ou nada em particular, frequentemente apelidados de “nenhumas”. Em toda América do Norte e na Europa, números semelhantes acompanham o declínio do número de pessoas que praticam uma religião organizada. (Os números são bastante diferentes no Médio Oriente, no sul da Ásia e na América Latina, onde a religião tem vindo a aumentar.)

Futuro das Religiões

A Irmã Ilia Delio, professora de teologia na Universidade de Villanova, no estado da Pensilvânia, examinou atentamente as mudanças na fé, crença e percepção. E embora tenha observado as tendências, não acredita que a fé em Deus esteja a desaparecer. “Não desapareceu, mas está a assumir novas formas”, diz. “Isso muda muito a maneira como pensamos nas questões relacionadas com Deus ou com a fé.”

A tecnologia – os smartphones, as redes sociais e até a inteligência artificial — está a alimentar muita desta mudança, alterando a forma como as pessoas encontram ensinamentos religiosos, pessoas que partilham a sua maneira de pensar e a maneira como rezam. Sacerdotes robóticos estão a guiar as pessoas em busca de respostas para as grandes perguntas e uma igreja na Suíça apresentou recentemente um Jesus de IA num dos seus confessionários. Poderão estas novas formas de alcançar as massas assistidas pela tecnologia conduzir a um renascimento religioso? O futuro da religião pode ser muito mais estranho do que os dados demográficos sugerem.

No Tiktok, a religião descobre-nos

Os dados demográficos escondem uma história com muito mais matizes sobre o futuro da religião. Deus e a religião parecem estar em todo o lado no ciberespaço. Seja num computador ou num telefone, é possível encontrar uma denominação ou religião que se alinhe com os nossos valores ou, simplesmente, um conjunto de ideias que nos pareça mais apropriado. Há 50 anos, se tivéssemos uma pergunta sobre a nossa fé, poderíamos fazê-la ao nosso líder religioso ou a uma pessoa proeminente da nossa comunidade. “As pessoas costumavam sempre dirigir-se ao rabi local para fazer uma pergunta. Hoje em dia, não vão ter com o rabi local. Fazem a pergunta ao Google”, diz Pinchas Goldschmidt, presidente da Conferência de Rabis Europeus.

É claro que o entrelaçamento da tecnologia com a religião não é nada de novo. A introdução da imprensa na Europa do século XV possibilitou a produção de livros em massa. Os grupos protestantes que surgiram na época utilizaram-na para disseminar as suas ideias revolucionárias sobre o cristianismo e a igreja católica tentou proibir obras consideradas heréticas. Na era actual da informação fornecida pela Internet, a Irmã Ilia diz: “Temos tudo aqui ao nosso dispor. Por isso, é como apanhar cerejas. Se eu não gostar dela, não a como. Se gostar, como-a.”

Esta democratização do conhecimento é evidente na Internet, em redes sociais como Instagram, o TikTok e o Douyin, onde se encontraminúmeros vídeos de curta duração e hashtags como #diwali e #páscoa. Embora algum conteúdo seja criado por indivíduos com formação religiosa, muito é produzido por pessoas com uma vocação ardente por publicar ou encontrar pessoas que partilhem a sua forma de pensar. Milhares de aplicações para smartphone oferecemajuda para prestar culto da maneira certae muito mais. Existem apps que permitem aos muçulmanos encontrar espaços de oração, bem como restaurantes halal. Existe uma app onde monges budistas demonstram saltos, rotações e mortais que desafiam a gravidade. “Temos agora acesso a ideias e práticas religiosas de todo o mundo às quais não tínhamos acesso anteriormente”, diz Robert Geraci, professor reconhecido com o título de Knight Distinguished Chair de Estudo da Religião e da Cultura em Knox College. “Isso dá-nos uma nova perspectiva, seja qual for a nossa percepção.”

ShanDien Sonwai LaRance (Hopi, Tewa, Navajo e Assiniboine) cresceu na região ocidental dos EUA, na tradição Dança Hoop. A Dança Hoop é uma forma de rezar e de estabelecer uma ligação com os espíritos e LaRance assumiu a missão pessoal de partilhar e explicar essa tradição no Instagram, no TikTok, no YouTube e no Facebook.

Melinda Strauss começou como blogger de comida kosher e descobriu que as pessoas estavam intrigadas com o facto de ela ser judia ortodoxa. “Apercebi-me de que as pessoas não sabem nada sobre os judeus, sobre os nossos costumes e sobre as nossas leis. Por isso, comecei a responder a perguntas com vídeos e a coisa pegou.” Agora tem 1,3 milhões de seguidores no TikTok e 156.000 seguidores no Instagram.

Freiras a saltar de uma bancada de cozinha ou contando se preferem rezar de manhã ou à noite enquanto “It’s Tricky”, da banda hip-hop Run DMC, toca em plano de fundo, não é aquilo que se esperaria encontrar numa congregação profundamente religiosa. Mas as Filhas de São Paulo são uma nova geração de irmãs religiosas. A subordem foi fundada para seguir os ensinamentos do Apóstolo e usa as redes sociais para espalhar a palavra de Cristo. Com 157.000 seguidores no TikTok, mereceram a alcunha de Media Nuns (Freiras das Redes Sociais). A sua missão é auxiliada pela sua genuína afabilidade. Segundo a Irmã Orianne Pietra René “não só estamos genuinamente a partilhar, porque gostamos de nos divertir, mas a revelar Cristo como um todo a quem anseia por aquela alegria, aquela vitalidade, aquela plenitude de vida.”

Em 2019, Sabah Ahmedi, o imã da mesquita Baitul Futuh em Londres, estava numa casa de chá com um amigo. Os dois discutiam equívocos sobre o Islão. Essa conversa inspirou Ahmedi a criar a sua plataforma social Young Imam para “ajudar as pessoas a perceberem melhor o Islão”. Ele publica quase todos os dias. Nos seus websites, fala, de forma séria, mas também com humor, sobre tudo desde rituais como a ablução – “temos de lavarmos antes de rezar para entrarmos no estado de espírito da limpeza – aos seus cafés preferidos.

A Inteligência Artificial está a ajudar os líderes religiosos a inovar

Mais importante do que o facto de pessoas como LaRance, Strauss e o Imã Ahmedi estarem a usar as redes sociais para espalhar a palavra, a religião está a ser afectada pelo crescimento fenomenal da inteligência artificial. Estas tecnologias complexas incluem modelos de linguagem de grande escala, sistemas treinados com enormes quantidades de dados e capazes de analisar e processar linguagem e gerar respostas credivelmente humanas.

Alguns líderes religiosos adoptaram esta tecnologia. O sacerdote Caru Das Adhikary, do Templo de Sri Sri Radha Krishna, no estado do Utah, adora dar espectáculos: “O meu interesse é contar histórias, fazer música rap e juntar canções. Uso IA em quase todas as minhas composições”. Ele utiliza o Google Gemini para transformar um verso em sânscrito do Hare Krishna num rap. Caru Das admite que, por vezes, a IA produz trivialidades, por isso ele dedica algum tempo a corrigir e polir as palavras. “É um motor de arranque. Trabalho nele, aproprio-me dele. Torno-o meu.”

Ed Stetzer, director da Faculdade de Teologia Talbot da Universidade de Biola, preparou recentemente um sermão sobre uma doutrina reformista chamado Solus Christus. Pediu ao ChatGPT que lhe fornecesse citações de pais da igreja dos séculos II e III relacionadas com a doutrina. A IA deu-lhe alguns exemplos, mas como Stetzer diz, a IA nem sempre está certa: “Ajuda-me a começar. Isso tem alguma força.”

Outros são mais circunspectos. Uma vez que as tecnologias de IA são desenvolvidas separadamente das instituições e comunidades religiosas consolidadas, os utilizadores não estão a interagir com alguém que os conhece ou às suas famílias, ou que sabe a razão pela qual procuram algo. Por exemplo, quem procura respostas de uma perspectiva judaica pode não estar interessado numa interpretação da Convenção Baptista do Sul. “Estamos a perder o toque pessoal e estamos a perder a emoção”, diz o rabi Goldschmidt, que tem um mestrado em ciência da computação da Universidade Johns Hopkins. “Qual é o contexto social? Qual é o estatuto espiritual e material do ser humano que faz esta pergunta? Não existe uma pergunta absoluta. Não existe uma resposta absoluta.”

Sacerdotes robô guiam os fiéis

Algumas religiões até estão a incorporar a tecnologia no seu culto, sob a forma de sacerdotes robôs. Gabriele Trovato cresceu na cidade portuária italiana de Livorno. Quando era novo, dava por garantida a iconografia religiosa que permeia aquele país maioritariamente católico. “Temos muita arte sacra na minha cidade natal. As estátuas fazem parte da paisagem. Até no meio das ruas vemos nichos com a Virgem Maria”, diz ele. Baseando-se nessas estátuas, Trovato, professor associado do Instituto de Tecnologia de Shibaura, em Tóquio, criou o SanTO (Sanctified Theomorphic Operator – Operador Teomórfico Santificado).

O pequeno robô tem a aparência de um santo neoclássico. Foi concebido para prestar assistência aos idosos, bem como às pessoas que vivem isoladas ou têm problemas de mobilidade. Os indivíduos podem utilizar uma vela eléctrica para tocar nas mãos do SanTO e fazer-lhe uma pergunta, acedendo a uma vasta base de dados que contém conhecimentos sobre a bíblia, orações e as vidas dos santos.

No Templo Longquan, em Beijing, existe um robô chamado Xian’er. Com a sua túnica amarela e uma expressão ligeiramente perplexa, ele entoa mantras budistas e explica os princípios básicos da fé. No Templo Irinjadappilly Sree Krishna, em Thrissur, na Índia, um elefante robótico em tamanho real substituiu um elefante vivo que vivia acorrentado e participa em rituais isentos de crueldade.

Na serenidade do Templo Kodaiji, do século XVII, encontramos Mindar, um robô com mais de 1,80 metros com pele cor de porcelana, uma cabeça, mãos, braços capazes de se mexer e um esqueleto em alumínio exposto. É um andróide mecatrónico com um olhar contemplativo que representa Kannon, o bodhisattva da compaixão, e consegue conversar. Tensho Goto, o antigo guardião de Kodaiji, tinha o budismo zen como objectivo e queria algo com um rosto que transmitisse uma sensação afectuosa de afinidade, para que as pessoas se sentissem à vontade com ele.

“Era isto que queríamos originalmente com o Mindar: algo capaz de aplicar aprendizagem automática a textos budistas antigos”, diz Daniel White, investigador associado da Universidade de Cambridge que estuda máquinas programadas com inteligência emocional. “Seriam eles capazes de criar uma inteligência artificial e uma forma de vida artificial capaz de responder às nossas perguntas sobre a natureza da realidade, sobre o Buda, de uma forma mais fiel àquilo que o Buda ensinaria?” Para surpresa de White, muitos dos crentes que abordavam o Mindar pareciam receptivos às suas palavras.

Um templo no Japão também oferece serviços funerários para robôs. No final da década de 1990, a Sony apresentou um cão mecânico chamado aibo. O público japonês aderiu aos companheiros robóticos. Infelizmente, as máquinas acabavam por se avariar. Segundo a fé desta nação predominantemente budista, todas as criaturas, bem como os objectos inanimados, têm almas e merecem funerais condignos. Como diz White, em vez de os porem no lixo, as pessoas traziam-nos para o Templo Kofukuji, em Isumi, onde eram oferecidas orações para libertar as almas dos aibos e enviá-las para a Terra Pura. Para o sacerdote Ōi Bungen, a cerimónia também era uma maneira de ensinar os aspectos mais profundos da filosofia budista aos participantes.

Irão as redes sociais, as aplicações para smartphone e os robôs de IA transformar a forma como as pessoas vivem a fé?

Apesar dos mantras de Xian’er e do olhar calmo de Mindar, os robôs são máquinas impessoais programadas para imitar. Quanta fé conseguirá o fiel introduzir em algoritmos de inteligência artificial? Quanto poderemos confiar numa aplicação para smartphone ou num robô que recita orações e profere sermões?

O facto de líderes religiosos de todo o mundo discutirem o assunto há vários anos é um sinal de que levam estas questões a sério. Em Julho de 2024, representantes de muitos dos principais credos mundiais reuniram-se em Hiroshima parapromover o desenvolvimento ético da inteligência artificial. Numa cidade destruída por uma tecnologia nova e devastadora – a bomba atómica – 16 novos signatários acrescentaram os seus nomes ao Apelo de Roma para a Ética na IA. Trabalhando com empresas tecnológicas e grupos de reflexão universitários, o acordo apela a um uso responsável da inteligência artificial.

Como os líderes religiosos reunidos em Hiroshima bem sabem, a tecnologia pode e deve ser utilizada para ajudar a humanidade. No entanto, as tradições das suas religiões e de todas as outras religiões do mundo são pessoais e sagradas. O desafio enfrentado pelo fiel é ser como Miranda, a filha do feiticeiro Próspero de A Tempestade, de Shakespeare, que se sente maravilhada pelos sinais de um mundo que nunca conheceu enquanto exclama: “Quantas graciosas criaturas estão aqui! Admirável mundo novo, Que tem gente assim!” Podemos abordar estas ideias com uma mente curiosa e, simultaneamente, encará-las com cuidado. No entanto, o romance Admirável Mundo Novo, escrito por Aldous Huxley no século XX, cujo título é uma referência ao discurso de Miranda, é um conto moral no qual as vidas das personagens são ditadas por uma eficiência distópica num mundo tecnologicamente avançado, sem magia nem religião. “É a forma como usamos a tecnologia –não para substituir a religião, mas para melhorá-la”, diz a Irmã Ilia sobre a fé na era digital. “Como podemos tornar-nos mais conscientes da nossa pertença? Como podemos tornar-nos mais conscientes de uma força vital a que chamamos Deus?” (texto do jornalista Daniel S. Levy, no National Geographic, Portugal, publicado originalmente em inglês em Nationalgeographic.com)

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