segunda-feira, setembro 11, 2023

Renascença: Carlos Pereira não larga empresas do universo Marítimo dois anos após perder a presidência

O antigo presidente recusa-se a entregar três empresas que detêm o terreno do centro de treinos, veículos, a televisão oficial do clube e que devem mais de 1,5 milhões de euros ao emblema madeirense. Atual presidente Rui Fontes ameaça levar o caso aos tribunais. Carlos Pereira perdeu as eleições do Marítimo em outubro de 2021. Porém, quase dois anos depois, continua a deter três empresas do universo do clube madeirense e recusa-se a entregá-las, revela a atual direção à Renascença. Após a ida às urnas, o antigo presidente, que liderou o clube durante 24 anos, prometeu publicamente que iria abdicar da gestão das empresas. “Já estou a preparar a renúncia a todas elas”, disse. Mas tal ainda não aconteceu em alguns casos.

Os documentos a que a Renascença teve acesso revelam que as empresas Marítimo TV, Marítimo SGPS e Marítimo GPI continuam, neste momento, no nome de Carlos Pereira, como gerente ou presidente. Nenhuma está ligada – formalmente – ao clube, apesar de terem recebido empréstimos dos cofres do Marítimo e de deterem o terreno onde foi construído o centro de treinos de Santo António. O facto da atual direção do Marítimo não gerir estas empresas dá origem a situações singulares.

Por exemplo: é o clube que paga os ordenados dos funcionários da Marítimo TV - até aos dias de hoje a produzir conteúdo audiovisual sobre o clube - e a cobrir as despesas dos veículos também em nome destas empresas, mas que são diariamente utilizados pelo Marítimo. Situações reveladas à Renascença pelo atual presidente Rui Fontes.

“O Marítimo paga os ordenados porque entende que estão a servir o clube. É estranho, é hilariante, eu sei, mas o que quer? Há pessoas que saem e acham sempre que vão regressar um dia”, aponta o dirigente, referindo-se a Carlos Pereira.

O ex-presidente tem rejeitado sucessivos pedidos para entregar as empresas ao Marítimo, o que leva a direção a ponderar ações mais drásticas. “Não faz sentido não pertencerem ao Marítimo. Queremos dialogar. Se não for possível terá de ir para a via judicial”, ameaça.

Ao lado do nome de Carlos Pereira, nos documentos consultados, surgem também o do filho - Carlos Maurício Jardim Pereira, que ocupa o cargo de vice-presidente na GPI e gerentes da SGPS – e o de Marco Alexandre da Costa - ex-diretor geral do Marítimo, vogal do conselho de administração da Marítimo GPI.

E emergem outros detalhes: a Marítimo TV é detida na totalidade pela Marítimo GPI. Já 98% da Marítimo SGPS pertence a Gaspar Avelino Nóbrega – cidadão anónimo - e 2% a Carlos Pereira.

Algumas fontes ouvidas pela Renascença dizem que Gaspar é funcionário das empresas privadas do ex-presidente.

Uma "teia de empresas" com que objetivo?

Nos documentos, pode ler-se que a Marítimo TV tem como objetivo a “conceção, produção e difusão de conteúdos digitais em plataformas como internet, televisão, cabo, satélite e outros”.

Já a Marítimo GPI serve para “gestão de patrimónios imobiliários; gestão, administração e fiscalização de obras nos imóveis geridos pela empresa; investimentos imobiliários e mobiliários; compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim”. Por fim, a Marítimo GPS teria como função a “gestão de participações sociais noutras sociedades, como forma indireta de exercício de atividades económicas”.

A Renascença tentou contactar Carlos Pereira, em vários momentos, para perceber o intuito da criação destas empresas e questioná-lo sobre o porquê da demora na transferência da tutela. O antigo dirigente nunca respondeu. A atual direção do Marítimo também não tem explicações. Mas tem suspeitas.

Com o propósito de elaborar um plano estratégico para o futuro do clube, a direção contratou Hugo Caetano. À Renascença, o especialista financeiro confessa ter “imensa dificuldade em compreender o objetivo de uma estrutura tão grande”.

“Há uma componente sociocultural do clube que levou à criação de um colégio e uma fundação. Aí compreende-se uma figura societária diferente”, sublinha. Ainda assim, alerta que o mesmo não acontece com as atividades diretamente ligadas ao clube: “Uso a metáfora da teia da aranha. Vai-se aumentando a teia para apanhar mais coisas".

"Tornaram-se paralelas ao universo do Marítimo: uma para obras no estádio, outras para o estádio, outras para uma TV que trabalha dentro do estádio. Não encontro, até à data de hoje, nenhum motivo para existirem”, aponta.

Há, no entanto, um detalhe que o deixa preocupado: “O Marítimo deu empréstimos a estas empresas e aí a coisa ganha uma complexidade bastante grande”, confessa Hugo Caetano.

"O Marítimo pode emprestar-me dinheiro, mas tem de estar autorizado e pagar um imposto do selo de abertura de crédito. Não encontrei a visibilidade de nada disto. Do ponto de vista de organização e estratégia, tenho muitas dificuldades em explicar”.

E prossegue: “É preciso ter o chamado interesse próprio. São empresas com objetivos diferentes, credores diferentes, acionistas diferentes. É preciso ser devidamente justificado e há procedimentos tributários que têm de ser assegurados”.

Ao longo da presidência de Carlos Pereira, o Marítimo emprestou 1.530,946 euros a estas empresas, valor revelado por Rui Fontes: “Há essa dívida para com o clube”. Para que foi utilizado o dinheiro? “Não faço ideia, deve ter sido para adquirir terrenos”, admite o presidente do clube madeirense.

“Não sei se há ilegalidades, não é a minha especialidade. Sei que isto não é correto, pode não ser ilegal, mas é imoral beneficiar as empresas do presidente no fornecimento ao clube. São formas de gestão que agora acabaram”, confessa o dirigente, quando questionado sobre possíveis irregularidades cometidas por Carlos Pereira.

Negociações sem final feliz para o Marítimo

O telefone de Carlos Pereira, segundo a atual direção do Marítimo, toca há vários meses com tentativas sucessivas de resolução da situação. Garantem que este foi alvo de "várias abordagens" e por "diferentes pessoas". Sempre sem o objetivo desejado. “Recusa-se determinantemente a resolver a situação”, acusa Hugo Caetano. “É a forma de manter algum protagonismo”, aponta. Rui Fontes - que "nunca mais viu" Carlos Pereira desde as eleições - não faz planos de reunir diretamente com o antecessor para resolver a questão: “Não é da minha competência, é da parte financeira e jurídica do clube”.

“O senhor Carlos Pereira opôs-se sempre [a entregar as empresas ao clube]. Tínhamos uma reunião marcada para meio de agosto e ele adiou para 15 de setembro. Temos os advogados a tratar para que isto seja resolvido da forma mais breve possível”, revela. No entanto, já se passaram praticamente dois anos.

O atual presidente do clube do Funchal não esconde a indignação perante o atual cenário: "É insustentável, mas foi o que nós encontramos e herdamos. E só uma parte disso". Numa altura em que o clube negoceia a entrada de capital estrangeiro na SAD, resolver os problemas do universo de empresas do Marítimo é uma das prioridades. Até porque a resolução do problema foi uma promessa feita pelo dirigente aos investidores. "É evidente que causa preocupação quando alguém analisa as contas e as empresas. Demos garantias de que tudo será resolvido", diz.

Contestação "maioritária" alimentada por fugas de informação

Dentro de campo, os resultados não ajudaram à união do clube. A contestação subiu de tom após a inesperada descida à II Liga. Há 38 anos que o clube não jogava na segunda divisão.

Muitos dos que elegeram Rui Fontes com uma expressiva maioria absoluta começam a questionar a capacidade da atual direção: “Para quem está contra, nada melhor do que a descida de divisão. Aconteceu o pior possível”, reconhece o presidente, que assume apenas parte das responsabilidades. Neste verão e após a despromoção, Hugo Caetano sentiu no convívio com os madeirenses um forte apoio a Carlos Pereira.

"Parece que estão à espera que regresse, como se esta direção estivesse a prazo. Há um movimento interno muito forte de resistência, que mina completamente. Funcionam como terroristas, entre aspas”, afirma. Um grupo de 50 sócios pediu a marcação de uma assembleia geral destitutiva após - e devido - à descida de divisão, que poderá ser agendada para as próximas semanas. Rui Fontes discorda totalmente do pedido. “Não pode acontecer só por esse motivo”, considera.

“É o presidente da Assembleia-Geral (AG) que vai decidir. Acho que faz pouco sentido, era mais lógico uma assembleia para a questão do património. O clube foi gerido por uma pessoa que não prestava contas a ninguém e nada se sabia. Estas coisas faziam-se sem ninguém saber. Os sócios andam esquecidos disso”, aponta.

O atual presidente reconhece ainda alguma divisão na lealdade dos próprios funcionários, muitos dos quais com longa ligação à antiga direção. “Muita informação passa para fora”, assume.

Porém, não o preocupa demasiado. Desde o primeiro dia em que entrou nos Barreiros que fez uma promessa aos funcionários. E planeia mantê-la.

“O meu princípio é não despedir ninguém. É sagrado manter o pão na mesa das famílias e não vamos tirar os rendimentos por serem leais a este ou aquele. Queremos que sejam leais ao Marítimo e ao serviço que prestam ao clube.”

Qual é o objetivo final de Carlos Pereira?

O presidente Rui Fontes acredita que Carlos Pereira “pode ter o objetivo” de voltar à presidência. Mas ainda não há uma resposta objetiva para a questão. O atual dirigente até pode sair – por opção ou decisão dos sócios -, mas os problemas continuarão, conclui Hugo Caetano, que em junho viu o seu plano estratégico aprovado pela maioria dos sócios.

“Os problemas já lá estavam quando Rui Fontes chegou e talvez os sócios nunca tenham tido essa perceção. Apesar de todo o esforço, ainda lá estão e estas mudanças podem contribuir para o sucesso", diz.

O gestor reconhece que "a antiga direção fez coisas muito positivas", mas "as instituições não são nossas": "O mundo continua a girar. Desempenhamos um papel por mandato, que tem início e fim. Não podemos querer eternizar-nos”.

Rui Fontes assume a possibilidade de Carlos Pereira estar a "tentar manter o clube refém", mas garante que as ações do antigo presidente não afetam diretamente o seu trabalho e a visão que tem para o futuro do Marítimo. Nas próximas semanas, se verá se tem razão (Renascença, texto dos jornalistas Eduardo Soares da Silva e Luís Aresta)


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